Campo de estrelas

 

 

Habituado ao calor, levanta a gola do casaco marrom. No aeroporto de Pamplona, Rodrigo deposita sua bagagem no guarda-volumes e, com sua pequena mochila, dirige-se à porta de saída. Excitado, separa às pressas o mapa do Caminho. A partir desse instante, quer ser apenas peregrino, até Santiago de Compostela. Pelos seus cálculos, espera-o uma distância de uns oitocentos quilômetros, que pretende percorrer em trinta dias, se os seus cinquenta e oito anos o permitirem.

Ignora o porquê de sua atração pelo Caminho. Há anos deseja fazê-lo, sem encontrar o momento propício. Suas atividades como advogado trabalhista sempre o prendem, à última hora um juiz marca uma audiência, ou algum dos sindicatos que representa decide iniciar um dissídio coletivo. Tem uma boa clientela e sua competência como advogado lhe rendeu um patrimônio respeitável: além do apartamento na cidade litorânea onde mora, possui uma casa de praia, nos arredores, mais dois imóveis alugados e troca de carro anualmente.

De origem modesta, sempre desejou possuir bens, ter segurança material, valores caros a Lacy, sua mãe. Com ela aprendeu a administrar dinheiro, desde cedo. O irmão conseguira fugir, literalmente, de Lacy, indo morar, ainda adolescente, nos Estados Unidos. Rodrigo adora Lacy, mas odeia a sua necessidade de controle e, de uns tempos para cá, o seu materialismo. Mora sozinho, embora telefone todos os dias para a mãe, sempre queixosa de sua artrose.

O vento incomoda-o. Talvez não devesse ter escolhido maio, ainda faz muito frio na Espanha. Tenta não apressar o passo, seguindo o conselho de ex-caminhantes. Deve-se manter o ritmo a todo custo, caso contrário os pés não aguentam. Meticuloso, leu onze livros sobre o caminho, antes de se decidir. Não completamente, pois não conseguiu terminar a leitura daqueles de conteúdo místico, dando prioridade aos jornalísticos. Sente certo desconforto com o vento e, ao mesmo tempo, alívio. Enfim, conseguiu tirar o terno e a gravata e ficará dias sem fazer salamaleques a juízes, colegas ou clientes. Sonhava com a ideia de usar tênis durante todo o tempo, de não se preocupar com a aparência. Ah, a aparência. Por ela se desdobrou durante anos, fazendo incríveis dietas de folhas verdes, passando dias a maçãs e peras, cortou cerveja, que adora, chocolates e refrigerantes, tudo por que vem de uma família com propensão à obesidade. Além da carga genética, tem uma gula difícil de controlar, aprecia como poucos o vinho e a boa mesa.

De repente, o assunto que tenta evitar há meses lhe vem à mente. Na antevéspera de sua viagem, encontrou num supermercado Pedro, Cíntia e o bebê. Cumprimentou-os com um gesto vago, ainda lhe é impossível ser natural com eles, na verdade, com ele. Parecia alegre, empurrando o carrinho. Ainda estavam juntos quando ele começou a sair com Cíntia, uma aluna da faculdade. A princípio, achou certa graça, o amigo era dado a recaídas com pessoas do sexo oposto. Depois a brincadeira se transformou em sofrimento e amargura. Lembra-se, com detalhes, da tarde em que Pedro chegou ao apartamento que dividiram por três anos, saltitante, com a notícia da gravidez de Cíntia. Sabia do seu sonho de ser pai, mas nunca quis se preocupar com isso. Então viu que era sério, Pedro iria se casar com Cíntia, mesmo se não a amasse. Sua impotência diante do fato fora total, redonda, inconsútil. Só tinha a oferecer o seu amor, aparentemente um tanto desvalorizado, no mercado sentimental. Como competir com alguém que pode procriar? Nunca amara ninguém como a Pedro, mas o seu era um amor de homem. Por mulheres, desde a puberdade não sentiu o menor interesse, embora tenha feito um esforço enorme quando Lacy quase o forçou a casar-se com Flora. Mas isso foi há muitos anos. Depois do fracasso do único relacionamento amoroso com uma mulher, passou a ver, em todas as mulheres, a amiga, a irmã que não teve, para desespero de Lacy, que, durante anos, tentou de tudo para vê-lo casado.

