Duas publicações póstumas de Lêdo Ivo (1924-1912): a coletânea de poemas "Mormaço" mais as anotações prosaicas e poéticas de "Afastem-se as Hélices", até agora inédita que sai com a reedição de "O Aluno Relapso", ajudando a completar o perfil de alguém que, de maneira notável, dedicou a vida à fruição e à prática das letras. Essa prosa vem a calhar, pois permite a reconstituição de uma trajetória. O autor comenta amizades, situações, suas experiências brasileiras e europeias (morreu em Sevilha). E propõe questões, uma delas refere-se ao ponto chave da literatura e da arte em geral: a linguagem, e que se reflete em sua obra poética, clara e franca mesmo quando a tonalidade se torna opalescente.

As preferências do poeta são explícitas. Identificação e opção. Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Whitman. Um panteão gigantesco. Todos mal comportados, na vida e na arte. Muito interessante, no entanto, que mesmo com esse time de poetas da renovação, o autor brasileiro coloca em xeque a ideia da arte que realmente se transforma e transforma. Em "Rumo ao Farol", um texto confessional, Lêdo Ivo apresenta uma síntese do projeto de quem "aprendeu que, através dos anos e dos séculos, a poesia não progride" (pág. 130, da prosa). Resulta disso que "rupturas e mudanças, as revoluções estéticas mais desabridas e desnorteantes, as experimentações mais desvairadas não têm o poder de proceder a metamorfoses; são apenas acréscimos, o incessante fluir de um processo, as novas etapas de uma tradição. Ou instantes ambiciosos ou frenéticos que o tempo ou o vento, haverá de apagar." E, contra a contenção, a linguagem descarnada em moda, o mar da língua portuguesa onde se revolvem cerca de 330 mil palavras à espera de poetas dispostos a potencializá-las. É o que também diz "Aula de Poesia" (pág. 155, "Mormaço").

Toda atitude implica riscos decorrentes dela mesma. Lêdo Ivo domina o idioma, controla o verbo e os modelos poéticos, em sua obra há momentos realizados que deixam para trás a provável sensação do já visto aqui e ali, ao assumir o já visto de modo criativo e consistente — veja-se por exemplo "O Esquartejador" (pág. 89, "A Dádiva", pág. 175, "Uma Laranja, pág. 187,  "Mormaço"). A situação fica complicada, no entanto, quando se atenta para a persistente recorrência a uma espécie de estoque imagético-emocional secular (eterno?), o que pode conduzir a um impasse (superado em momentos como aquele do "Esquartejador"), em decorrência de uma, quem sabe, suspensão da veia crítica, motor da renovação avessa ao eco persistente. O virtuosismo sempre pode ser um problema quando parece se tornar dominante — em Drummond ou Cabral também. Seriam enfim os riscos e acertos de todo artista? Talvez valha a pena lembrar o exemplo do pintor: quando a mão direita se torna muito obediente, melhor trabalhar com a esquerda — mas só enquanto ela permanecer canhestra.

     

 

 

 

[ Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo | Caderno 2 ]

 

 

 

 

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Mormaço – Lêdo Ivo – ilustrações de Steven Alexander (Contracapa – R$ 68,00).

O Aluno Relapso/Afastem-se das Hélices – Lêdo Ivo (Apicuri – R$ 35,00).

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setembro, 2013