©denis defreyne
 
 
 
 

 

 

 

 

[Em 17/2/2013, com 11.074 caracteres]

 

 

O apito

 

 

Chegou à via férrea e parou sobre os trilhos. Virou-se para um lado: logo adiante uma curva e mata fechada. Voltou-se para o lado oposto: mata fechada e uma curva mais à frente. Na dúvida, decidiu brincar de par ou ímpar. E se imaginou duplicado. Gêmeos univitelinos. Só se diferenciavam por dentro: um, otimista ao extremo; outro, essencialmente pessimista. Fantasiou também as quatro mãos para trás, a escolha do par e do ímpar, e ele, o neutro, o juiz: um, dois, três e... já. Ganhou o ganhador de sempre. Sorriu, chutou uma pedrinha e se pôs a caminhar pela estrada de ferro. Sentia-se o tal, tão cheio de sorte, tão vencedor na vida. Distraído, não teve tempo de ouvir o apito.

 

 

 

Nanocontos sem título

 

 

Sentou-se numa cadeira da primeira fila do teatro. As luzes se acenderam e ela subiu ao palco. Num minuto, fez sua estreia. Monólogo de um ato. Não havia plateia.

 

 

*

 

Foi o primeiro da fila. O último a ser atendido.  Porque único.

 

 

*

 

A mulher chegou ao céu, ainda coberta de nuvens. Os anjos quiseram desnudá-la. Desiludida, precipitou-se para o inferno.

 

 

*

 

Pintou-se de branco para o baile das elites. Cobriram-na de champanhe e línguas. Voltou a ser preta. Comeram-na viva.

 

 

*

 

Queria ser poeta. Escreveu, não leu, o pau comeu. Virou bicho.

 

 

*

 

Saiu de Fortaleza no rumo das Arábias. Queria ver camelos. No meio do caminho, virou sereia.

 

 

*

 

Fulana adorava beltrano, que foi embora com sicrana. Agora ama um sujeito sem nome, sem nada, sem adoração. Em silêncio.

 

 

*

 

Andava pelas ruas, despreocupadamente. Depois enlouqueceu, vagou pelas ruas, a olhar para trás. E se viu como antes. Súbito, um carro o colheu.

 

 

*

 

O pastor ouviu badalo de ovelhas e se benzeu. Olhou para o terreiro e viu um bode preto. "Quem é?" O diabo retirou a batina e, cajado em riste, apontou para o chão coberto de moedas: esterco de ovelhas.

 

 

*

 

O advogado Sansão freou o carro e disse à estagiária Dalila: Das duas, uma: ou dá ou desce. É a lei. Ela deu (uma paulada na nuca). Ele desceu (aos infernos). Ela riu: É uma pena.

 

 

*

 

Caçava tesouros. Cansava de nada encontrar. Então resolveu caçar homens. Na moda, caçar pedófilos. Uma mina. Caçou avós, pais, tios, padrastos, primos, irmãos, amigos, inimigos. Fez-se famoso. E mais famoso ainda quando um caçador mais astuto o flagrou com a boca num tesouro de oito anos de idade.

 

 

*

 

O cirurgião Gervásio Mão-Furada tem mansão, jatinho e está sempre nas colunas sociais. Quando quer, viaja às ilhas gregas, onde tem morada de luxo e carnes brancas à vontade. Nem se lembra do pequeno Gervásio, que queria ser açougueiro.

 

 

*

 

Iniciou-se na arte do voyeurismo ainda menino. Viu dezenas de meninas e moças nuas pelo buraco da fechadura. E seguiu pela vida a se transtornar. Até o dia em que lhe meteram num olho uma caneta e no outro um lápis. Agora vê no mundo uma janela indiscreta.

 

 

*

 

Fabiano comia frango todo dia. Nada de boi, porco, peixe. Então conheceu Fabiana.

 

 

*

 

Gostava Gustavo de homens. Gostavo foi o primeiro. Gustava demais dele. Porém, conheceu outros. E se gustavou de vez.

 

 

*

 

Dois celulares sobre a mesa. Quero tanto transar com você. Não sei como isto seria? Chegue mais perto de mim. Ele não vai gostar de nos ver assim. De quem você está falando? Do nosso dono. É um maluco. Adora coisas, como nós. Por que não se relaciona com os da espécie dele, em vez de nos possuir? Os humanos são assim mesmo.

