*

 

se não o lesse

e acaso cessasse

 

se não gemesse

e acaso gerasse

 

se se perdesse

sem perdoar-se

 

até parece

ser só um disfarce

 

 

 

 

 

 

*

 

se você prestar atenção

vai perceber

que eu não presto

 

 

 

[Do livro Mínima ideia, 2004]

 

 

 

 

ANGU DA INFLUÊNCIA

 

 

rabelais não leu mishima kafka não leu drummond

ovídio não leu flaubert heródoto não leu huidobro

hölderlin não leu augusto dos anjos hesíodo

não leu dante victor hugo não leu kerouac

safo não leu camões rimbaud não leu borges

zenão não leu torquato baudelaire não leu freud

mallarmé não leu joyce homero não leu bashô

pessoa não leu rosa sólon não leu petrônio

shakespeare não leu maiakovski oswald não leu

leminski confúcio não leu peirce odorico não

leu haroldo apuleio não leu lautrèamont cruz e

souza não leu burroughs gregório não leu pound

 

a vida é assim mesmo

 

 

 

 

 

 

OS URSINHOS CABULOSOS I

 

 

Rebeca, a lesma lésbica, rabiscava azulejos como se riscasse o vento ou roubasse beijos. Rebeca, posto que lesmas não voam, namorava lesmas, gosmas, gafanhotos do alto da asa delta. Rebeca conheceu o sexo numa noite de champagne e champignon, e desde então passou a distinguir o que é ruim do que é bom. Rebeca conheceu sonhos e desilusões da baixa madrugada; se drogava nas esquinas e voltava para casa. Rebeca, desde que lera Nietzsche, preferia mostarda a ketchup, e jamais supunha que, mesmo sendo um tanto kitsch, tudo isso renderia a alcunha que persiste: Rebeca, a beata beat.

 

 

 

 

 

PERSOMBRA

 

 

sempre que reparo

minha sombra

me ultrapassa

 

se amarrota

no entanto

se a assopro

 

 

[Do livro Cada, 2007]

 

 

 

 

O CONTRARREGRA VÊ DRAGÕES CONTRA UM FUNDO AZUL

 

 

O cowboy sentado, folheando uma revista, inclina levemente a cabeça, tomando o cuidado de não olhar para a câmera.

O cão pastor salta sobre os latões de lixo, derruba o bandido e volta para receber outro biscoito.

A multidão ergue os braços e grita um pouco mais alto na segunda tomada.

O vento passa e volta para a hélice.

O pássaro passa e volta para a caixa de ferragens.

 

 

 

 

 

 

RITMOS VARIADOS

 

 

Sabe, meu Cachoeiro, as coisas nem

sempre saem conforme o combinado.

Nessas ocasiões, apenas me lembro

que tenho um pinto enorme e tudo

parece um pouco melhor.

Os anos se passaram e pequenas

convicções se acumularam

num canto escuro do quarto.

Todos os boleros do mundo

soando juntos deveriam fazer

algum sentido, mas não fazem.

 

 

 

 

 

 

INTERESSANTE

 

 

Você mostrou.

Você acha bonito.

Você acha interessante.

E por isso acha que deve ser mostrado.

Você colocou lá

para que todos vissem,

porque decerto supôs

que seria bonito,

que seria interessante

que todos vissem.

 

 

 

 

 

 

MEDIDA

 

 

Vivo o que se pode chamar de uma vida média.

Na escola, sempre me esforcei para alcançar a média.

No trabalho, sempre fui um funcionário médio.

Meu desempenho nos esportes nunca excedeu a média.

Fui um marido médio, um amante médio, um filho médio.

Sou um sujeito de mentalidade mediana.

Com alguma sorte, me mantive na média.

Tenho um fôlego de alcance médio.

Fico constrangido com a possibilidade de ultrapassar a média.

Nunca esperei das pessoas nada além da média.

Penso o que pensa o brasileiro médio.

Antipatizo com aqueles que pairam acima da média.

Meus medos e receios sempre estiveram dentro da média.

Meus sonhos de consumo nunca fugiram à média.

Meus desejos e fantasias estão todos na média.

Os meus ossos, se bem organizados, caberiam numa caixa de tamanho médio.

 

 

 

 

 

 

QUEM TEM MEDO DO FRANGO ASSADO?

 

 

Todos olham e enxergam o frango assado.

Todos os caminhos levam ao frango assado.

Tudo o que se vê, tudo o que se ouve,

o cheiro das ruas vem do frango assado.

O frango assado anda de um lado para o outro.

Está visivelmente confuso.

 

 

 

 

 

 

MEU EX CACHORRO

 

 

Meu ex-cachorro se parecia comigo.

E isso é tudo que posso dizer.

Ele se parecia comigo e eu não me parecia com ninguém.

Ou melhor, me parecia com ele.

Durante anos fomos felizes assim.

Mais que a ração sabor galinha com legumes,

nossa semelhança nos alimentava.

Nunca houve nada de errado nisso.

Uma dúvida sequer.

Por muito tempo essa semelhança

nos tornou um pouco melhores.

Ou simplesmente nos fez parecer

um pouco melhores, não importa.

O que importa é que meu ex-cachorro

já não se parece mais comigo.

E eu não me pareço mais com ninguém.

 

 

 

 

 

 

DISCURSO POR OCASIÃO DE UM CONGRESSO INTERNACIONAL

DE PESSOAS JURÍDICAS

 

 

Nunca conversei com uma empresa.

