O motivo da arte literária de Howard Jacobson é provocar o leitor, isto é, não permitir que este passe indiferente pelas páginas do seu grande romance "O Caso Finkler". O recurso mais eficiente para isso é o humor que demole ideologias, presunções, suposições, ideias feitas, pensamentos e fantasias ocultas, tabus em geral etc. Verve e o senso crítico inesgotáveis transformam a leitura numa experiência eletrizante. A trama é muito simples: um homem de meia idade, Julian, sofre um assalto ao sair da casa de amigos em Londres e a possível ladra, sim, a ladra, além de surrupiar celular e cartões de crédito, enfia-lhe um prego nos miolos com esta frase incompleta: "Seu Ju..." Poderia ser o nome da personagem ou a pronúncia inglesa para Jew, judeu.

 Como ele não era judeu, mas seus dois grandes amigos e dos quais se torna um êmulo obsecado, Libor e Finkler, eram, ele não consegue mais se livrar daquilo. Começa então a procurar significados para a palavra ou meia palavra, enveredando por uma crise de personalidade divertida e dilacerante. Julian era do tipo tão comum que se parecia com todo mundo. Sem nada melhor para fazer, emprega-se como sósia de personalidades diversas numa empresa e assim ganha a vida, após demissão da BBC, que então passa a odiar. Como também não tinha um caráter muito definido, se é que isso existe, a transferência foi quase imediata: na hipótese de que a assaltante o havia chamado de judeu, num momento em que a Europa vive nova onda de antissemitismo e o conflito entre Israel e os palestinos mais a polêmica generalizada e cheia de equívocos da desinformação ou da manipulação se acirra, ele começa a explorar as facetas daquilo que pensa ser um judeu.

Julian busca estereótipos para captar uma suposta essência em seus amigos. Libor, nascido na então Checoslováquia, jornalista de fofocas hollywoodianas, com idade para ser pelo menos seu pai, um boa praça muito sofrido e generoso, e o cínico Finkler, parceiro de infância, filósofo da televisão, um tanto rico graças ao sucesso com seus livros de autoajuda e que não perde a oportunidade para cutucar os melindres dos demais — sobretudo dos outros judeus. Ele, por exemplo, participa de uma sociedade de judeus "mortificados", que se opõem ao Estado de Israel, são laicos e praticam todo tipo de ridicularias. Um deles furta produtos israelenses dos supermercados, outro expõe na internet suas pesquisas para tentar reverter a circuncisão. Ninguém escapa do ridículo. Julian é um tanto ingênuo e assim, talvez contaminado pela atividade profissional, passa de um momento para outro a se considerar judeu, mas influenciado pelo que vira na internet fica em dúvida quanto à circuncisão, pois teme que isso não seja lá tão benéfico para sua vida sexual. Em meio a trapalhadas gerais depara-se com o labirinto da personalidade humana indefinível e fugidia, impossível de ser delineada em termos claros ou lógicos.

Ele não percebe que esse é o mesmo drama dos seus amigos e de todos os demais. Se judeus, ou "finklers", como Julian pensa, no seu reducionismo meio infantil ou tantã, são resultado de suas circunstâncias, e se eles foram e de maneira intermitente continuam a ser agredidos, se reagem desta ou daquela maneira, bastaria detectar a especificidade das reações, por exemplo, para que fossem resolvidos na sua cabeça. Quer dizer, um imenso e imaginário problema que parece resolver o enigma da experiência humana. Só que não resolve, apenas acrescenta novas dúvidas e interrogações. Como ele não tem personalidade e os amigos judeus teriam personalidade de sobra, então sua saída só podia ser a que escolhera, torna-se uma esponja que lhe permite viver nele mesmo de modo vicário, sem nenhuma certeza, mas com todas as dúvidas próprias e alheias.

Não estamos diante de um livro "inofensivo". Jacobson jamais deixa, como disse, o leitor intacto. O riso que provoca é uma autoironia que envolve completamente o leitor nas emoções, no patético e no muito que as personagens têm de patetas — o romance recupera a eficiência do humor "popular" e erudito, livre do gravíssimo perigo representado por esse freio da inteligência chamado censura ou autocensura. Ou o carnaval é risonho e franco ou não é. A certa altura o leitor pode perguntar de maneira mesquinha e nas águas do pseudocriticismo: mas o romancista não se prenderia de maneira demasiada aos fatos do dia, pondo em risco a durabilidade do seu romance? Entre várias respostas podemos escolher a seguinte: se a questão do momento é o antissemitismo, algo que começou há muitos séculos e continua no presente, não parece mesmo que tudo continuará igual no futuro, com judeus ou outra minoria? Quer dizer, não há saída desse túnel de equívocos, horrores e um monte de bobagens pelas quais as pessoas simplesmente sofrem no eterno jogo do ser e do não ser. Azar o nosso, judeus, cristãos, muçulmanos, ateus dessas religiões, de outras religiões e sem religião nenhuma. Com espírito demolidor, esgrimindo paradoxos, o autor consegue realizar a proeza de escrever quatrocentas páginas, todas criativas, inspiradoras, provocadoramente incansáveis e provar que o romance, gênero literário, continua vivo e eficaz, em cem páginas de Juan Rulfo ("Pedro Páramo") ou em oitocentas páginas de Howard Jacobson.

     

 

 

 

[ Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo | Sabático ]

 

 

 

 

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A Questão Finkler - Howard Jacobson (Bertrand Brasil, 448 páginas, R$ 49,50).

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junho, 2013