© bel pedrosa
 
 
 
 
 
 
 

R.S.V.P., E.U.A., I,B.G.E., P.M.S.P., M.A.S.P., S.P.F.C., I.B.O.P.E., C.I.A. O que todas essas palavras têm em comum é o fato de já terem entrado para o nosso vocabulário cotidiano; não nos causam mais estranheza. Muitas vezes nem percebemos que são formadas por iniciais; são, portanto, palavras já iniciadas em nosso idioma. É justamente com o título As Iniciais que o escritor carioca radicado em São Paulo, Bernardo Carvalho, procura abordar a questão de como as pessoas e os fatos são ou não são o que parece que são.

 

"Bom Companheiro", "Bastante Comum", "Before Christ", B. C., ou Bernardo Carvalho, se preferirem, são algumas das acepções a que a segunda e a terceira letras do alfabeto nos remetem. E é em um jogo em que apenas inicia os substantivos próprios com vogais ou consoantes solitárias, que Carvalho nos apresenta a um universo que não nos é possível ser desvendado por completo. As iniciais aqui atendem por várias letras: A., D., C., R., M., V.M.D.S., e Bernardo Carvalho não caminha sozinho nesse jogo. Há, na literatura, uma plêiade de autores e de personagens conhecidos apenas por suas iniciais. Uma das mais famosas, no Brasil, é, sem dúvida, G.H. de A Paixão Segundo G.H.. de C.L. (Clarice Lispector). Aliás, G. e H. são duas das personagens presentes em As Iniciais.

 

O livro é dividido em 2 partes: A. e D., a quem o autor dedica o romance. São duas das várias personagens que ameaçam se revelar na história. A. seria o antes e D., o depois? Seriam essas iniciais apenas uma referência à linearidade da sequência temporal? Mas o tempo é um artifício que acreditamos enxergar quando olhamos para o relógio, que pode ser apenas a sua inicial. É, portanto, em terreno bastante volátil que caminhamos nesse livro de B. C., pois aqui nada pode ser afirmado com certeza. As conclusões não se sustentam.

 

A história é escrita por um narrador que a tudo observa procurando juntar os cacos de informação que colhe aqui e alhures. Em um mosteiro antigo e abandonado, ele, em um jantar com doze pessoas, recebe de um estranho uma caixa com quatro iniciais cravadas na tampa. E inicia uma verdadeira odisseia interior ao tentar decifrar o significado daquelas letras. Uma década depois acredita ver, durante um almoço em uma fazenda, um dos personagens que esteve presente no jantar no mosteiro e pensa que esse sujeito poderá fornecer-lhe o portal de acesso ao conteúdo embutido nas iniciais da caixa.

 

Os números e as situações remetem a um cristianismo involuntário: há, ao redor de uma mesa doze pessoas. O espaço é um mosteiro. Há, sobre a cabeça de Cristo, uma sequência de letras — I.N.R.I. Há, acima de tudo, a dúvida, a possibilidade de um engano e uma busca pela verdade. E é exatamente nessa busca que o leitor acaba se perdendo, pois a verdade não aparece de maneira óbvia. Aliás, é possível que ela não apareça em momento algum, pois o que nos parece ser a verdade em um momento é logo negado no momento seguinte. O A. (antes) apaga o D. (depois).

 

O sentido religioso se dá, metalinguisticamente em As Iniciais, pelo próprio fato de que o narrador é quem cria as personagens. E o ato de criação, a ficção, é, em última instância, uma mentira. A existência de tudo não passa de uma hipótese. Os fatos descritos na primeira parte (A) se transformam em hipóteses quando são sobrepostos aos fatos narrados na segunda parte (B). Nesse momento os olhos do leitor são invadidos pela repetição de duas palavras: o advérbio de dúvida talvez e a conjunção condicional se.  O idealismo romântico da primeira parte dá lugar a uma dúvida shakespeariana na segunda.

 

Tudo nessa obra de Bernardo Carvalho são aparências. A vida aqui é uma constante encenação, ou uma brincadeira, em que colocamos a realidade a serviço da ficção e perdemos a noção do que é real e o que é fictício. A mentira, a ficção, a falsificação são as cores com que as páginas de As Iniciais são pintadas. A pintura de uma paisagem não é uma paisagem; o nome ou a inicial de um personagem não é um personagem: um personagem é uma máscara. Nesse livro, que é um exercício metalinguístico, ouvimos a voz do personagem M. nos confidenciar: "Há coisas em literatura que não devem ser ditas". O autor Bernardo Carvalho segue literalmente esse conselho que o narrador de A. I. cita do seu personagem. Existe nesse trabalho literário uma multiplicação de seres, e a unidade se pulveriza — ao estilo de Fernando Pessoa.

 

O labirinto em que se entra ao ler essa obra pode, sim, ser uma brincadeira, uma mentira. As mentiras e as dúvidas estão aqui colocadas com o intuito de seduzir o leitor, que, ciente de tal processo de sedução, se vê incapaz de resistir a tamanha força literária de Bernardo Carvalho. Afinal, como ele mesmo escreve: "A verdade não atrai, só afasta". B. C. nos conta uma história em que, para entendê-la, é preciso haver um pacto com quem a lê: que ambos concordem que haja não a suspensão da realidade, mas a suspeita da verdade. E tal pacto pressupõe que essa técnica sirva para adiar o desfecho da história, eternizando a chegada da resposta da pergunta sobre o significado das iniciais — um pouco como a resposta "Godot" eterniza a real busca do significado da espera que Samuel Beckett propõe.

 

Nenhum local nem nenhuma pessoa são revelados por inteiro. Ao apenas definir personagens e situações pelas iniciais, o autor se esconde na confortável zona do enigma. Autor, narrador e personagens se disfarçam sob o mesmo escudo alfabético. E convidam o leitor para participar dessa iniciação. Com confusas letras M.A.I.Ú.S.C.U.L.A.S. Você aceita o C.O.N.V.I.T.E.?

 

 

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O livro: Bernardo Carvalho. As Iniciais.

Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1999, 136 págs., R$ 34,00

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junho, 2013