NOSSA SECA

 

 

Agosto continua frio, mais que julho, e mais esta seca brava. Nada se planta na seca. O gado, um bezerro aguado, mais pele e osso, triste, lambe o cocho. Triste é o pasto, amarelado até sumir de vista. Mais ainda nós, da roça, com o vento frio e empoeirado de gripar até cavalo.

Uma conferida nos pés de laranja. Nada. Nem uminha para matar a saudade. O pé de limão china, azedo de doer os dentes, carregado de maduro. Cai no chão e apodrece. Nem abelha quer. Mês de desacorçoar para todos nós. Andar na horta descalço é encher o pé de espinho-benzinho, traiçoeiro, esconde no mato seco, é mal encostar o pé e recolher. A picada, feito agulha, entra na carne. Para tirar, é mais estrago, dói é muito mais.

Água minguando, nascente seca a cada dia. O córrego que alimentava nossa casa esforça a descida, num fio. Fio limpo. E frio. Olho para o céu amarelado. Vai gear, na certa. Pego uns panos velhos de colher café e cubro o pé de couve, deitado de piolho, enrugado, e alguma rama de batata. Cará e inhame não precisa, se morre a folha, o cará vive. Esta noite, há meses tem sido assim, só se enxerga com a única lamparina de querosene que venho racionando.

Meto sabugo no fogo a fazer brasas para esquentar os pés das crianças. Embrulhei os tijolos fervendo no papel forte dos sacos de ração da fazenda do seu Neca e enfiei debaixo do meu colchão. Não há coberta para todos, fico com uma mantinha rala. Os tijolos ficam quentes até de madrugada.

Eu queria ter uma lona que fosse para tampar o galinheiro. Mas nada. O casal de porcos, pelanca só, se embola num grude para ganhar calor um do outro. Confiro a pelota preta, não morreu, grunhindo fraco, amiudado.

Um fumaceiro, longe, sobe em rolo preto, dá uma cor no céu. Não se ateia fogo com essa secura. Mas os roceiros teimam fazendo queimada, na esperança de ver um pasto verdinho; justificam: "O gado vai ter banquete", num destemor da Florestal.

O acero, feito nas pressas, não segurou as labaredas que lambem o pasto do vizinho. Dão o alarme. Zé Bento corre pra avisar os peões. Pede ajuda pra mim, suado, implora ir engrossar o mutirão lá na grota da divisa com a fazenda do seu Neca: "É na carreira, já queimou metade do canavial do hómi e ele tá fora!", grita, na urgência de chamar mais gente. Coragem me falta, nessa hora, estou guardando para outra empreitada, mas ajuda num mutirão não é coisa de se negar.

Os paus das árvores vão caindo, se misturam com as folhas secas. O desastre está armado. Uma fagulha que cai fora do acero é como uma bomba de gasolina. Exército de formiga carregando folha, enfileirado na correria, é pouco para comparar com o batalhão de homens e até mulheres que tentam apagar o incêndio com paus. Paus secos, para apagar o fogo, estorricados, viram tochas, abrem feridas e vagas, tombando trabalhadores no fogaréu. Foi mais um voluntário. "Tá faltando fulano... cadê o Jaça?" Morreu no rodamoinho de labareda. Nós procuramos, as famílias procuram... A resposta ficou no meio das cinzas. Quem entra na empreitada sabe que pode não sair dela vivo, nem rico, pobre, preto, gordo. Ninguém é arrastado para mutirão. Desde que o mundo é mundo, tem mutirão, se está com saúde, é ponto de honra comparecer e lutar. As forças da natureza, destemperadas, juntam o mutirão na roça.

A sorte é que tem um resto d'água barrenta no açude. Os baldes vão lá e cá. Os gritos de "manda mais" e de dor dos queimados vão se misturando. Mãos em brasa pura, nem sei se sobrou roupa no corpo, passo o balde cheio, antes de pegar o vazio; vêm as meninas no meu sentido. Espantadas, com medo de ficarem sozinhas no mundo... Falei que voltava, e volto. Mandei ficar bem de longe, só olhando o clarão... Não tem como apagar fogo e segurar curiosidade de criança. O fogo atenta até gente grande. Que dirá criança!

Volto para casa sapecado, feito porco morto, sem um pelinho. Salvo os debaixo da cueca. Elas me obedeceram, fico aliviado. Seu Neca pode voltar da viagem, do canavial seco restou a metade. Vai querer apurar o acontecido, punir o vizinho, na certa, denunciar para a Florestal. "Acidente, puro acidente. O senhor não está livre de passar por isso", afirma Justino, treinando a fala de capataz com o fazendeiro turrão.

