o alimento das plantas

 

 

ruminando a luz do astros

tal como boi pastando esquecimento

iniciamos um plantio insensato

um jogo de cartas aquosas e

acendemos os dentes na mata.

 

incendiamos os ovários das estações

regamos com  desvarios os muros e os túmulos dos antigos,

as suas raízes de loucura e indigência maldita:

 

— eco na correspondência de outros ecos —

 

no corredor das reverberações

os sons dos besouros se animavam com fósforos

gritando feito crianças (brincando) em parques de diversões.

 

nossa harmonia sibilina equilibrada sobre as pernas 

criava movimentos endêmicos

espasmos na luz do vaga-lume,

enquanto passadiças, eram as migalhas de dias

alimentando as plantas.

 

nossas vozes sem brilho

nossas vestes sem plumas

nossa corrida derradeira

nossos sorrisos...

... escorregavam para dentro do copo

para dentro do umbigo

para dentro de um vão longe da janela mimética.

 

agora, nossa velocidade polivalente reduzia a voltagem

nos aninhamos na aurora boreal estocada na dispensa

na dispersão do silencio,

na dispersão das sombras:

 

 

— a noite é lagarta mastigando o sono.

 

 

 

 

 

 

para uma criatura encantada vol 4

 

 

nasceram gêmeos, com olhos da mesma cor

essa semelhança era a solidez que os uniam.

quando crianças eram quase indivisíveis.

no mais, eram dois distantes, dois signos diferentes.

 

saiam sempre bem nas fotografias —

coleção de memórias desde os dias primeiros.

siameses inventivos: um, era engenheiro de abismos

o outro, carpinteiro de escapadas e convencimentos.

 

fizeram suas vidas de forma anti-convencional

gostavam de sentir a rua na palma crua dos passos

pegavam carona na geometria cintilante das estações

seguiam a circunferência carcomida dos mapas, evitando os espaços claros.

 

um deles, costumava falar com sua própria imagem

e quando o dia ficava difícil, mostrava os dentes para o azar.

tinham colegas que lhes visitavam de vez em quando

mas não eram afeitos a longas conversas.

 

certo dia, o domingo acordou envenenado e dormiu imóvel

seus olhos azuis viraram sementes para os dias melhores

descansaram suas imagens na sombra de uma árvore desconhecida

embrulhados nas palavras de seus pais.

 

viveram suas vidas onde deus não existia.

 

 

 

 

 

 

esticar o mundo

 

 

para Marcelino Freire

 

 

ainda é possível esticar o mundo com a palavra poética

 

se aliando ao balé das arraias

aos porteiros que abrem os caminhos do mundo

às armas de misericórdia dos infames

aos livreiros da diáspora

às mercearias que sediam confrarias fugazes

aos tuaregues mensageiros dos ventos-suburbanos

aos engenhos e cachaças mágicas

aos taxistas sobrenaturais que detêm a arte dos atalhos

ao cinema do oriente abandonado

às musas que habitam os labirintos da memória

aos andaimes dos cemitérios da carne

aos carteiros que espalham pontes silenciosas

às chuvas que inventam estradas aquáticas

aos jardineiros que curam e fazem partos nos canteiros

aos gatos que amaciam os recantos da cidade

aos pintores alados que enfeitam os muros

aos bem-te-vis arquitetos do assovio

às crianças que dominam gramáticas horizontais

 

... é  possível esticar o mundo.

 

 

 

[Poemas inéditos]

 

 

 

 

 

um dia a colisão nos beija a boca

 

 

mesmo que pudéssemos nadar na noite de chuva a colisão foi inevitável, e quando ela tocou nossas bocas o que escorria era vinho seco. extraviamos os sonhos que escorriam pela corda vermelha que ata nossas sequelas, as folhas caídas, os abismos de cores sem fim: enleados um ao outro saltamos para fora d'água. como peixes cegos vagamos por cidades esquecidas e praças ensolaradas que pollock desmantelava com seu pincel de canivetes. esfaqueamos a escuridão da noite com os relâmpagos sorridentes que os pardais depositavam em nossos cabelos e continuamos a peregrinação para macondo, desviando das árvores, da insanidade dos postes, dos túmulos, das caretas flamejantes, de nós mesmos alcoolizados. carregávamos no ombro um feixe de almas pescadas na maré baixa, e os barcos estacionados na aresta do tempo descarregavam uma multidão de peixes órfãos, enquanto o sol mastigava as segundas-feiras.