Inspira com mais profundidade, tentando voltar a atenção para o Caminho. Não quer mais pensar em Pedro e sim nos benefícios que esses quilômetros podem lhe trazer, pelo menos do ponto de vista físico. Pretende perder peso a fim de garantir os benefícios de uma lipoaspiração, já marcada. Detesta a barriga que teima em crescer, independentemente da ingestão das folhas de alface, odeia a sua papada e as bolsas debaixo dos olhos. Os homossexuais são ainda mais vaidosos que as mulheres, dissera-lhe Lacy, com ar de pouco caso, como se fosse só delas o direito natural à beleza. Acha envelhecer triste, sobretudo por que foi belo na juventude. Como não se lembra de ter se sentido atraído por homens feios, acredita que seu poder de atração desapareceu quase por completo.

 Nada de ilusões. Sente um cansaço imenso dos amores contingentes, das farras, das saunas, dos massagistas, dos meninos bonitos, em geral do interior do seu árido Estado, que se vendem por um jantar, uma boate, uma calça nova. No passado, chegou a se apaixonar por alguns, mas agora percebe que finalmente conseguiu domesticar o coração, pelo menos não corre mais esse tipo de risco. Deseja a lucidez, anseia pela lucidez, sabe que sem ela não aguentaria. Não vai permitir, não mais, que o furtem, como naquela vez que um menor de idade levou todas as suas roupas, enquanto ele dormia. Tem vontade de rir de si mesmo, lembrando que já foi vítima do "boa noite, Cinderela" pelo menos meia dúzia de vezes. Ser homem é complicado, ser homossexual é mais complicado ainda e ser um homossexual romântico é imperdoável, pensa.

Foram muitos casos, sem dúvida. Relacionamentos duráveis, só com Pedro. Sem contar, é claro, o que viveu com Ricardo. Que nome daria àquilo? Tinha catorze anos quando o conheceu, homem feito, professor de Filosofia. A descoberta. O prazer, os medos, a culpa. Até hoje é tomado pelo desconforto quando escuta referências aos seus textos, críticas a seus livros. Há uns cinco anos o procurou, na cidade onde mora agora, a dois mil quilômetros de distância da sua. Não aceitou o encontro, mal falou ao telefone. Você sabe, sou casado, tenho dois filhos homens, netos, abandonei esses encontros, não me relaciono mais com homens. Mas só quero conversar, entender, talvez queira saber mais de mim que de você. Não adianta, sinto carinho por você, gratidão, talvez, me ajudou numa época difícil da minha vida, mas não insista, não posso, entende? Não posso. Ah, gratidão. Os lugares-comuns de Ricardo, filósofo de meia-tigela. O jeito paternalista, até hoje, mesmo com alguém de cinquenta e oito anos. Gratidão, Ricardo? Depois de tudo? Como lhe dizer que jamais o esqueci inteiramente? O meu primeiro homem, por quem enfrentei Lacy. Quando soube, ficou furiosa, lembra-se? E as risadas dos meus colegas, no colégio? Todo mundo fazendo troça da bichinha adolescente, amante do professor de Filosofia. As frases jocosas nos muros do Centro Acadêmico, Rodrigo é veado, os desenhos grosseiros tentando reproduzir nossas posições no sexo, houve até a tarde em que nos espiaram, pela janela da sua casa. Não, não sou sua vítima, eu quis aquilo tudo. A paixão, de tão forte nem cabia em mim, mas não me venha com a palavra gratidão.

A chuva cai, muito grossa. É a primeira tempestade que enfrenta, experiência que acha fascinante. A alegria quase infantil, enquanto se deixa molhar. Diante da necessidade de encontrar um cajado mais adequado, pára debaixo de uma árvore. Corta, ali mesmo, um galho, que vai afinando com o canivete. Agora sim, a caminhada vai render mais. Só isso importa, chegar a Santiago. Esta noite fará o oposto do que preconizam as regras dos peregrinos: não procurará abrigos, quer apenas esticar o corpo sobre uma relva qualquer e dormir ao relento. Sob a luz das estrelas. O título do livro de Cronin, autor que apreciava na juventude, não lhe sai da cabeça. Por que não? Para alguém que já brincou tanto com o risco, o de agora lhe parece mínimo.

