A emboscada

 

Altas horas

 

Todo o silêncio se cala

e ouve o som de minha voz

 

         A fera arma o golpe fatal

 

Como por encanto

sua ira se encarna em mim

sem que sequer a veja

 

         Das altas esferas

         a fera

         espreita

 

Meus olhos se avermelham

a saliva espuma

 

         A fera aguarda

         sem pressa

 

Sua imagem

se afoga no sangue

rubro rio caudaloso

a leste de meu corpo

 

         Foi dado o golpe

Falhei?

 

 

 

 

Ritual

 

Cruzo a nado o mar de seu corpo

ao som de silêncios e sussurros,

ou serão anjos tocando cítaras?

O tapete da sala flutua sob mim,

pacificados os espíritos que me habitam.

 

O que importam os males do mundo?

O mundo é a ilha onde naufrago,

entre almofadas, afagos e sons.

Discos voadores passam pela janela,

apesar de minha vida comum.

 

 

 

 

Cenas & cenários

(versos para (in) compreender a solidão humana)

 

Fogem da lua os cavalos brancos de Dali

e vêm pastar na rua

os restos de fondue.

 

Rompem os círculos os relógios na primavera.

A consciência humana se desfaz

sob o sol de outras eras.

 

Há sinais de vida nos objetos.

Um homem invisível

vive na alma de um castelo.

 

Os mistérios perdem-se no karma.

Dali retorna insone

à noite de Gala.

 

A solidão é azul e secreta

como olhos fechados.

Um corpo feminino se desnuda e mira

o infinito

que penetra pelas frestas

das janelas.

O silêncio é branco e dói.

Uma estrela subverte a solidão.

 

 

 

 

Escura paisagem

 

Noite sem estrelas:

um cego

         sentado na ponta da lua

identifica a manhã

         pelo canto dos pássaros

nos galhos das árvores

         decepadas

 

 

 

 

[Do livro O delírio dos búzios. Brasília: Editora Varanda, 1999]

 

 

 

 

Heróis do cinema

 

para Marco Túlio Costa

 

Não vamos a pé, vamos a cavalo

ou a bordo da nave espacial,

até o planeta Arcabalansinviluzidálio,

onde escondemos nossas tralhas

no baú de sonhos,

perto do Texas, perto do Kilimanjaro.

 

O mundo precisa de heróis,

cá estamos nós.

Criadores de caubóis e seus cavalos,

viajantes espaciais, avatares.

Pintores do arco-íris, guerreiros de magias

do lápis de cor e da caneta bic.

 

Todas as vidas cabem no cinema,

imensa estrada vazia

no braço do lençol suspenso no armário.

O papel colado com grude de polvilho,

a luz do projetor

e a família à espera do clímax.

 

No quarto escuro os deuses do papel

apresentam sua nova obra-prima.

 

 

 

 

[Do livro Arqueolhar. Brasília: Editora LGE, 2005]

 

 

 

 

Sentidos

 

Olhos:

dois peixes abissais

que mergulham à procura de Deus.

 

Boca:

chave para a revelação

caminho em busca dos sete mistérios.

 

Jardim:

pomar da fruta mágica

alimento que dá forma à alma.

 

Mãos:

o fim das diferenças

carícias subvertendo desencontros.

 

 

 

 

Pensares

 

Penso em pescar palavras.

 

A noite

é um rio que corre na alma.

Palavras são peixes,

restos de sonhos,

lembranças do destino,

bússolas,

astrolábios,

astros  que passam,

lábios em que viajo.

 

Penso em pescar palavras

e seus sentidos ocultos,

aqueles que aparecem

nos sonhos.

 

O amor é a água desse rio.

Arrasta luares, perfumes,

chuvas, silêncios, texturas.

Lava que lava o vazio.

 

Penso em nada,

voo, pênsil, nado.

 

Há luz nessas águas,

branca neblina luminosa

 

Não há eclipses

só olhos fechados.

 

Penso em palavras,

cores e sons.

Chuvas, areias,

nuvens, talismãs.

Um jardim,

um azul,

uma quimera,

nudez,

textura,

areia,

tez.

 

 

 

 

Repensares

 

Às margens desse rio

nascem sorrisos,

uma flor doce.

 

Sobre a areia

aveludada,

a fruta perfumada

que me adormece.

 

Penso em palavras,

penso em surpresas.

 

Estremeço

quando penso

em estrelas.

 

 

 

 

[Do livro Poemas por amor. Brasília: Editora Varanda, 2007]

 

 

 

 

A criatura

 

No princípio, o inimaginável.

