I

 

Que seja um bielorrusso naturalizado brasileiro um dos melhores poetas do Brasil deste século 21 é mistério que só mesmo a arte poética pode explicar. Que em tão poucos anos de Brasil — menos de oito — tenha encontrado tempo e disposição para conhecer a fundo a poesia praticada no País desde a época colonial e em apenas dois livros apresentar uma proposta poética inovadora é questão que, à primeira vista, foge à compreensão do leitor comum. Mas foi isso mesmo o que se deu com Oleg Almeida (1971), que lançou, em 2011, Quarta-feira de cinzas e outros poemas (Rio de Janeiro: Sete Letras), laureado em novembro de 2012 com o Prêmio Literário Bunkyo da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (São Paulo). 

E não há nenhum exagero no que se escreve aqui, pois apenas se confirma o que Cláudio Murilo Leal expôs no prefácio que produziu para este livro. Lá diz, sem nenhum favor ou encômio hiperbólico de encomenda, que Oleg Almeida evitou o discursivismo enxuto, sem metaforização hiperpoética, da chamada geração de 45 e também as reinvenções letristas da vanguarda concretista (leia-se irmãos Campos e Décio Pignatari). Para Leal, Oleg Almeida soube ainda livrar-se do arremedo de dicção reiterativa da vertente metapoética de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). E tampouco em sua poesia nada há que o aproxime do pieguismo dos neorromânticos. Não é pouco.

Naturalmente, Oleg Almeida não caiu do céu em solo brasileiro. Dessa herança do passado da poesia brasileira, o poeta soube retirar um pouco de cada fenômeno poético e de cada período para construir uma poesia que se mostra única porque diferente do que se faz normalmente no País. Obviamente, sem deixar de acrescentar a herança eslava que recebeu e que vem de Alexandr Pushkin (1799-1837), o maior poeta russo de todos os tempos e o renovador da linguagem literária russa, pois que todos que vieram depois dele — Dostoiévski (1821-1881), Tolstoi (1828-1910), Tchekhov (18601904), Gorki (1868-1936), Anna Akhmatova (1889-1966) e outros tantos — foram por ele influenciados.  

Quem duvidar que leia este "Quarta-feira de cinzas", que dá título à obra e constitui um poema longo dividido em 13 atos que conta uma experiência bem brasileira, que costuma atrair sempre o olhar estrangeiro: o Carnaval. Mas o faz como uma metáfora da vida vivida, o que sobra de uma experiência, os "resíduos da festa". Eis o começo desse poema:

 

                            Ela dorme, rainha,

                                   prostrada na cama de luxo,

                                   desnuda no centro do mundo

                                   domado por sua beleza.

                                   São dez da manhã,

                                   e os raios do sol estival

                                   atravessam, discretos, o quarto,

                                   tirando da quente penumbra

                                   (purpúrea por terem a cor da paixão

                                   as pudicas cortinas)

                                   um par de sapatos – dois frágeis barquinhos

                                   deixados à beira da praia recôndita pela maré

                                   vazante – primeiro;

                                   depois umas roupas que guardam ainda

                                   um pouco de seu predileto perfume

                                    não sei como chamam, almíscar ou âmbar,

                                   àquela fragrância a cobrir

                                   de gotículas quase palpáveis de néctar

                                   o corpo em pelo (...).

 

 

II

 

Em Quarta-feira de cinzas e outros poemas, há ainda cem "haicais urbanos", forma de origem japonesa, o haiku, que desembarcou no Brasil há cerca de um século e hoje conta com muitos praticantes e estudiosos. Se o haicai é a arte de anotar sensações fugazes, de forma despojada e sensível, especialmente as provocadas pela passagem do tempo, representadas, por exemplo, nas estações do ano, os poemas de Oleg no gênero chegam próximo da perfeição. Como neste exemplo:

 

                            Não finge nunca

                                   ser feliz ou infeliz

                                   o sol da tarde.

 

O haicai pode ser também um poema concentrado que capta em poucas palavras a expressão de um momento:

 

                            Disse, sincero,

                                   ao açougueiro: "Mano,

                                   chega de sangue!"

 

Ou ainda, como numa fotografia que "congela" a imagem, o haicai registra o abstrato, o segredo, o sentido:

 

                            Minhas idéias

                                   são como os meteoros:

                                   fulgem e somem.

 

 

III

 

Em seu livro de estreia, Memórias dum hiperbóreo (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2008), já há uma ressonância do romance em versos Eugênio Onegui, de Pushkin, como bem observou na apresentação Marco Lucchesi. Trata-se de uma elegia que, à la Marcel Proust (1871-1922), empreende uma busca do tempo perdido. Poeta de dois mundos, Oleg reconstitui de maneira insinuante as duas terras em que viveu e vive, mas de forma alegórica: de um lado a Grécia, ou seja, a Corinto mítica — não a de hoje, em ruínas —, aquela que o apóstolo Paulo (ca.5d.C-67d.C) visitou para levar a palavra de Cristo, e, de outro, a Finisterra, igualmente mítica, ao Sul. Ambas podem ser lidas como a Bielorrúsia e o Brasil, ou Gômel, a cidade ele onde nasceu, e Brasília, onde vive hoje.

Isso fica mais claro quando se sabe que os hiperbóreos são um povo lendário que, para os gregos antigos, habitavam o extremo Norte da Terra. E quando o poeta diz:

 

                            Eu nasci muito longe daqui,

                                   lá no norte severo,

                                   na terra beata, dos hiperbóreos

                                   além deste mar bravio situada,

                                   inatingível. (...)