O urbano, o sofisticado e meticuloso Rodrigo, obcecado por limpeza, a ponto de sentir nojo de certos lençóis, depois do sexo, dorme assim mesmo, sem banho, todo sujo de barro. Acorda de madrugada e o mundo lhe parece enorme, há pequenos ruídos que se tornam fortes por causa do silêncio. Impressiona-se com a quantidade e o tamanho das estrelas. Espanta-se com a própria vitalidade, que desconhecia, em que pese o fato de estar quase entrando na terceira idade, expressão que detesta, por julgá-la uma fonte de humilhações. Prefere a palavra velhice, mais direta e despretensiosa, embora politicamente incorreta. Usa bem as palavras, conhece suas armadilhas, acostumou-se a pesar cada uma delas nas peças jurídicas.

Faltam apenas duzentos quilômetros. Conversou pouquíssimo durante esses dias, fez verdadeira operação despiste para se livrar de duas holandesas, que queriam andar ao seu lado. Grupo heterogêneo, o dos peregrinos. As holandesas estavam ainda mais vermelhas, por causa do sol. Perdeu a conta de quantas vezes teve de furar as bolhas dos pés, usando agulha. Na região mais monótona, a das mesetas, quase ficou desidratado por que se esqueceu de encher o cantil e só encontrou água muitas horas depois. Há que estar muito atento, no Caminho. As pequenas coisas assumem grandes proporções. Na verdade, não são pequenas. Juntas, configuram a possibilidade do êxito. Numa tarde de tempestade, teve de jogar fora a calça jeans, que pesava toneladas, molhada. Chega um momento que o único objetivo é diminuir o peso, a coluna não aguenta mais ser forçada, a nuca dói, as pernas se recusam a continuar. Deve ter perdido uns cinco quilos. Pelo menos para isso serviu, andar tanto. Tem vontade de rir alto dessa visão utilitarista, com a qual se sente muito à vontade, desde que começou a advogar para empresas. Não sente nenhum tipo de êxtase, tão comentado nos livros que leu.

Já passou por muitos lugares, incluindo a cidadezinha fantasma, infestada de cães. Seria a maior prova, pois desde pequeno tem um medo quase incontrolável deles. Viu alguns, mas nada que lhe lembrasse o diabo ou mesmo algum malefício. Apertou o cajado, pronto para defender-se, se necessário. Nenhum deles se aproximou, mantiveram-se juntos, a uma distância considerável. Os peregrinos evitam passar sozinhos por ali, em geral o fazem em grupos, mas Rodrigo, com taquicardia o tempo todo, seguiu só. Descobriu, afinal, que cachorros não são tão perigosos. Medo maior é o do resultado do exame de AIDS, que enfrenta a cada seis meses. Quantos amigos terá perdido para a doença, até agora? No princípio os contava, mas agora desistiu. Volta e meia surge a notícia de que alguém está contaminado.

Se tudo correr bem, chegará a Santiago dentro de uns quatro dias. Cansado de comer pão com queijo, nozes e chocolate, sonha com um jantar de verdade, regado a vinho. Quer deixar para trás as duchas nos abrigos, sempre meio frias e rápidas, por causa da concorrência, e tomar um banho demorado, com direito a sais perfumados. Gastou pouco no último mês e decide presentear-se com uma estadia no Hotel de los Reyes, o parador de Santiago. Hospedou-se em paradores numa viagem anterior, a outras cidades da Espanha. Prédios antigos, a maioria da Idade Média, não parecem hotéis, possuem cara de casa e jeito de casa, capazes de acolher os sentimentos de todos, por mais desesperados que sejam. Alma mais feminina, a dos paradores.