 

 

 

 

Conversa de telefones

 

 

Alexander levou o filho William a um antiquário. Queria mostrar ao menino coisas antigas. Atendidos por Isaac, o dono da loja, perderam-se em perguntas. Pai o que é aquilo? Filho, sabe o que é isto? Por descuido, pôs sobre uma mesinha o celular de última geração. Bem ao lado de um telefone antigo. E os dois aparelhos se mediram com olhos de curiosidade. Quem é você, grandalhão? Sou teu avô. E ainda funciona? Mais ou menos. E se mostrou, orgulhoso, para o pequenino: os dois fones, a manivela, o cordão que ligava o fone de ouvido à base. Alexander se assustou. William se embasbacou. O judeu se rejubilou: Estão interessados neste? Na mesa, os dois objetos conversavam: Tu gostas da vida? Ando sempre por aí, no bolso do meu dono, que não me larga nunca. E você, vovô? Estou há tempos parado nesta loja. Sinto uma solidão danada. Chamaram o celular, que passou a cantar doidamente. Alô, amor. O homem agarrou o objeto. Oi, amorzinho. Onde você está? No antiquário. Cadê nosso filho? Está apaixonado por um telefone antigo. Triste, o pequeno olhava para o grandalhão: Irão me trocar por essa coisa velha?

 

 

 

 

Jovem escritor

 

 

Velha anedota fala da paixão do mineiro pelo pão de queijo. Um repórter perguntou a um jovem escritor "quais são os três melhores...". O sujeito nem esperou pelo resto da frase e gritou: "Eu". O jornalista, olhos nos olhos, microfone enfiado na boca do gabola: "E o segundo?". O interrogado olhou para o céu, para os olhos vidrados e as mãos trêmulas do homem do jornal, alisou o bigodinho, tossiu, pigarreou, empertigou-se. Passou meia hora a fazer trejeitos, como se quisesse ludibriar o outro. "Vamos, diga o nome do segundo". O escritor sorriu e se pôs a pedir desculpas: "Você sabe, sou muito modesto, muito acanhado para falar de mim mesmo. Mas, como você insiste na pergunta, não posso deixar de afirmar: Eu". O periodista se assustou: "O senhor é o primeiro. Quero saber o nome do segundo".

 

 

 

 

História muda

 

 

O narrador nada dizia. O narratário, paciente, olhava para os lábios do outro, cruzava e descruzava braços e pernas, coçava a cabeça, o queixo, fazia caretas. Depois de muito esperar, irritou-se, levantou-se do sofá e se retirou de cena: Não vai contar a história, seu idiota?

 

 

 

 

De desaparições e de ruínas

 

 

Quando os dragões sumiram por trás dos montes, eu me quedei, olhos fitos nos horizontes empardecidos. Anoiteceu e ainda pude ver suas sombras se diluindo, e, com elas, toda a coorte do castelo: princesas, fadas, bruxas e duendes. Incontinenti, ruíram as muralhas e um pó sem cor se fez no ar, feito nuvens de tempestade. Busquei sonhar. No entanto, o leito não me comportou e eu me senti tão só que a noite nunca teve fim. Tudo desapareceu, tudo ruiu: ruas e casas que habitei e com elas meus passeios; cadernos de caligrafia e com eles meus rabiscos; verbos no pretérito e com eles o presente e o futuro; bares onde me inebriei e com eles meus devaneios; amigos e seus ais e com eles a sede de dizer; amadas e seus olhos e com elas a fantasia; meus irmãos e suas vozes e com eles os motivos de lutar; meu pai e minha mãe e com eles o sentido de viver.

Tudo desapareceu, tudo ruiu, até que o próprio Deus sumiu. E então tudo o que fora sólido se espedaçou; tudo o que fora festa se estiolou; tudo o que fora enigma se elucidou; tudo o que fora nobre se banalizou; tudo o que fora belo se embaçou; tudo o que fora doce se amargurou; tudo o que fora sacro se aviltou; tudo o que fora eterno se findou; tudo o que fora vida em morte se tornou; tudo o que fora meu roubou-me o tempo e eu afundei num poço em que não creio.

 

 

 

 

Vingança

 

 

Olhei pela fechadura e vi meu pai em cima de minha mãe. Senti tanto ódio dele que corri para o banheiro e me masturbei demoradamente, aos prantos, até ver murchar a haste do desejo.