 

Ou quando recorda a casa paterna:

 

                            Na minha casa, se bem que tivesse um só andar,

                                   comiam-se ótimas carnes e pães excelentes,

                                   bebiam-se vinhos de uva e maçã,

                                   cada dia, usavam-se finas toalhas e pratos ornamentados. (...)

 

Ou quando lembra o dia em que deixou a terra dos hiperbóreos e a cidade de Gômel:

 

                            Adeus, minha pátria bela:

                                   cidade, onde passei a infância feliz

                                   e da áurea juventude colhi as primícias;

                                   casa em que moraram

                                    três gerações de minha família;

                                   pedras e árvores

                                   de que nem no leito de morte me esquecerei.

                                   Adeus, minha pátria...

                                   Como são boas as tuas cerejas vermelhas e pretas! (...)

 

Em Gômel, presenciou a "bárbara destruição da União Soviética", como diz, episódio de que também fala, de forma alegórica, em Memórias dum hiperbóreo . "Tinha de mostrar o passaporte para comprar, digamos, um quilo de açúcar", recorda.

O mundo em que o poeta chegou, como a uma Ítaca da qual nunca houvera partido porque é aquela que carregamos no íntimo, o nosso aqui e agora, de que fala o poeta Antônio Cicero em breve apresentação na contracapa deste livro, é o Brasil (ou a Brasília feérica), o que pode ser lido alegoricamente nestes versos finais:

 

                            Contudo Alexandria – se bem que não seja o nome real

                                   da metrópole onde resido – tem míseros bairros e bairros de luxo,

                                   palmeiras, calçadas expostas ao sol ardente,

                                   bibliotecas em que, do papiro transcritos,

                                   os versos homéricos avizinham os livros de auto-ajuda,

                                   folganças e pesadelos de sobra;

                                   contudo eu mesmo tenho emprego fixo,

                                   televisão a cabo

                                   e umas garrafas de vinho bastante caro na geladeira

                                   e não me sinto, graças a Deus,

                                   estrangeiro a ponto de abdicar ao sonho em prol da memória. (...)

 

 

IV

 

Oleg Andréev Almeida nasceu numa família humilde, mas culta. Estudou numa típica escola dos tempos soviéticos, a qual tinha Homero (sec.VIII a.C), Shakespeare (1564-1616), Cervantes (1547-1616), Tolstoi e Dostoiévski no currículo do ensino médio.  Estudou também as letras francesas numa pequena, embora tradicional, instituição, a Escola Central das Letras Estrangeiras em Moscou (1989-1992).

A levar-se em conta o que escreve no prólogo em versos que escreveu para Quarta-feira de cinzas e outros poemas, se dependesse da vontade de seus pais, teria se formado em medicina, que "a saúde é bom negócio", como diziam com insistência, ou dos avós, que o queriam ver  ministro no regime soviético  ou, na pior das hipóteses, funcionário da prefeitura. Não se pode dizer que não se tenha preparado para isso: é pós-graduado em Gestão Financeira pela Academia da Fazenda subordinada ao Governo da Federação Russa (1999). E fez carreira como tradutor, analista e executivo da área comercial.

Em Gômel, publicou poemas e artigos em periódicos e ainda em coletâneas de poesia bielorrussa.  Trabalhou, por muito tempo, na iniciativa privada — "máxime para não morrer de fome", diz — e aprendeu o idioma Português por mera curiosidade, usando dois livros (O Alienista, de Machado de Assis, e Crônicas, de Luís Fernando Veríssimo) e um curso de português editado nos Estados Unidos. Imigrou para o Brasil com 34 anos de idade, em 2005.  E, desde então, mora em Brasília e trabalha como tradutor de russo. Casou-se com uma brasileira e começou a traduzir diversos tipos de textos. "Escrevi alguns versos que, inesperadamente, foram publicados em antologias amadoras", diz o poeta, que se naturalizou brasileiro em fevereiro de 2011.

É também tradutor de obras literárias e científicas.  Traduziu do francês  O esplim de Paris: pequenos poemas em prosa, e outros escritos, de Charles Baudelaire (São Paulo: Martin Claret, 2010); e Os cantos de Bilítis: romance lírico, de Pierre Louÿs (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2011). Verteu para o russo Tu país está feliz, de Antonio Miranda (Brasília: Fundo de Apoio à Cultura, 2011);  Canções alexandrinas, de Mikhail Kuzmin (São Paulo: Arte Brasil, 2011); Pequenas tragédias, de Alexandr Pushkin (São Paulo, Martin Claret, 2012); Diário do subsolo, de Fiódor Dostoiévski (São Paulo: Martin Claret, 2012), e O jogador: do diário de um jovem (São Paulo: Martin Claret, 2012).

Sócio da União Brasileira de Escritores (UBE), seção de São Paulo, colabora com as revistas eletrônicas EisFluências e (n.t.) – Revista Literária em Tradução, administra o projeto Stéphanos: Enciclopédia virtual da poesia lusófona contemporânea e atua como agente cultural. Participou de 15 antologias e coletâneas de poesia lusófona editadas no Brasil e em Portugal, inclusive da Câmara Brasileira de Jovens Escritores, do Rio de Janeiro, e do grupo literário Celeiro de Escritores, de Santos-SP, e de várias editoras brasileiras.

 

 

 

 

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Quarta-feira de Cinzas e Outros Poemas, de Oleg Almeida. Rio de Janeiro: Sete Letras, 110 págs., 2011, R$ 29,00.

 

Memórias dum Hiperbóreo, de Oleg Almeida. Rio de Janeiro: Sete Letras, 75 págs., 2008, R$ 25,00.

E-mail: editora@7letras.com.br | Site: www.7letras.com.br

 

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junho, 2013