Na antevéspera de chegar à cidade, dá-se conta da presença de muitos peregrinos. Um rapaz moreno, de uns trinta anos, chama-lhe a atenção. Mancando, anda muito lentamente. Aproxima-se e puxa conversa, com um inconfundível sotaque andaluz. Não é propriamente bonito, mas suas raízes ciganas são facilmente identificáveis, em virtude do nariz grande e do tom de pele. Não sei como não nos encontramos antes. Não fiz todo o Caminho a pé. Além disso, depois que machuquei o pé direito repousei durante três dias e só depois retomei a caminhada. Você é brasileiro, não? Nasci em Granada, nunca morei em outra cidade. Aliás, nunca saí da Espanha, mas estamos pensando em fazer uma turnê pela América Latina, pertenço a um grupo de dançarinos de flamenco, sabe, não sei fazer outra coisa. E como é, morar em Granada? Não, ainda não conheço, tenho fotos da Alhambra, toda iluminada é belíssima, a arquitetura moura me encanta.

Fazem juntos o resto do trajeto, conversando com familiaridade. Javier parece atraído por ele, embora mais jovem quase trinta anos. O andaluz tem um sorriso aberto e natural, que inspira confiança. Conta-lhe que veio fazer o Caminho depois do rompimento com a noiva, integrante do mesmo grupo de dança. Queria tempo para si, além de ficar longe do local da despedida. Resolveu andar para pensar, sem a interferência dos amigos do bairro cigano, onde mora. Queria ter estudado, mas não teve oportunidade. Filho de dançarinos, aprendeu a arte menino ainda. Primeiro pensou em ser toureiro, mas faltou-lhe coragem, achou arriscado demais. O Brasil está incluído na turnê marcada para julho, o grupo se apresentará em quatro capitais diferentes, antes de viajar a Buenos Aires.

Rodrigo decide desmarcar a passagem para Madri, logo que chegar a Santiago. Depois das emoções da praça, da missa dos peregrinos e de dois dias de descanso, pretende aceitar o convite de Javier para conhecer sua terra. Uma semana na Andaluzia lhe fará muito bem, antes de voltar ao Brasil. Sempre quis ir a Sevilha, ver a torre da Giralda, estar em Córdoba, para ver o rio dos poetas. E Granada, quer vê-la toda, rua por rua. Não pode ser de outro jeito, não depois de Garcia Lorca ter escrito que "no hay desventura más grande que ser ciego en Granada".

 

 

 

 

 

Gardel e o Pagador de Promessas

 

 

Com seu vestido amarelo de náilon, bolsos bordados de flores rosa e azuis, ela havia saído da matinê, sem sequer reparar no pipoqueiro. O laço de fita no cabelo, amarelo como o vestido, estava todo amassado, de tanto ser puxado durante a projeção. Conseguira pagar o ingresso com o seu próprio dinheiro, ganho com a venda dos chuchus da rama que se espalhava sobre o telhado da casa. Na véspera, vendera um balaio inteiro para uma prostituta que falava o tempo todo, a boca de coração pintada de batom roxo "vou levar esses chuchus para a minha amiga de Suassuí." É bem verdade que havia quebrado várias telhas, na ânsia de colher os mais verdinhos. Mas isso o pai mandaria consertar depois, ou ele mesmo o faria, o importante é que juntara o dinheiro do ingresso para o Cine Alvorada, em cuja parede lateral estava escrito, em grandes letras azuis, "Aqui tem ar refrigerado".

Teria nove ou dez anos, que importa, e fora assistir ao Pagador de Promessas, filme tão triste quanto bonito. Saíra do cinema sentindo frio, o corpo arrepiado, de dó e de beleza, será que era isso mesmo? Aquele homem lindo carregando uma enorme cruz, querendo entrar a todo custo na igreja de Santa Bárbara, subindo a longa escadaria quase totalmente vertical, enfiara-lhe, estômago adentro, um rolo de barbante. Mas não era só isso, havia também a vontade de colocar a personagem, o ator no colo, o homenzarrão feito, de sobrancelhas grossas como uma taturana. A vontade de mimar o ator lhe dava um desassossego, uma aflição, ela lisa como uma tábua, ainda nem usava sutiã, mais aflita ainda porque ele se parecia com o homem mais velho, seu colega de classe, que, a pedido da mãe, lhe dava aulas de Matemática. O compenetrado rapaz a quem chamava, de brincadeira, de compadre Gardel.