 

 

 

 

A pré-morte de Capitu

 

 

Certa manhã, pedi à escrava um café forte. Ela me trouxe a xícara e a fumaça. Misturei veneno ao líquido escuro e chamei Ezequiel. "Toma este café, meu filho". A carinha dele lembrou o nosso amigo de sábados e domingos. Os olhos, o nariz, a boca, os gestos, as mãos. Tudo de Escobar. O pequeno olhou para mim, abraçou minhas pernas e disse "papaizinho, eu te amo". A mãe dele, lívida, chegou à sala: "Meu filho, não beba isto". Sem fala, frio como as mãos do anjinho, ofereci a Capitu a cicuta.

 

 

 

 

Espelho quebrado

 

 

O rapaz se mirou diante do espelho, apalpou o rosto, irritou-se e deu um soco no quadro que o reproduzia. O vidro se espatifou, pedaços caíram no chão do banheiro. No exato instante do murro, o rosto do jovem pareceu também se quebrar ou se distorcer. Olhou para a mão. Nenhum ferimento, apenas dor. Saiu do cômodo e correu pela casa em direção à sala. Abriu a porta, desceu as escadas e chegou à garagem. Entrou no carro, ligou o motor e saiu em disparada. Na primeira esquina, o veículo se chocou com um caminhão. Encontraram apenas metais retorcidos e um homem completamente desfigurado. Como um espelho quebrado. 

 

 

 

 

A cópula

 

 

Um dito louco, coitadinho de um escritor nunca publicado, sentou-se na cadeira de madeira, dura como toda dita, estendeu os maneiros braços sobre a mesa, olhou para as finas mãos e decidiu escrever na própria tábua da mesa seu texto definitivo: a violenta paixão de um homem por uma mesa. Escreveu, escreveu, escreveu. No rés do chão, suas pernas impacientes. Longas pernas de louco. Entre as rijas e também longas pernas da mesa. E, inconsciente, foi penetrando seu meio corpo no vácuo da mesa-livro. Súbito, as antes rijas pernas da mesa se abriram de todo e fizeram desabar sobre as dele a tábua-livro.

 

 

 

 

Tragédia momina

 

 

Fantasiado de rei, o alegre homem gordo foi brincar o carnaval. Pisou as mãos das criancinhas e os pés dos homens descalços. Cuspiu na cara dos que dele se aproximaram. Dançou, sozinho e absoluto. Por fim, uns magros passistas, fantasiados de guaranis, espetaram lanças na pança de Momo.

 

 

 

 

O suplício de Catão

 

 

Por amar demais a arte de desenhar xis nas folhas literárias e jornalísticas submetidas a censura, Catão se esqueceu da esposa. Porém a esquecida, num dia de muita fadiga, lembrou-se do esquecimento e cravou duas canetas nas têmporas de Catão, que dormitava sobre folhas.

 

 

 

 

Último ato

 

 

O heróico rato olhou para o grande gato e gritou: vem me pegar, covarde, se tens coragem. Julgava-se herói e vencedor, porque nasceu e cresceu numa favela, a roer migalhas e porcarias, até se deslocar para o bairro nobre e se encastelar numa mansão. Ainda vida de medo, mas com fartura: queijos suíços, paletós de linho branco, vestidos de seda, sapatinhos de cristal da princesinha. Quando o gato desse o primeiro passo, correria e se meteria no buraco salvador. Vem me pegar, covarde, se tens coragem. O gato olhou para o intruso e petulante roedor, deu um salto e abocanhou as ancas do herói.

 

 

 

 

Verbete

 

 

Os Egomatas viveram na fase azul do século vermelho, no minúsculo boloide Acqua. A última guerra durou alguns segundos (décadas, para eles) e deixou como resultado apenas uma dúzia de imbecis e um sábio, que extirpou de seus espíritos o vírus do egoísmo (ou razão da vida e da morte), de que originou a suprema indolência, chamada de morte pura e simples. Esse tipo de morte ocorre quando da ausência de ódio e sentimentos afins nos animais. (Extraído de Enciclopédia da Vida, Novos Verbetes: Egomatia, Egomatas e Variedades de Mortes)

 

 

 

 

História do maluco leitor das grandes, médias e pequenas obras filosóficas que um dia, inopinadamente, tomou de assalto a única emissora da república, interrompendo a fabulosíssima novela das dez, e gritou, para espanto e medo de todos:

 

 

— Não penso; logo não existo.

 

                                                           F i m

 

 

 

 

 
junho, 2013