gato negro/azul (detalhe) | ivan cardoso | ready made | 156x86 cm
coleção particular | belo horizonte | mg | brasil | 1991

 

 
 
 
 
 


 

O poema

 

 

Enquanto o gato se espreguiça na cama 
alguma guerra continua quebrando um horizonte 
uma mãe perde seu filho 
um marido sua esposa 
as Coreias não se unificam 
e a religião não apazigua a ira por um Cristo 
 
Em algum lugar do mundo 
enquanto o gato espreita a casa 
uma criança nasce para outras 
milhares morrerem de fome 
um homem é estilhaçado 
e o mundo revira seu estômago 
 
Os grandes homens não estão preocupados  
com nada disso. Sentem-se bem enquanto as 
calotas polares aumentam o nível do mar 
que um dia irá tragá-los num só gole de sede 
acreditam na beleza de uma ogiva e enxergam  
uma grande flor atômica que embeleza campos secos 
 
Os grandes homens preocupados com seus gatos 
e enquanto o gato se espreguiça 
eu tento fazer com que este poema 
embora pouco 
seja a fração de um grito amordaçado 
(que também pouco importa)  
 
Enquanto o gato dorme suas sete vidas 
os (supostos) grandes homens acreditam em quatorze 
dizimam pequenos outros homens que  
possuem apenas uma 
e tentam fazer dela 
uma existência inteira de glória.

 

 

 

Razão

 

 

O poema foi pensado para ser uma força contra a falsa imagem dos grandes ditadores, que se escondem atrás de uma pureza manchada e de falsas iconografias. Duas fotos serviram como mote: Lênin demonstrando respeito por seu gato e Hitler por seu cachorro. São momentos que falsificam a sensibilidade de seus fotografados, que só demonstram uma maldade maquiada pela intenção de mostrar cuidado, um cuidado até plausível, mas não suficiente. Enquanto milhares morreram nas guerras, nas prisões, justamente por terem voz, a calmaria paira sobre a vida dos supostos grandes homens enquanto eles maquinam como seguir em frente. Para isso a poesia serve. Deve ter sangue frio. Tudo cabe no poema, até a gravidade da vida. Ele deve mudar o momento, deve surgir como um grito mesmo que poucos escutem. A poesia é o bradar silencioso do poeta.

 

 

abril, 2013
 
 
 

Angel Cabeza (Rio de janeiro/RJ). Poeta, escritor e jornalista. Autor do livro de poemas Vidro de Guardados (2010). Prefaciou o livro Novas Histórias da Velha Lapa (MRB, 2009) do cineasta, maestro e compositor de Daniela Mercury, Dudu Fagundes; escreveu as orelhas do livro de fotografia Poesia Visual (Alta Books, 2010); participou com poema na 10ª Antologia Painel Brasileiro de Novos Talentos (CBJE, 1998), da Agenda Poética Celacanto (Celacanto, 2011) e do e-book de microcontos Geração em 140 Caracteres (Geração Editorial, 2012). Possui textos publicados em mídias impressas e digitais, no Brasil e Espanha. Como jornalista, assina mensalmente uma coluna de crônicas no blogue da Editora Alta Books e atua como produtor editorial e gráfico.