Daí dois dias, lembro Carlita, minha falecida mulher. Renovo coragem para a empreitada que não sai da minha cabeça tem tempo. Lavo bem três garrafas no fio d’água do terreiro. Encho elas com a água mais limpa, debaixo da ponte. Arrolho bem. Pego as meninas, tomamos a trilha que dá no cruzeiro bento. Fazemos procissão. Já cansadas, de boca seca, rezam devagar, baixinho, as orações que aprenderam com a mãe. A mais nova tem pereba na cabeça. Já tão esmirrada e ainda com esses fiapos de cacho amarelinho. O couro da cabeça quase pelou. Ponho meu chapéu nela. Carrego ela mais a garrafa. Ajusto a minha na cintura. A subida para o cruzeiro bento tem degraus desencontrados: uns de pedra, outros de terra batida escorada com tronco de madeira. Somam duzentos.

De dez em dez, uma cruzinha. Os mais devotos param, em cada uma, rezam mais dobrado, até os mistérios do terço, contemplados. Nós subimos, resfolegando, sem parada nem terço. Desgrenhadas, filhas da roça seca, minhas filhas magriças são valentes. Mas vou atrás, no caso de uma delas cair.

A terra é nosso banco, descansamos, estirando as canelas, de encosto, o pau do cruzeiro bento.

A obrigação está cumprida, agora a devoção: rezamos, dando volta em volta do cruzeiro, aguando, com a água que já abençoamos, de oração e intenção, o pé da santa cruz. Peço a Deus piedade. Perdão pelos pecados meus, que deles Ele deve saber melhor do que eu. Estico o pedido: "Perdão para todos os roceiros". Já seco de pedir, avanço mais um pouco, imploro, "Perdoai nossas terras, se é que há perdão", e lembro a Ele "Elas que davam nosso sustento". Suplico, como se Deus estivesse sentado perto de mim: "Mande água para nóis vivê". Envergonhado d’Ele e de minhas filhas, deito a cabeça nos braços, escondo desespero, dor de fome e de viver, desalento, choro. De uma hora para a outra meu coração virou um chumbo. As meninas cantam uma reza, animadas de estar no pé da santa cruz.

No fundo do meu sentimento, dou a última palavra, juro, até para ser ouvido na minha revolta: "Quero água, abençoada água para não morrer; Deus, encha o céu de nuvens de chuva".

Minhas filhas cantam com fé. Tomam o gole do fundo da garrafa, bento, creem, para chamar chuva.

Das alturas daquele monte, vejo um mundo de pau seco, sem folhas; em gravetos, a rocinha de milho gorada. No céu, nada de nuvem. Rachado, o chão duro se cobre com o manto de folhas caídas, quebradas, estorricadas. Não reconheço qual é de quem. Miséria. Miséria a perder da vista, que forço, sapecada no incêndio e ardida do choro. A empreitada está na descida sem degraus, para um lugar que não sei se existe. Vejo é descidão, sem trilha, nem de animal, e uma subida longa, lá longe. Depois não dá para saber é de mais nada.

Agora, é tudo um amarelão só que mistura terra, céu, fim de dia. E nós.

Chamo: "Lilita, vem mais sua irmã!" Agarradas, me seguem, feito carneirinhas. Deixo o cruzeiro santo. Só que noutro rumo: tomo a vertente contrária. "Quem sabe pelo avesso encontro o próprio Deus?" Pergunto, e é só. Céu barrado de amarelo não tem voz. Geia. Resolvo desaliar com tudo.

Damos as mãos, os três, e as costas para a santa cruz. Dessa vez, sem rezar.

 

 

 

 

 

 

MÃE

 

 

Passo por minha mãe. Puxo seu vestido estampado de flores; ela fica mais alta, se estica. De mãos vazias, me agarro em sua perna.

— O que foi, menina?

— Mãe, estou com a cabeça cheia de piolho — choramingo. Está coçando muito!

— Já escovou os dentes? É hora de dormir, vai já para a cama. Eu olho você.

— Mãe, minha cabeça está numa coceira — insisto na barra do vestido que cobre os joelhos dela, não a minha cabeça.

Obedeço. Triste, me deito. Encolhida com o travesseiro, apalpo cada semente de paineira que encontro. Acaricio a bolinha, até que ela desliza no macio da paina. Encontro outra. Apalpo o travesseiro em busca de mais.

