Seres humanos no meio da turba, a deambulação pela cidade nos
princípios do séc. XXI obriga-nos ao exercício contínuo do olhar. Mapas
de símbolos, graffitis ou
palavras de ordem buscam diálogos com o flâneur urbano de uma
pós-modernidade em esgotamento e não raras vezes um sinal ocasional
poderá transportá-lo inconscientemente para essa reserva mítica que uma
cultura saturada pela omnipresença retórica da imagem e do símbolo o
habituou a reconhecer. O silêncio da mão aberta em negativo na
superfície de betão (fig. 1)
poderá reenviá-lo quase
instintivamente para a profundidade obscura da caverna e para o gesto
mágico da impressão digital do homem do paleolítico na parede irregular,
como a que podemos observar ainda hoje em Lascaux (fig. 2). Alguns olhares mais sensíveis aos grandes mestres da arte povera talvez pudessem
ainda nela reconhecer uma dessas menos frequentes mãos de Antoni Tàpies
(fig. 3), manchas em positivo que
desde cedo também as crianças aprendem a produzir (fig. 4) e que poderão consistir num dos mais elementares processos
de criação de arte em ambiente lúdico. Qualquer que seja o
reconhecimento, o flanêur
contemporâneo deverá confiar no exercício inconsciente da memória pela
regressão do pensamento a uma experiência que silenciosamente se recolhe
na profundidade de algo que é em simultâneo insondável e familiar e ao
qual se congregam tantas outras experiências quantas a sua vivência
humana aprendeu a reconhecer.
Entre o fazer da mão e o mundo de ideias e arquétipos na parede
da caverna que esse fazer pretende imitar baseiam-se, como sabemos,
algumas das mais antigas e conhecidas posições sobre o ato criador,
entre a poiesis técnica do
artista e o inatismo sobrenatural do seu dom irracional e original, aqui
no sentido de força próxima da origo da própria criação humana.
Reconfiguradas ao longo dos séculos, estas posições têm acompanhado a
reflexão sobre a arte e observamo-las ainda recentemente através de
Dennis Dutton em The Art Instinct
– Beauty, Pleasure and Human Evolution, quando, a propósito da
relação entre a universalidade da arte e a universalidade da linguagem,
resume: "both exhibit and
interplay between, on the one hand, deep, innate structures and
mechanisms of intellectual and emotional life and, on the other hand, a
vast ocean of historically contingent cultural materials (…)
No philosophy of art can succeed if it ignores either art's
natural sources or its cultural character" (2009: 31). Evitando alguns aspetos problemáticos das afirmações,
sublinharemos neste enunciado dois pontos que consideramos importantes
destacar: por um lado, a contingência que é
característica do ato da criação, cuja natureza transcende a exatidão do
conhecimento quando remetida para a subjetividade do humano ou quando se
depara com o silêncio no ponto mais remoto da sua origem; por outro,
essa universalidade da
linguagem que é outro dos mais poderosos e misteriosos substratos da
arte e, ao mesmo tempo, sua permanente atualização ou reconfiguração.
Através dessa vinda do silêncio, a palavra poiética reconfigura-se origem em todo o seu instante
performativo e no seu devir é primitiva porque é sempre ação
ou força atualizada e impulsiva do protogonos, daquele que, como um
deus nascido do Caos, primordialmente se lança à violência.