Voltara para casa murcha, sentindo uma grande culpa, um vazio, uma tristeza pelo pagador de promessas? Ainda chovia fininho, mas o sol começava a sair, tardiamente. Ficou um tempão na ponte de cimento olhando o rio, tentando entender. De repente, não estava mais na sua cidadezinha, era a menina mais sozinha do mundo, não tinha a quem contar a vontade de chorar pelo pagador de promessas, tão parecido com o compadre Gardel. Queria evitar a volta para casa, para não responder às perguntas, não queria que a irmã curiosa lhe perguntasse o que achara do filme, na verdade não tinha opinião formada, só sentia muito o fato de Zé não ter podido entrar na igreja com a sua cruz, o padre não permitira, desejava poder mudar o desfecho daquela história, sonhava ser a guardiã da igreja, para abrir a porta, dizendo, "entre, Zé, descanse, ponha a sua cruz em pé, perto do banco".

Alguma coisa mudara, coisa séria, e ela não entendia o quê, olhava as ruas e as casas de outra maneira, como se não morasse ali, como se não pertencesse àquela cidade e nem a nenhuma. Só conseguia ouvir a multidão seguindo Zé, algumas pessoas rindo do homem quase nu que insistia em continuar com a cruz nas costas. O corpo bonito de Zé do Burro, parecendo mesmo o corpo de Jesus, pernas magras e ágeis, ela quase vomitando de tanta confusão entre a culpa, o remorso e a vontade de apalpar as pernas do Zé ou do próprio Jesus na cruz, morder-lhe o pescoço, antecipando o prazer que isso lhe daria.

Parava a cada rua, fingindo que procurava alguém nas casas, fazendo de conta que apreciava os botões das flores molhadas do caminho, acariciava até os pés de lampião, flor mais besta, tudo era motivo para retardar a sua chegada. O seu rosto queimava, temia que estivesse vermelho, revelando a sua confusão interna. Zé do Burro tinha idade para ser seu pai, Jesus então nem se fala, homem mais antigo, e o compadre Gardel era um marmanjo de aliança no dedo direito, brevemente se casaria com Gracinha, colega de sala de ambos.

Contava os passos mentalmente, devagar, andando pesadamente, como se ajudasse Zé a carregar a cruz. Era isso mesmo que queria, ser a sua ajudante, defendê-lo da humilhação de tentar entrar numa igreja cujo padre não o queria, ele desprovido de tudo, sem conseguir encarar a multidão que caçoava dele, que gargalhava de puro júbilo de ver um homem ser rebaixado, mais um entre tantos.

Chegou o momento em que não podia retardar mais, sua casa era muito perto do cinema. A porta estava aberta, mas não havia ninguém em casa, às vezes a mãe saía assim, sem avisar. A água tinha invadido o pequeno corredor ao lado da casa, que chamavam de beco. Sem tirar as meias soquete brancas, pegou o rodo e foi tirar a água lamacenta do beco, fazendo várias viagens até a calçada. Depois foi para o quintal buscar a normalidade da mangueira e da horta, reparando nos raios de sol fraquinhos que começavam a sair, depois da chuva que caíra durante horas. Uma areia escura cobria tudo, brilhando como malacacheta, e ela ficou de cócoras, imóvel, suspendendo a saia rodada do vestido engomado.

Então, viu. A coisa tinha mais de dois palmos, andava — ou melhor — rastejava debaixo da areia fina, mostrando parte do corpo sem cabeça. Era branca, de um branco meio rosado, e tinha uma espécie de anéis ao longo do corpo. Uma minhoca gigante, gordona, amorfa, a coisa mais nojenta que já vira. Então era assim, a minhocaçu? Os fracos raios de sol pareciam ter-lhe restituído a coragem de mostrar a cara, a cara não, que não tinha, mas o corpo molengo.

