©galo endara
 
 
 
 
 
 

 

 

O fenômeno se iniciou logo após Sara ter se ausentado de casa e se encaminhado à escola onde Luna estudava. Pouco antes da hora do almoço. Às vezes, cabia a Edigar a tarefa de acompanhar a menina no trajeto entre a residência e o estabelecimento. Sobretudo quando Sara se dizia indisposta, cansada, doente. Ou ele queria andar um pouco, participar mais da vida de Luna, ser pai e se afastar das tintas. Na maioria dos dias, ele permanecia na morada, por toda a manhã. Sentia-se preguiçoso, indolente, um palerma. Porque na parte da tarde também não saía à calçada. A ele cabia pintar, fazer companhia à garota, auxiliá-la nos deveres escolares e, sobretudo, tomar conta da vivenda, enquanto a mulher trabalhava no colégio. 

Edigar contava então 40 anos, passava o dia a lambuzar quadros, que quase nunca conseguia vender, por mais que os expusesse em feiras e ruas. Ganhava uns cobres, como vivia a repetir. E se sabia pobre, quase miserável, não fosse o salário de Sara. Na juventude, quisera ser outro Gauguin. Sonhava com a fama. Imaginava-se em alguma ilha do Pacífico. Embriagava-se nos bares, dormia muito, passava horas enfiado em si mesmo, desiludido, disposto a abandonar tintas e pincéis e viver como seus antigos amigos: em repartições públicas, escritórios, lojas. Logo, porém, se julgava outro Van Gogh. Na miséria, sim, mas famoso depois de morto. Pintava mulheres nuas, campos com girassóis, auto-retratos. Voltava a se embebedar. Numa dessas tardes de demência, viu pela primeira vez Sara e sua filhinha, que andavam de mãos dados, muito sorridentes, faceiras, cheias de luz e alegria. Nos dias seguintes, as viu mais vezes. Passados alguns meses, passou a viver na mansão da professora. Mansão, sim, comparada à casinha onde se recolhia. Aceitou o convite, com uma condição: não exigisse dele muito, como deixar de pintar quadros. Poderia até abandonar a bebida. Não amava tanto o álcool. Só queria ser outro Antônio Bandeira, viver em Paris, conhecer os grandes pintores. Sara, professora de História, sem marido, sem ninguém, só queria viver, cuidar da filhinha e, se possível, conhecer um homem direito, que fizesse dela mulher. Podia ser motorista de táxi, auxiliar de escritório, advogado. Contando que a amasse. Pode ser pintor? Pode, sim.

A garota adorava a mãe, a vida, a escola, tudo. Gostava até do próprio nome. Gostava, mas mudou de ideia no dia em que sua mãe explicou: Seu nome quer dizer lua. Tão grande susto levou a pequena que quase desmaiou. Não, não queria mais ser Luna. Exatamente porque não queria ser lua. Sentia-se gorda, redonda. Ora, filha, você não é gorda nem redonda. Você é muito bonita, magrinha, linda.

Almoçavam, Edigar falava de novo quadro, a criança contava histórias nada engraçadas e Sara corria para a escola. Passada uma hora, regressava ao ateliê, enquanto a menina brincava de boneca ou estudava as lições. A tarde dormitava nos pincéis, nos cadernos, no chão, nas paredes. Antes do anoitecer, a professora voltava esbaforida, doida por um banho, faminta. Jantavam, Edigar falava do novo quadro, a pequena lamentava não ter feito todo o dever de casa e a mulher se queixava dos alunos mal-educados. Luna conseguia dormir primeiro. O casal cochilava diante da televisão. Vamos dormir, amor. Vamos. Acordavam cedo, ele doido por se tornar outro Portinari, Sara apressada na cozinha, a mocinha a se vestir, se pintar, se arrumar como as bonecas, para fazer bonito na escola.

Numa dessas manhãs de sonhos, quando Sara saiu para trazer a menina da escola, Edigar viu aquela novidade no chão. Parecia uma raiz grossa, saindo do rés da parede. Assustou-se. Pensou em pisá-la, cortá-la a faca. Onde estaria a árvore? Lembrou-se de que não havia quintal ou jardim na vivenda. Então, de onde provinha a raiz? Do vizinho? Por que não o chamar, avisá-lo do perigo, pedir explicações? E se se tratasse de uma serpente? Sim, aquilo parecia um réptil, vivo ou paralisado. Teve medo. Se se tratasse de espécie venenosa? Saiu de casa, vagou pela rua. Queria pedir ajuda aos passantes. Avistou um guarda. Aproximou-se dele. O senhor precisa me ajudar. Está passando mal? Foi assaltado? Retirou-se, mudo. Não acreditariam nele e talvez o chamassem de maluco. Retornou à morada. Tudo como antes, mas aquilo não mais parecia ter vida. E se não passasse de simples fenda no chão? Não sabia explicar, não entendia aquilo.

Quando mãe e filha chegaram, o homem parecia possesso, olhos muito arregalados, cabelos desgrenhados, suado, desesperado. Apontava para o chão, quase sem fala, vejam isto, esta coisa horrível. Luna não parecia espantada. Disse ter visto a pontinha, no dia anterior. Entretanto, não se importara. A mãe não queria nem sequer olhar para aquilo. E se irritou. Só podia ser coisa do marido, para assustá-las. Como você pode criar isto? Não, eu não criei nada. Isto surgiu, sem que eu quisesse. A mocinha se pôs a chorar. Edigar se armou de facão. Cortaria o mal pela raiz. A mulher se opôs ao desejo dele. Podia ser uma serpente. Igual àquela do quadro que você me vendeu. Lembra-se? Não, aquilo era o Jardim do Éden. Desta quero cortar a cabeça. Sara se desesperava: Não, não fizesse aquilo. Talvez não significasse uma serpente; apenas o chão se abrindo. Coisas da natureza, da geologia. E exasperava, aos gritos: A mansão vai ruir, a casa vai cair. Nunca esperara aquilo dele. Tanta confiança depositada. Lembra-se de quando nos conhecemos? Você solteirão, encalhado, a beber muito, a vender quadros na rua, numa calçada. Eu andava com minha filha, pequenina, apenas seis anos. Queria um quadro bonito para a sala. Comprei um das serpentes. E nos tornamos amigos. Depois de algum tempo, passamos a nos encontrar a sós. Edigar se confessava envergonhado daquilo; não tinha culpa, não se via culpado. Fora tudo de repente. Prometo a você outro filho, muito amor, muito carinho. Ela chorava. Não podia mais acreditar nele. 

 

 

 

Fortaleza, 28 de outubro de 2010.

 

 
dezembro, 2013