A casa está escura. Meu pai dorme. Meus irmãos dormem.

Penso que minha mãe já lavou a louça. Escolhe uma peneira de arroz, de feijão, ou dormiu no banco da cozinha. Lá longe.

Passo os pés frios com força no lençol para esquentar. A cama nunca esquenta.

Uma luz de lamparina de querosene entra pela porta do quarto devagarinho.

— Você ainda não dormiu?

Com o mesmo vestido do dia inteiro, minha mãe senta-se e aconchega minha cabeça. Vejo o clarão da lamparina, as sombras na parede. Devagar, em voltinhas quentes, os dedos de minha mãe sondam cada pedaço do meu cabelo. Somos só nós duas.

Cabeça limpinha, sem coceira de piolho, de nada.

Invento piolho. Tenho um fio do tempo dela.

Adormeço.

 

 

 

 

 

 

SANTOS DE VENTO

           

 

Nasci numa casa cheia de quartos, portas pesadas, quando o vento dava, só pedras para segurar. Quartos de muitas camas, corredores que nos enganavam, pareciam dar em lugar nenhum. Às vezes saía à noite procurando minha cama e entrava em quartos estranhos e salas entremeadas por mais corredores. A única luz acesa era uma lamparina de azeite tremulando que mal iluminava o sagrado coração de Maria, num canto do salão de jantar.

A primeira estória que ouvi deste povo mais antigo que viveu por séculos antes de nós, para os lados de onde o vento sai, dizia que nossa família começou com um homem encantado pela vontade de ferro de sua mulher, desde o dia que pôs os olhos nela. Casaram-se e começaram a vida neste descampado alto e açoitado pelo vento, logo chamado de fazenda Ventania, desafiando os rodamoinhos que os prendiam dentro de casa durante dias. Fincaram pé no lugar e o casal inaugurou uma forma inusitada de abrigar a prole: à cada vez que nascia um filho, construíam novos quartos. Tiveram mais de vinte, e a casa, de quarto-sala embasado nas pedras para se proteger do vento, virou esta casa-quebra-cabeça que nunca mais parou de crescer.

A fazenda Ventania foi morada de muitos dos nossos que foram se esquecendo uns dos outros e suas estórias ficaram misturadas. Um desses antigos inaugurou o ramo mais perto de nossos parentes com uma plantação de cana-de-açúcar e começou a produzir rapadura. Diziam que era filho de índia juntada com espanhol o homem que apareceu no engenho e se casou com minha parenta mais antiga, Donana, conhecida pelo mau humor e por se vangloriar de sua "linhagem sabida e conhecida a milhares de léguas". Ele não dava valor a bens materiais; ela, gabava-se, vinha de gerações, a perder de vista, de fazendeiros, com filhos que seriam doutores e advogados.

A extensão de propriedades e os títulos de alguns membros da família faziam de Donana a esposa mais poderosa dentre as antigas mulheres de Ventania. Enviuvou cedo e se transformou na mandatária de tudo e de todos. Depois de assistir ao nascimento de muitas gerações de descendentes, Donana dividiu as terras e mudou para uma fazendinha perto da cidade.

Coube aos meus pais, a casa como herança. Mesmo sem dinheiro, assim que se mudaram, começaram uma obra grandiosa: do casario sem rumo, crescido ao deus-dará, taparam paredes e corredores em ziguezague. Mas eram tantos que ainda ficaram alguns para uma outra reforma, onde brincávamos de esconde-esconde. Crescemos na casa grande. Para achar a cozinha no meio da noite, bastava ir pelo corredor mais largo, em linha reta, entre duas alas de quartos e alcançar o salão, com a luzinha coada num canto. No outro, despontava a cozinha sempre de portas abertas. No centro da casa, o salão enorme reinava estalando com as tábuas novas, trocadas na reforma. Ali nossa diversão era ouvir estórias e representar peças tiradas dos livros. Um dos objetos mais cobiçados da casa era o rádio elétrico que sempre reunia gente para ouvir música, notícias e saber o rumo dos negócios do café, o preço da arroba do boi, e acompanhar as novelas.

A vida corria sem depender muito da cidade, a não ser para alguma compra e coisas como registros de bens e de filhos. Assim que nasceu o primeiro filho, meu pai seguiu a antiga tradição de participar a velha Donana, nos arredores da cidade.

