O fazer

 

O fazer se faz

em facetas

em bem descuidados

novelos

 

o fazer se faz

em sabê-los

e sabendo-os

desfazendo

as falhas

apagando as folhas

fitando as fatias

 

o fazer se faz

em passados

e se desfaz

em futuros

em focos e filtros

 

o fazer se faz

nas delicadezas

e nos delírios

nas brigas de foice

e na santa paz

 

 

 

 

. com

 

Eu estou aqui

você está aí

Se acaso eu vou para aí

você vem para cá

Há entre nós, inconteste

um computador

– barricada –

que nos serve de atalho

para a fuga do contato

 

é o desamor.com

 

 

 

 

Calendas

 

Guardo dentro de mim

um calendário

uma calêndula

como herança

amarela e branca

para o tempo que nunca há de vir

 

Para as calendas gregas

o esculpir do coração

como se um parto fosse

uivando à lua

como vagabunda loba

                      boba

                      doce

esperando atrás das horas

marcando o calendário interior

o dia do casamento dos meus braços

com a boemia do tempo

que nunca há de vir.

 

 

 

 

 

Doce

 

Algo tão doce

algodão doce

algo tão sério

algo mistério

naquelas meninas

de Minas

algo que se cala

e que se murmura

se fala e se procura

 

 

 

 

 

Janela Nova III

 

Que silêncio

absurdamente grande

de se ouvir os ruídos do dia

como a esmerilhar o coração

 

nem a catira

que se ouve ao lado

nem a cara dos soldados

nem as palmas que se batem

as mãos

 

nem o canto esgoelado

dessa dança tão goiana

fazem parar a falta da mão sincera

nem encher de sons essa solidão

 

Mais além, gatos se enroscam nos telhados

e um casal de corujas festeja a noite

vista da solidança da minha janela.

 

 

 

 

[Do livro Conversa com Verso. Brasília: Editora LGE, 2006]

 

 

 

 

 

Berço

 

Dentro da minha caneta

cento e quinze palavras

prestes a explodir.

 

Antigamente

eu mimava as palavras,

domesticava as vírgulas

controlava tudo.

Agora, tudo foge ao meu controle.

 

Daí nascem os versos.

 

 

 

 

 

Consciência

 

São apenas olhos

aqueles que me olham

e não me amedrontam

 

São pontas de um tempo

que não reconhece futuro

e o passado é apenas

a geometria do escuro.

 

E mesmo que não conheças

o mês de junho,

deixe a mala pronta,

rasgue os rascunhos,

incinere os sapatos

e que tua voz esteja firme

para quando deixares para trás

o rebanho que te oprime.

 

 

 

 

 

Enxurrada

 

E de repente

essa súbita vontade

de chorar a vida inteira

em uma única lágrima.

 

 

 

 

 

A jangada

 

A jangada era

um ponto no longe

muito longe

quase na borda da terra

 

Levava uma leva

de esperança

um pouco de pranto

e de glória

que era para ensinar o mar

a fazer suas ondas

 

pescar era destino

voltar era outra história

 

 

 

 

 

Recado

 

Os oceanos dizem tantas coisas...!

Eles cortam o sim e o não

e sem mais nem menos

mandam uma onda

que inunda de abismos.

 

 

 

 

 

Saída

 

O que estraga a vida

é a falta de saída de emergência,

uma exit, uma uscita,

uma sortie

ou um bilhete de despedida:

Parti.

 

 

 

 

 

Tocata

 

Agarro-me à poesia

para que ela não me deixe

 

a nós

 

 

 

 

 

Fim

 

Era apenas um corpo

encolhido

apenas um sopro

 

um toque de recolher.

 

 

 

[Do livro Risco. Brasília: Editora Verbis, 2013]

 

 

 

[imagens ©michelle monique]

 
 
 
 
 
 
 
 

Ana Maria Lopes. (Rio de Janeiro-RJ). É jornalista formada pela Universidade de Brasília. No jornalismo trabalhou na TV Nacional de Brasília, TV Alvorada e no jornal O Globo. Trabalhou no Jornal da Câmara, exerceu a chefia de reportagem da TV Câmara e dirigiu o Núcleo de Vídeos Especiais da TV. Com diversos prêmios literários, publicou Conversa com Verso(LGE Editora, 2006) e Risco (Verbis Editora, 2013).