Mudou de lugar para olhá-la, acompanhando o seu rastejar vindo das sombras da mangueira velha. Pensou em matá-la com um bambu, mas seria nojento demais descobrir-lhe as vísceras, ou fosse lá o que tivesse dentro. E de repente a minhocaçu se parecia com o Zé do Burro, engatinhando com sua cruz na escadaria da igreja de Santa Bárbara.

Ainda não tinha ido à missa, sua obrigação aos domingos. Mas sabia que não poderia ir, seria uma heresia ficar dentro da igreja pensando que as coxas de Jesus eram as do Zé maltrapilho, ou quem sabe as do compadre Gardel. Melhor fugir da missa, mentir para a mãe que já tinha ido na véspera. Jesus não perdoaria essa heresia, que podia ficar pior ainda se pensasse no umbigo dele, parecido talvez com o do Leonardo Villar, o ator que interpretava o papel de Zé do Burro, que tinha um umbigo tão bonito que lembrava a corola de uma flor. Queria poder por o seu dedo mindinho naquele furo, medindo-lhe a profundidade. Devia ser macio como copo de leite, a sua flor predileta.

Depois escutou vozes na casa, percebendo que a mãe já havia voltado, com alguma visita a tiracolo. Lavou o rosto no tanque do quintal mesmo, antevendo a cara de esfinge que teria de fazer, para passar despercebida e tratou de tirar o vestido amarelo, colocando uma calça velha.

Alegre com a companhia da visita, a mãe começou a refogar o alho para o jantar. A menina não podia pensar em comida, com ânsia de vômito. Distraída como sempre, a mãe nem lhe perguntou onde tinha ido, nem reparou nas suas súbitas olheiras. Mais tarde pôs a sopa na mesa, feita com macarrão grosso e muita pimenta do reino.

 Deitada, ela fingiu que dormia, enquanto os irmãos faziam barulho, batendo as colheres nos pratos esmaltados. E imaginou que os fios compridos se alargavam dentro da panela, transformando-se em minhocaçus. Então soube que vivera uma coisa nova, ainda sem nome, que estaria grudada nela para sempre.

 

 

 

 

 

A oitava onda

 

 

Vestida com um conjunto de linho azul, sandálias pretas de salto alto, Juliana sobe as escadas, devagar. Lutando contra o nervosismo, inspira e expira lentamente, repetidas vezes. Passou duas horas frente ao espelho, tentando disfarçar as olheiras com um corretivo bege claro. Não costuma usar perfume francês, lhe dá dor de cabeça, mas abriu uma exceção dessa vez, não economizando no Madame Rochas. Resolveu ignorar a hipersensibilidade de seus olhos ao rímel, caprichando na pintura dos cílios, com a escovinha minúscula. Está de meias finas para senhoras, como a irmã gostava de brincar. A saia justa lhe dificulta um pouco o andar, agarrando-se às suas meias, causando-lhe desconforto. Mas agora é tarde demais, não dá para voltar e trocar, pois se aproxima a hora de sua reunião com o famoso editor, marcada com um mês de antecedência.

Havia chegado à cidade na véspera. Nos compromissos desse gênero, gosta de fazer tudo com folga de horário, adepta do ditado "o seguro morreu de velho", que tanto agradava à mãe. Hospedada no apartamento de uma amiga, dormira num colchão duríssimo, o que a impedira de ter um bom sono.

 Para conseguir marcar o encontro, passara meses fazendo ligações interurbanas, ouvindo quase sempre que o todo-poderoso não podia atender, ora estava em reunião, ora recebia escritores ou simplesmente viajara. A cada vez, sentia-se muito mal. Disfarçava, tentando ocultar da secretária dele a sua decepção, a sua ciência de que ele estava, sim, simplesmente não queria atender. Se tivesse podido escolher, provavelmente teria abdicado de sua aguda intuição. Mas uma escritora que ninguém conhece, especialmente sendo jovem, deve ser capaz de agüentar ouvir quantas negativas sejam necessárias. Ofício estranho este, em que é preciso ter duas qualidades opostas, na mesma proporção: uma sensibilidade refinada e um couro muito grosso, a fim de se proteger dos golpes que se recebe. Dotada de grande persistência, é dessas que não dão o braço a torcer. Ao final, sente-se recompensada por seu estoicismo, pois conseguira marcar a reunião. Obtivera o que lhe parecia, a princípio, impossível: ele lera os originais do seu romance e ela viera a seu convite, segundo a secretária para assinar o contrato de publicação.