— Passei para contar à senhora que nasceu mais um lá em casa!

Ela perguntava se era menino ou menina e determinava: "O primeiro foi José, essa tem que ser Maria, assim fica a família sagrada".

Por isso que lá em casa só nascia "santo". Todos os parentes que seguiam o velho costume prendiam também os filhos na rede de nomes de santo, a começar pelos primogênitos, José ou Maria. De tanto dar nome aos descendentes, Donana inventou um baralho de pessoas com o mesmo nome, xarás até no sobrenome. Tentavam distinguir um do outro acrescentando ao nome próprio o nome de seu pai, que muitas vezes também eram repetidos.

Um dia chegou a notícia: Donana estava doente e não devia durar muito. Vestimos nossas melhores roupas ouvindo mil recomendações para não falar alto, tomar a bênção e não ficar perto dela sem ser chamado. Quando chegou minha vez, fiquei olhando para aquela mulher miúda e encarquilhada num corpinho pequeno, deitada numa cama de menina, pequena como as nossas. A cabeça branca e os olhos espertos, seguindo tudo que acontecia. Depois de uma fila enorme de beija-mão, não beijei. Fingi beijar o rosto, cheguei bem perto e perguntei: "Qual é o seu nome de batizado?". Um sopro falou "Iracema". "É nome de índio", pensei. Lembrei-me de meu avô, que conservou a sabedoria do seu povo índio. Tive vontade de chegar perto de novo e falar que os índios, no começo dos começos, eram os santos do Brasil. Não pude dizer mais, logo me puxaram e vi que ela apontava a janela, franzindo os olhos cinzentos. Ordenou que chegassem sua cama para lá porque precisava de ar puro.

Não acreditei que ela pudesse ter mandado tanto na vida de toda aquela gente, interferindo até nos nomes repetidos naquela ladainha que puxava um apelido para identificar uns aos outros. Meu desencanto com Donana me fez ver que o feitiço tinha se desmanchado há muito tempo e que só eu me importava com o estigma de não ter nome de santo. Achava tudo pelo avesso na família e pensava que se a mulher quis atalhar nossa ida para o céu, com nomes de santos, tinha arranjado o caminho mais comprido. "O que dá errado comigo é culpa do meu nome", acreditava desde menina, maldizendo a matriarca dos santos de vento. Do pouco que consegui descobrir, a santa do meu nome não era conhecida.

Dentro da casa não dava mais para ficar de tanta gente que chegava de todas as quinze bandas, com a notícia de que ela estava morrendo. Donana resolveu agir logo e provar que estava bem viva. Mandou esvaziar a casa e ficou um tempo com as portas fechadas até que apareceu no meio do povo em cima de um andor, que era sua própria cama carregada por quatro homens sobre os ombros. A multidão desordenada de parentes abria espaço para a passagem do cortejo e ela insistiu em dar voltas até onde o povo foi raleando, como rabo de procissão de semana santa, com gente de todo tipo, sem vela na mão.

Donana desafiava qualquer ordem que fosse a sua revelia, principalmente as leis regentes, até a de ir vivendo toda vida, sem ninguém se dar conta. Uns parentes bem antigos diziam que desde sempre a conheceram assim, com aqueles olhos de ver, de cabeça branca, e garantiam: "Ela já passou, há muito, dos cem anos".

 

 

[do livro Santos de Ventos. São Paulo: Edith, 2011]

                 

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©miriam schapiro]

 

 

 

Celina Castro nasceu em Candeias/MG e vive na cidade de São Paulo. Faz sua estreia solo com o livro de contos Santos de Vento (Edith), em que evoca uma menina para falar de sentimentos de gente grande. Na apresentação do livro, o escritor Jorge Miguel Marinho afirma que as narrativas da autora "transitam majestosamente entre a crônica e o conto em chave de conversa ligeira e confissões ao pé do ouvido, com aquela rara sensibilidade que extrai das miudezas da existência e do rés-da-vida uma história sempre humanamente maior". Jornalista de formação, participou das antologias: Mamãe, vim só fazer uma visita rápida (Edith), Maus escritores (editada por Marcelino Freire e Vanderley Mendonça) e Antologia de Haikai, organizada por Alice Ruiz e editada pela Black Demon Press. Faz parte do coletivo Edith, de literatura e arte, coordenado pelo escritor Marcelino Freire. Sempre cultivou a amizade com os livros e afirma que sua relação com a literatura ganhou nova força ao participar de oficinas literárias.