 

 

 

 

 

tudo não passa de um despacho

(ao som dos afro-sambas de baden powell e vinicius de moraes)

 

 

abre os braços e sem dizer nada enlaça tuas raízes na língua oblíqua que queima. alimenta o peixe-poeta que tu carregas no bolso e não te preocupes, temos ternura e veneno para nos defender dos lunáticos. o som dos violinos arranca os pelos do peito e faz deles travesseiros pros ouvidos cansados. meus olhos ardem — pão de milho — e os anjos choram na cidade de tanta felicidade. cavalgamos os grilos do devir e domesticamos o mau olhado que nos cerca. as árvores absorveram nossa febre e seus galhos ostentam bolsas de soro. a cidade que devastamos, hoje, é orifício da terra: brejo que esconde nossa fragilidade. arquejamos após o contato com as entidades do além, no terreiro das parabólicas.

 

 

 

 

 

música para indecisos 

a música corta os olhos e transpassa a carne

carrega as horas dos indecisos

por livros velhos, cidades-labirinto e noites-cinema

correspondência de sonhos intranquilos.

 

nas gavetas da memória uma infância barbada

e poemas-biscoito no café da manhã

com aquela ferrugem que carcome os dentes.

 

doses de pílulas em tecnicolor

e em caso de incêndio nas partes íntimas

deixar o fogo consumir o resto do corpo.

 

 

 

 

 

a previsão do tempo é uma falácia

 

 

para Mardônio França e Nuno Gonçalves

 

 

os brinquedos, os jogos de adivinhação, a cidade e suas senhas-salamandras, as mandalas hipnotizadoras, a rota da barbárie e as memórias que entregam o seu coração aos bandeirantes, que entregam seus nomes, sua prole, seus sonhos de se tornarem camaleões ou peixes ou águias ou fogo. há setas que apontam pro norte, há uma confusão nos sensores, sentidos, os poemas-malabares cospem fogo, os cheiros e o sexo estão longe, o mar chega para lamber e sarar as feridas, o vento é chicote bem vindo nas costas, os brinquedos agora obsoletos, as conchas do mar, o pára-quedas está nas costas esperando ser aberto, a cidade colméia cria seus doentes mentais, a cidade frankstein devora seus doentes mentais, a cidade é uma seqüela aberta, ferida que nunca sara, cores mortas, portas fechadas, pernas e braços e cabeças e troncos espalhados pelas calçadas, os desenhos que se pintam são hecatombes, terremotos, nada de cores de almodóvar, a cada esquina um besouro a descer pela garganta, a sala de estar é um calabouço, um cala boca, uma mordaça, moscas cercando os cadáveres da cidade-hospício, cercando as mentiras e a dor da lembrança, pegamos carona em corpos alheios pra esquecer os sonhos ruins, há lugares que vendem coisas que já aconteceram, que já tocaram, que já foram vistas, que já foram lidas ou faladas, a cidade é uma sucata velha teimosa.

 

 

 

 

 

café com brassaï               

 

 

brassaï sentado no beiral de um sonho:

olhos fixos na paisagem amorfa

tinta nos dedos e sangue nos pés

 

um casal de gatos siameses lambia

as sobrancelhas daquele rosto inadequado

 

nas ruas nervosas, os dj's satânicos e as

profecias bailarinas nas praças-comércio-do-sexo

 

a noite gasosa e o burburinho que pingava

pelos ossos da lua-cinema onde nadja se escondia.

 

— brassaï toma café-radioativo em uma fotografia de 1933.

 

 

 

 

 

escorpião na casa de capricórnio

 

 

chove um som verde na paz dos musgos e os crimes se libertam nos quartos de motéis: nos encontramos com a fúria de dois cometas que se chocam, movimentos selvagens, contradições na faringe metálica e sexo na contorção fumegante dos corpos irresponsáveis – ( os olhos são ogivas de cilício sobressaltando as costas ) – nossos fluidos escorrem para o mangue da alma: rio caudaloso a desmantelar a neurose dos ponteiros em estranhas experiências, como se toda a história fosse só um agora  – ( o que sobra são os garranchos sobrepostos e os escombros molhados ) – violamos o que de mais íntimo nossos pés tocam, saltamos as pontes, as linhas de trem e o azimute do horizonte – ( é inútil pensar que sairemos ilesos à noite ) – nossos delírios conjugados cavalgam as luas de saturno enviando sinais jamais pronunciados – ( os braços que nos cercam são noctâmbulos ) – as carícias desmancham armaduras, recolhendo para a dispensa a utilidade das unhas de aço: nosso amor fosforescente se escreve na avenida eros.

 

 

 

[Do livro Insólito. Fortaleza: Corsário, 2011]

 
 
 
 

a cidade frankstein

 

hoje pela manhã as árvores estavam em coma,

meu amor cuspia brasas nas bundas dos loucos.

roberto piva

 

 

decrépita-província-teresinense:

quando seus filhos alçaram vôos sobre as pontes

você decapitou suas asas com lágrimas de enxofre.

precisamos fazer excursões para a kaddish de ginsberg,

precisamos fazer excursões para a kaddish de ginsberg.

 

invadir o pavilhão velório do ser

com olhos de molinese triste e

réquiens para os tremembés.

a minha dor pesa 64kg;

esfreguei os dentes até que eles caíssem

por desespero e sangue desgarrado.