Em sua generosidade, a amiga pusera a seu dispor o apartamento minúsculo onde morava, durante o tempo que quisesse. Está, como ela, radiante com a idéia da assinatura do contrato e, para celebrar, comprou um champanhe da melhor qualidade, embora o modesto salário. No momento, espera-a, em casa, para comemorarem juntas. Convidara até o primo para participar do brinde. É sexta-feira e ficará na cidade litorânea até domingo, disposta a acompanhar a amiga à praia. Havia contado a notícia à família e aos colegas de trabalho, que esperam sua volta com impaciência, para novas comemorações. Sentia-se tão animada com a proximidade da assinatura que até comprara uma caneta para a ocasião, por vergonha de usar uma bic.

Faltam poucos degraus para chegar às salas da editora. Esperava algo diferente dos corredores escuros que encontra, estranhou os elevadores parados num dia útil. Na entrada, antes do pequeno saguão que serve de secretaria, há caixas e caixas de livros, que dão ao ambiente uma aparência de desordem. Apresenta-se, tentando disfarçar o nervosismo, esforçando-se para aparentar um ar despreocupado, casual. A secretária lhe pede que espere, pois o editor está muito ocupado, terminando uma leitura. Há mais funcionárias, uma delas apregoando as suas próprias virtudes, entre as quais se destacam a sagacidade para descobrir novos talentos e a capacidade de prever o sucesso editorial de uma obra. Presta atenção à conversa, para distrair o coração, pelejando para que não bata tão fortemente, com medo de que possam ouvir.

Seu conjunto de linho azul e suas sandálias de salto alto parecem-lhe completamente inadequados ao ambiente empoeirado. As moças vestem calças jeans, camiseta e calçam tênis. Sempre teve medo de estar diferente dos demais, especialmente de parecer chique num lugar simples. Aprendera no interior que se trata de uma gafe imperdoável, que só serve para dar a aparência de "macaqueira bem-arrumada". O saguão é fechado, sem janelas, abafado. Acha que exagerou no perfume forte.

Finalmente, toca o interfone e a secretária a acompanha à sala de um homem enorme, gordo, cachimbo na boca e suspensórios. Dotado de boas maneiras, leva-a até a poltrona em frente à mesa, enquanto, com uma voz forte e meio rouca, fala sobre o clima, inesperadamente quente para essa época do ano. Engana-se, ou está nervoso também? Por que estaria, se é o dono da situação, da sala e, no momento, quase que de sua vida, de seu futuro?

Após uma série de rodeios e depois de perguntar sobre a vida em sua cidade, ele lhe diz que a editora não vai publicar o livro, que não pode fazê-lo, pois seria alvo de uma série de críticas. Sem dúvida, trata-se de um livro ótimo, que infelizmente não é ótimo. Esforça-se para compreender a frase, saber os defeitos, dispõe-se a reescrever, se for possível. Ele responde que não sabe dizer, estaria entrando em seara alheia, isso é com os escritores, cabe exclusivamente a eles saber onde estão as fragilidades de seus textos. Insiste, demorando a acreditar que não terá a explicação verdadeira para a mudança de atitude. Ele não lhe pede desculpas, não reconhece ter havido precipitação de sua parte, mandando a secretária falar em contrato quando nada estava decidido, ainda. Faz questão de desconhecer as despesas, há as passagens de avião, compradas no crediário, a falta ao trabalho, na verdade, duas, para poder estar ali à hora marcada. Desconfia que ele não havia lido, que só veio a fazê-lo minutos antes de sua chegada, a tal leitura mencionada pela secretária talvez fosse a de seu livro. O editor começa a andar pela sala, a passos largos, sem saber o que fazer com o próprio corpo, ou talvez para que se apresse, dando o encontro por terminado. Então não há esperança de publicação, não é? O seu é um livro ótimo que não é ótimo, entende? Despede-se sorrindo e, na saída, em tom conciliatório, um tanto falso, lhe diz escreva outro livro, não desista, sim?