As empresas estão sempre ocupadas e não costumam falar com estranhos.

Nunca trabalhei em uma empresa.

As empresas almoçam todos os dias no self-service mais próximo e falam diversas línguas com perfeição.

Nas empresas há pessoas que seguram copos de uísque como se segurassem caralhos.

Nas empresas há pessoas que se masturbam no banheiro no horário do almoço.

Trabalho na mesma empresa há muitos anos. Dormimos na mesma cama e todas as noites ela abre as pernas para mim.

As empresas estão sempre abertas e de bom humor.

As empresas sempre dizem bom dia, boa tarde, boa noite.

Há sempre muitas empresas à disposição quando preciso, por isso não me preocupo.

As empresas dizem todos os dias que não devo me preocupar, mas eu já não me preocupava bem antes de elas dizerem isso.

As empresas sabem todos os meus segredos, mas não os revelam a ninguém.

As empresas sempre sabem o que fazer em qualquer situação.

Por isso não me preocupo.

Há pessoas que insistem em discutir o sexo das empresas.

E também as que preferem não tocar no assunto.

Empresas nunca ficam sem assunto. São capazes de conversar durante horas sobre qualquer coisa.

Empresas nunca perdem o sentido ou a razão.

Empresas nunca se atrasam.

Todos sabem onde vivem as empresas. Elas estão sempre abertas e de bom humor.

Trabalho na mesma empresa há muitos anos e até hoje não sei o seu nome, função, razão social ou CNPJ, mas não a culpo por isso.

As empresas estão sempre ocupadas, todos os dias, incluindo finais de semana e feriados religiosos.

Empresas possuem bordões e usam sempre as mesmas fantasias, como os super-heróis.

Empresas acabam e recomeçam todos os dias, como as novelas e os seriados.

Trabalhei em uma empresa durante dezoito semanas e faltei todos os dias.

Eu sei como funcionam as empresas, mesmo sem nunca ter estado nelas.

Empresas sempre funcionam.

Há pessoas que se dedicam ao estudo do comportamento das empresas.

Há empresas que se destacam por apostar no potencial das pessoas.

Geri diversas empresas imaginárias na infância. Nenhuma faliu.

As empresas podem ser de diversos tamanhos, como os cães, as pizzas e as estrelas.

Todos os dias acordo cedo e caminho até a porta de uma empresa, mas não entro.

Não tenho uma ideia clara do que possa ser uma empresa.

Algumas empresas se parecem com famílias.

Algumas famílias se parecem com empresas.

Especula-se a existência de empresas em outros planetas do Sistema Solar.

Estima-se que fóssil com idade aproximada de 50 mil anos possa pertencer à mais antiga empresa do mundo.

Empresas sempre dizem a verdade.

Empresas nunca se divertem.

Me lembro com nitidez da primeira vez em que conheci uma empresa.

Não costumo falar com empresas estranhas.

Nunca pisei em uma empresa.

Empresas não falam sozinhas.

Meu primeiro presente de aniversário foi uma empresa.

A maternidade onde nasci era na verdade uma empresa.

Algumas pessoas conversam com empresas como se fossem pessoas.

Algumas empresas conversam com pessoas como se fossem empresas.

Nunca conversei com uma empresa.

Nunca conversei com uma pessoa.

 

 

[Do livro Mastodontes na sala de espera, 2011]

 

 

 

[imagens ©lorenzo perrone]

 
 
 
 
 
 
 
 
Bruno Brum (Belo Horizonte/MG, 1981). Poeta. Publicou os livros Mínima idéia (2004), Cada (2007) e Mastodontes na sala de espera (2011, Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2010). Entre 2006 e 2009 coeditou, com Makely Ka, a Revista de Autofagia, dedicada à literatura e às artes visuais. No mesmo período integrou, como programador visual, a equipe de produção da Revista Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro, coordenada pelo poeta Ricardo Aleixo e editada dentro da programação do FAN (Festival de Arte Negra de Belo Horizonte). Em 2011 foi um dos curadores da terceira edição da ZIP (Zona de Invenção Poesia &), em Belo Horizonte, ao lado de Ricardo Aleixo e Chico de Paula, evento no qual também trabalhou em sua primeira edição, em 2005, como produtor executivo. Lançou seus livros e participou de debates e leituras de poemas em eventos como a Balada Literária (São Paulo), Simpoesia (São Paulo), Consigo (SESC, São Paulo), Na Tábua (Porto Alegre), Fórum das Letras (Ouro Preto), Saravá (Belo Horizonte), Terças Poéticas (Belo Horizonte), Digas! (SESC, Belo Horizonte) e o Psiu Poético (Montes Claros), neste último como autor homenageado em 2008. Traduziu poemas de Jerome Rothenberg, John Ashbery, Vicente Huidobro, Roberto Bolaño e Leopoldo María Panero. Tem poemas, traduções e textos críticos sobre sua obra publicados em diversos periódicos brasileiros, em mídia impressa e virtual: Sibila, Musa Rara, Coyote, Terra Magazine, Suplemento Literário de Minas Gerais, Celuzlose, Prosa, O Globo, O Tempo, Hoje em Dia, Estado de Minas, Gazeta de Alagoas, Diário do Nordeste, Diário Catarinense, entre outros. Atualmente está em preparação uma antologia com seus poemas traduzidos para o portunhol selvagem por Douglas Diegues. O livro, com edição a cargo das cartoneras Yiyi Jambo (Paraguai) e Muamba (Brasil), está previsto ainda para 2013.