A este propósito, Maurice Blanchot em A Besta de Lascaux, a Besta
Inominável do poema de René Char, entendia o fundamento da comunicação
poética no confronto violento entre a abertura e o fechamento da obra no
momento da sua imposição como poder (a linguagem na pujança da sua
performatividade) e o ilimitado em que ela se recusa (a linguagem do
pensamento, o silêncio eterno de que é também testemunho). O diálogo
destas duas vertentes agilizar-se-ia em torno do ponto comum que é a sua
matriz original, consubstancial em ambas de um modo que o leva a
concluir que, no decurso da sua génese, "toda a obra poética (…) é
retorno a essa contestação inicial e mesmo que, na medida em que ela é
obra, não deixa de ser a intimidade do seu eterno nascimento" (Blanchot,
2003: 38). Nesta conceção, a condição original, primitiva, supõe-se
vestigialmente presente na sua substância, sendo possível a sua
reatualização textual sob diferentes formas. Entendemos, pois, o
conceito de primitivo nesta
dimensão vestigial que, no âmbito da literatura, se traduz numa série de
reconfigurações textuais ou versões de que decidiremos em síntese
selecionar quatro: a origo, a
inconsciência, o impulso e a infância. Falamos em origo ou origem num sentido próximo da
leitura de Walter Benjamin (a de Ursprung), que em A Origem do Drama Trágico Alemão
a distinguiu de génese (Entstehung) através da imagem do
redemoinho; ao contrário do nascimento implicado na génese, a origem apresenta-se
sob a forma de um dinamismo emergente desse processo mas que, conforme
define, "só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um
lado, como restauração e reconstituição, e por outro lado como algo de
incompleto e de inacabado" (Benjamin, 2004: 32). Sendo, para Benjamin,
uma categoria histórica, tende a localizar-se em simultâneo tanto na sua
pré- e pós-história por admitir permanente reatualização, atendendo ao
mesmo tempo tanto ao passado da essência (a sua génese) como também aos
momentos do seu reconhecimento ao longo da História. Neste sentido, a origo poderá ser descrita como
um valor em permanente reconhecimento e questionação, reconfigurando-se
ao ponto de manter a sua substância mítica (a origem como tempo
pré-histórico, incompleto) na recriação dinâmica desses dados. Não deixa
de ser pertinente remeter, a este propósito, para a caracterização que
Antero de Quental propõe no seu soneto "Evolução", em que o devir
evolutivo não impede a constatação da reserva desconhecida e misteriosa
que pré-existe o sujeito: Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incógnita floresta… Onda, espumei, quebrando-me na aresta Do granito, antiquíssimo inimigo… Rugi, fera talvez, buscando abrigo Na caverna que ensombra urze e giesta; Ou, monstro primitivo, ergui a testa No limoso paul, glauco pascigo… Hoje sou homem — e na sombra enorme Vejo, a meus pés, a escada multiforme, Que desce, em espirais, na imensidade… Interrogo o infinito e às vezes choro… Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro E aspiro unicamente à liberdade. (Quental, 2001: 207-8)
Benjamin considerava as épocas transitórias de Decadência
especialmente consequentes quanto a esta posição sobre a origo. De facto, no âmbito da
literatura portuguesa, autores como Antero de Quental ou Fernando Pessoa
acompanharam de perto, em dois polos diferentes, a profunda questionação
estética e filosófica que caracterizaria os diversos movimentos
finisseculares e que resultaria em novas perspetivas sobre o sujeito
criador e suas relações com o texto e a linguagem poética. Ambos
reconheceram na crise o
avatar essencial da Decadência (em todos os géneros de manifestação em
que muito baudrillarnianamente esta surja como valor de uma moral
contraditória) ao associá-la à ideia de esgotamento dos paradigmas
otimistas do progresso científico e seus contributos civilizacionais, os
mesmos que levariam às conhecidas ruturas de Nietzsche e às alternativas
vanguardistas dos inícios de novecentos. Sintomaticamente, a crise do
tempo monista, unidirecional, favorável ao indivíduo-organismo no vasto
corpo social, propiciou a emergência do primitivo no instante da
revalorização da potência do sujeito criador dominado por forças ou
impulsos vestigiais da sua origo natural, universo
contingente reatualizável em qualquer ser humano como pretenderia Freud
com o id., a camada mais
inferior nos termos da psicologia das profundezas. A ideia de
genialidade via-se legitimada desde o pensamento filosófico da
Antiguidade e retificada pelos estudos científicos de oitocentos que
julgaram atestar-lhe causas fisiológicas naturais, acabando por garantir
com a modernidade baudelairiana o sancionamento do seu caráter
cosmopolita, nevrótico, impulsivo e tendente às mais diversas
figurações, sendo para Baudelaire a do baby uma das mais eficazes, a
par do selvagem (cf. Baudelaire, 2004: 20). Génio
infantil, análogo à criança que tenderia a observar organicamente o real
como novidade, o sujeito
criador desejou reconfigurar-se artisticamente no espaço misterioso do
recomeço da inocência primitiva, ao mesmo tempo que valorizou o
inconsciente como topografia privilegiada do redemoinho do contingente.