Cumprimenta as funcionárias, apertando a mão de todas, ignorando o ar indiferente da que apregoa o próprio faro para descobrir escritores, torcendo para que não tenham ouvido a conversa, sentindo o rosto quente e vermelho.

Na escada, ergue a coluna dizendo a si mesma o que ouviu a infância inteira, menina, levante o corpo, olhe a corcunda! Só então percebe a iminência do desabamento de um temporal, o vento que entra pela portaria levanta-lhe a saia. Apertando ao peito o envelope pardo com os originais de seu romance, finalmente devolvidos, começa a descer a ladeira, a fim de buscar um táxi. Poderia tê-lo chamado por telefone, na editora, mas a vontade de sair depressa foi maior do que tudo, nem se lembrou de fazê-lo. Grossos pingos começam a cair com força e, em minutos, está toda molhada, agora sim a saia grudou-se completamente às pernas, o salto agulha das sandálias parece-lhe ainda mais ridículo, ensopada como está.

Desce a ladeira devagar, não há marquises à vista e nem outro lugar para se abrigar. Preocupa-se com o desfazimento do envelope, possui uma cópia em casa, mas não quer que esta se deteriore. Sabe que vai ter de chorar, é imperioso que o faça, mas seus olhos estão tão secos como a garganta, irritada pelos (muitos) cigarros dos últimos dois dias. Primeiro quer construir uma versão para o que aconteceu, arranjar uma história para contar a si mesma, e para isso é necessário estar lúcida, de olhos secos, ah, lucidez, palavra que adora, lhe parece cada dia mais difícil. Uma espécie de anestesia toma conta de seus pensamentos e raciocinar, nessas condições, é-lhe quase impossível.

O vento está mais frio, à medida que o sol desaparece. Como tem de andar muito devagar, equilibrando-se nos paralelepípedos da rua antiga, sente-se congelar. E então se lembra do rímel passado com tanto cuidado, a essa hora é quase certo que tenha escorrido completamente, manchando o seu rosto de negro. Começa a imaginar como vai dizer à amiga que não há contrato nenhum. Detesta decepcioná-la e tampouco quer entristecer o primo, tão gentil. Gostaria que não ficassem chocados como ela e se pergunta de que maneira poderia lhes dar a notícia, causando-lhes o menor dano possível.

A ladeira parece não ter fim. Continua caminhando, agarrando-se aos muros e portões que encontra. Enfim, a avenida. Em alguns minutos, passa um táxi. Chegando ao prédio da amiga, não entra no edifício. Sabe que tem de fazer algo, antes. Anda dois quarteirões, até à praia. O temporal diminuiu, agora é só uma chuva fria e fina. Livra-se das sandálias e entra na água. Retira o calhamaço do envelope e vai soltando as folhas, uma a uma, lentamente, como se fossem rosas brancas. Finda a oferenda às divindades do mar, decide tomar um banho. O corpo inteiro na água, espera a passagem das sete ondas. O ritual da purificação está completo. Mais leve, já pode sair, pois sabe que a oitava onda virá em segundos, com suas transformações e recomeços.

 

 

 

[imagem © stephanie asher]

 

                                                         

 
 
 
 
Rosângela Vieira Rocha é jornalista, professora e escritora. Estreou na literatura com o romance Véspera de lua, Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG-1988. Tem quatro livros para adultos: Rio das pedras, que obteve a Bolsa de Criação Literária da Secretaria de Cultura do DF em 2001, na categoria novela, Pupilas ovais (contos) e Fome de rosas (romance). Em 2008, começou a escrever também para crianças e já publicou quatro livros: A festa de Tati, Dias de santos e heróis, Três contra um e o juvenil Nem tudo foi carnaval. Brevemente, serão lançados os infantis Janaína, a bailarina e O vestido da condessa. Ministra oficinas literárias e faz palestras sobre literatura.