Até acender-se

a primeira palavra do poema.

Há um mundo a se compor,

universo com princípio e fim.

Não o fará um soberano absoluto,

mas um deus aleijado,

iluminado e pecador.

 

Depois de três bilhões de anos

a criatura o criará,

e em segundos o preencherá

com bombas e sinfonias,

enquanto se afoga

em seus próprios dejetos.

 

Virá a fome,

a boca a devorar os próprios dentes,

a ilusão da diáspora.

Eis o homem e seu caminho,

supremo paradoxo

entre redundância e metáfora,

entre a joia lapidada

e a demolição dos sonhos.

 

 

 

 

O cavalo em chamas

 

Um cavalo selvagem,

branco como o assombro,

carrega uma labareda

a atiçar-lhe o lombo.

 

Mergulha em nevoeiro

onde uma ponte houvera,

pênsil sobre o penhasco

arrimo de corredeiras.

 

Este cavalo em  chamas

galopa entre as brumas

à margem do precipício

por uma trilha sem rumo.

Atravessador de abismos,

o cavalo meio pássaro

enfrente dor e cansaço

e a inépcia para o voo.

 

O fogo, essa estrela

cadente de encontro ao rio,

ilumina o cavalo peixe

sobre as águas bravias.

 

Para enfrentar o mistério,

incêndio no precipício,

resta a luz do homem

entregue à montaria.

 

Em seu fim e seu início

a vida costura as rotas

nos passos iluminados

em caminhos sem respostas.

 

Essa assustadora chama

atiça a cavalgada

sobre o rio ignoto

que encanta e ameaça.

 

O cavalo porta as almas

de peixe, pássaro e fera.

E essa eterna chama,

alimento que quimeras.

 

 

 

 

O inseto

 

O vazio além da janela

é a vida que surge,

repentina,

em plena madrugada.

 

Minha insônia torna real o mundo

ainda que ninguém creia

nesta presença solitária.

 

Luzes são miragens

a cada posta emanadas.

Não há gente, não há vento,

não há nada.

 

No fundo do escuro,

apenas um inseto,

em seu dia único,

ao bater as asas

faz mover-se o universo.

 

Um vulto me observa

de alguma fresta.

Anjo ou demônio,

sobrevive sem o alimento

de minha crença.

 

Ouve meu  pensamento

tornando verossímil

a existência de tudo.

 

Seu olhar inexpressivo

sabe que assim adio

por mais um dia

o fim do mundo.

 

 

 

 

Náufragos

 

Náufrago em si mesmo, o homem

lança mensagens em garrafas.

 

Mas o mar só devolve o silêncio

à solidão de seu corpo.

 

Sem um porto onde se salvar

toma de outra garrafa

e nela constrói um navio.

 

Só lhe falta, agora , o destino.

 

 

 

 

Olhos urbanos

 

Luz vermelha sobre o tráfego

olhos de um mago

enfeitiçam a rua.

À espera

motores urram.

 

O sol aflige

tentativas de mansidão e paz.

 

Notícias, notas musicais,

apelos mundanos,

janelas fechadas.

Comércios, lábias. Ledos enganos.

 

No asfalto

um olhar persiste

e atravessa o vidro.

O mundo lá fora insiste

em jorrar sobre teu esconderijo.

 

Nada mais humano, aquele animal e sua ânsia,

memória de um mundo sem registro.

Viaja contigo quando a luz verde te desperta e salva.

 

Apenas o olhar de uma criança.

 

 

 

 

[Do livro Exília. São Paulo: Dobra Editorial, 2013]

 

 

 

[imagens ©salvador dali]

 

 

Alexandre Marino. (Passos-MG, 1956). Vive em Brasília desde 1982. Publicou seis livros de poesia: Exília (Dobra Editorial, São Paulo, 2013), Poemas por amor (Varanda, Brasília, edição fora de mercado, 2007), Arqueolhar (LGE Editora, Brasília, 2005), O delírio dos búzios (Varanda, Brasília, 1999) e Os operários da palavra (Batanguera Editora, Belo Horizonte, 1979). Tem contos e poemas publicados em várias revistas, jornais e sites. É jornalista e publicitário. Em Brasília, foi repórter do Correio Braziliense, Jornal de Brasília, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo. Desde 2006, é funcionário do Ministério da Educação. Mantém o blog Poesia Nômade (www.alexandremarino.com), voltado para divulgação e reflexão sobre cultura, literatura e outras artes. No Facebook, criou a página Alexandre Marino Versos e Prosas, exclusivamente sobre poesia.