No célebre soneto "O Inconsciente", Antero reconstituía estas versões de
primitivo na imagem do Deus mudo e longínquo, para lá da morte,
"espectro mudo, grave, antigo, / Que parece a conversas mal disposto",
uma reconfiguração da origo
que tornaríamos a encontrar com algumas modificações no não menos
célebre "Na Mão de Deus", no qual o sujeito-infante
(etimologicamente 'o que é mudo', o que não domina a linguagem)
procura metaforicamente acolhimento: (…) Como as flores mortais, com que se enfeita A ignorância infantil, despojo vão, Depus do Ideal e da Paixão A forma transitória e imperfeita. Como criança, em lôbrega jornada, Que a mãe leva ao colo agasalhada E atravessa, sorrindo vagamente, Selvas, mares, areias do deserto… Dorme o teu sono, coração liberto, Dorme na mão de Deus eternamente! (Quental, 2001:
313) Leitor de Antero, António Nobre faria da infância nessa epopeia
da crise que é o Só o domínio
pleno da condição do génio em permanente atualização ingénua
do receio da sua perda, entrevia no sono da morte o retorno à pura
inconsciência, tal como coincidentemente manifesta no último soneto da
obra onde clama por uma dor insuportável, "(…) é a dor do pensamento! /
Ai quem me dera entrar nesse convento / Que há além da Morte e que se
chama A Paz!" (Nobre, 1983:
148). Posteriormente, Fernando Pessoa celebraria o génio infantil de
Alberto Caeiro pela originalidade da única inocência, a de "não pensar",
que nas palavras do heterónimo é também uma forma de aproximação ao
momento solar da humanidade em que, como descreveria em "O Guardador de
Rebanhos", todos os homens descobriram como irmãos a luz nua do
alvorecer da civilização: Bendito seja o mesmo sol de outras terras Que faz meus irmãos todos os homens Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como
eu E nesse puro momento Todo limpo e sensível Regressam imperfeitamente E com um suspiro que mal sentem Ao Homem verdadeiro e primitivo Que via o sol nascer e ainda o não adorava. Porque isso é natural — mais natural Que adorar o sol e depois Deus E depois tudo o mais que não há. (Pessoa, 1994: 88) Se é sabido que António Mora considerou Caeiro "um primitivo
contemporâneo", tal como os seus restantes comentadores heteronímicos
(Ricardo Reis, Campos, Thomas Crosse) fá-lo por nele considerar
exemplarmente reunidos o objetivismo e materialismo característicos do
projeto neopagão. Uma posição como esta, porém, significará ao mesmo
tempo reconhecer a sua imensa complexidade, se atendermos aos diversos
momentos em que os poemas de Caeiro se sujeitam contingentemente a
exercícios hermenêuticos com resultados variáveis; pensamos aqui, como
exemplo, nas aproximações que Ricardo Reis reconhece a um certo
panteísmo neo-romântico muito próximo de Teixeira de Pascoaes e do
ideário da Renascença
Portuguesa ou mesmo a desconfiança proporcionada pela receção dos
seus textos, que o próprio Pessoa destaca em artigo incompleto destinado
a A Águia (de 1913-14) ao
assegurar a Caeiro a máxima originalidade apesar da desconfiança quanto
à sua pura objetividade e espontaneidade: "Assim como para materialista
o acho espiritualista em extremo, e, como para poeta o acho filósofo em
excesso, para espontâneo acho-o consciente de mais" (idem,
217). Questões como estas
suscitam a necessidade de releitura da complexidade de Caeiro, para a
qual concorre a presença de Pascoaes e de suas versões do primitivo. No
prefácio à reedição de Marânus, Eduardo Lourenço
considerava a sua visão, tal como a de Pessoa, suspensa de uma ausência
distinta do nada pessoano e da utopia da objetividade por se apresentar
como uma ausência sensível,
associada a uma forma de panteísmo resultante da conciliação dos opostos
que acompanha a evocação primitiva do ser na sua dimensão cosmogónica e
natural. Clamava Marânus, protagonista da obra homónima, o mistério da