 

tomar café pirado pra da boca

sair alguns fractais semióticos;

escrever em diários sem páginas

na velocidade das palmas das pálpebras

após ter conhecido a maldição de muitos

no ônibus diário dos sonhos.

 

meu monólogo de surtos e lapsos histéricos

em plena poextasia alucinada;

o assédio dos demônios no calvário da cama

decompondo a carne podre do devir.

 

no dia em que todos descobrirem o que são

eu saberei quem botou fúria araucana

na cabeça da marina após seu nascimento;

meus cactos estão morrendo na sombra dos totens de argamassa.

meus cactos estão morrendo na sombra dos totens de argamassa.

 

 

 

 

 

 

nenhuma epígrafe para nós:

pelo menos por enquanto.

 

 

no meio da história, fotografias estilhaçadas em pedaços sem fim.

no meio da história, caminhos múltiplos que perpassam...

 

arquivos mortos nas ruas, o sino caído à mão muda,

nossos corações de lobo no sertão vazio onde reinam os cupins canibais.

um refrão agudo repetidas vezes penetra nossos ouvidos alto-falantes

como uma sirene louca nos ferindo com um quebra gelo:

 

mamíferos suicidas dependurados por cordas nos viadutos.

anfíbios suicidas dependurados por cordas nos viadutos.

répteis suicidas dependurados por cordas nos viadutos.

aves suicidas dependuradas por cordas nos viadutos.

peixes suicidas dependuradas por cordas nos viadutos.

 

corríamos sujos por todas as estações abandonadas

contra a epígrafe que nos perseguia na estrada cega,

corríamos vestidos por thc gostoso e

quanto mais corríamos mais nos interessava

criar uma epígrafe nova para estampar em nossos peitos.

 

tudo e nada funcionava naquele recorte de tempo

esmagado pela nossa ânsia de destruição perene,

pela ânsia de destruir

os espelhos opacos,

a moldura inflexível do nosso quadro,

a decadência de nossos seres incongruentes.

renegamos ao sepulcro a piedade cristã;

destruímos prédios com urros de tnt,

nossa fúria intragável derretia naturezas mortas.

 

anestesia no céu laranja das cidades invisíveis

visões ilícitas projetadas pelas galerias da sociedade secreta.

nossas feridas latentes não querem depositar segredos no cofre invisível

temos a nossa viagem particular no submarino-centopéia

temos também paixão em excesso para o desespero corriqueiro

e um cavalo-marinho para fugir nos momentos de histeria...

 

nossas dívidas banais pagamos com delírios coloridos,

nossas dívidas banais pagamos com delírios coloridos.

 

 

 

 

 

 

maníacos em busca da salvação

 

 

um milhão de anjos em cólera gritam nas assembléias de cinza oh

cidade de lábios tristes e trêmulos onde encontrar asilo na tua face?

                                                                                                              roberto piva

 

 

sentada na extremidade trêmula do abismo de seu dormitório,

subindo cada andar com o máximo de desespero

antes que as asas arrancassem do corpo e

suas feridas comessem todos os insetos imaginários;

um pulo e outro rumo ao centro da gaiola de ossos.

 

sentada na extremidade, quase queda,

do abismo que carregava em suas mãos

as portas se abriram sob seus pés

com todos os seus crimes e armas para a libertação.

 

a fuga estava próxima, ao alcance dos lábios e

as lágrimas enxugavam-se a cada sensação de distância,

embora jesus beijasse a boca de seu companheiro e

o carro fosse rápido entre as nuvens escuras e o clarear do dia

saltando todos os telhados com nossos delírios alcoolizados,

fome nos olhos e carregando a bagagem como um caracol em mudança.

 

conseguimos escalar várias paredes;

criar pontes sobre o vão que perseguia nossas pernas.

mas nossas penas de anjo logo se decomporam

quando a chuva de luz solar nos atingiu:

caímos sem paraquedas para fora de nós mesmos,

maníacos abandonados à deriva,

de volta ao parapeito frágil do destino.

 

 

 

[Do livro Fractais Semióticos. Teresina: Fundac, 2005]

 

 

 

 

[imagens ©kate thompson]

 

 

Demetrios Galvão (Teresina/PI). Historiador e poeta. Publicou os livros Cavalo de Tróia (2001), Fractais Semióticos (Teresina: Fundac, 2005), Insólito (Fortaleza: Corsário, 2011) e o CD Um Pandemônio Léxico no Arquipélago Parabólico (2005). Foi membro do coletivo poético Academia Onírica e um dos editores do blogue poesia tarja preta (2010-2012) e da AO-Revista (2011), além de ter integrado e participado da produção do CD Veículo q.s.p — Quantidade Suficiente Para (2010). Atualmente edita a Revista Acrobata. Vive em Teresina.