criação aos montes selvagens: «Ó lodo, imundo e vil, de que sou feito! Fragilidade humana, como sabes Criar, em tua dor, o que é perfeito? Como geras a vida, sendo a morte?» (Pascoaes, 1990: IV,
32) Em alternativa ao homem solar de Caeiro, idealizado no seu
paganismo luminoso e clássico, Marânus recorda na sua deambulação pela
montanha uma outra versão antropológica do primitivo, o horror do grito
do primeiro homem (o "orango") na primeira experiência de confronto com
a crueza da sua verdade animal, revelada como anti-Narciso ao
descortinar "surpreendido e medroso, num regato / Seus feios gestos e
peluda cara!" (idem, 52-53), obrigando-o a desviar o olhar de si para o
mundo, da sua objetividade para a recriação do mundo:
E julgou, por momentos, regressar Às primeiras idades criadoras, Em que do centro, a referver, do mar, Surgiam cordilheiras abrasadas! (…) E viu-se, nesses tempos primitivos, Quando, a primeira vez, descortinara, Surpreendido e medroso, num regato, Seus feios gestos e peluda cara! E de si mesmo, atónito, fugiu, Por desertos aspérrimos gritando! Ai daquele que, um dia, descobriu A sua triste e humana condição! Mas também os seus olhos, nesse instante, Ávidos se tornaram de outra luz, (…) O seu gosto era olhar, isto é, criar, Converter em humano sentimento A espiritualidade azul do ar (…) (idem, VII,
53). O impulso do olhar converteu-se em gesto criador, a primeira mão silenciosa que, antes da linguagem, se dedicou à conversão da ausência em sensível. A cena primitiva do início da arte, ainda em estado silencioso, não deixa de encontrar semelhanças no pensamento de Vico na Ciência Nova a propósito dessa idade sagrada dos deuses e dos seus hieróglifos misteriosos e mudos, que o filósofo pretendeu ver associados ao nascimento dos mitos (mythos/mutus), tempo esse em que também as nações gentias, pensando sob "fortes impulsos de violentíssimas paixões" (Vico, 2005: 181), aprenderam, "como crianças do nascente género humano", a criar as coisas a partir das suas ideias e da sua corpulentíssima fantasia. Entre o olhar apaixonado dirigido à origo em reconfigurações
intercomunicantes como as do impulso, da inconsciência e da infância e a
atualidade e pertinência destas abordagens em alguns poetas portugueses
como as que, muito incompletamente, procurámos destacar, o gesto do
primitivo continua a dar conta do fascínio pelo mistério universal da
arte do qual a poesia, diria Blanchot, é sempre uma forma de reenvio
para essa ausência de que se reveste qualquer coisa de mais
original.
Referências
BAUDELAIRE,
Charles. O Pintor da Vida Moderna. Trad. Teresa Cruz,
3.ed., Lisboa: Vega,
2004. Vendaval,
2003. Publicações
Dom Quixote, 2001.
Reprodução das Figuras
Fig. 1 - grafitti (Madrid, 2012) Fig. 2 – Mão em negativo, gruta de Lascaux, França.
Fig. 3 - Antoni Tàpies, "Poems from Fig. 4 – mão de criança (trabalho individual) de Catalan" (década 70) dezembro, 2013 Francisco Saraiva Fino. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, pela Universidade do Porto e Mestre em Criações Literárias Contemporâneas pela Universidade de Évora. Presentemente é Doutorando em Literatura Portuguesa nesta instituição. Investigador do Centro de Estudos em Letras (Universidade de Évora) e membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra do poeta Daniel Faria, onde, entre outras funções, foi responsável pela edição de O Livro do Joaquim (2007). Tem participado com comunicações em colóquios nacionais e publicado ensaios e recensões em revistas nacionais e internacionais. É responsável pela edição dos volumes de poesia Fumo, de Rodrigo Solano, em 2010, e Coroa de Rosas, de Duarte Solano. Tem centrado os seus estudos nos domínios da literatura portuguesa e da teorização estética, nomeadamente na poesia moderna e contemporânea e suas relações interartísticas. |