antoni tàpies | lectura |1998
 
 
 
 
 
 
 

Seres humanos no meio da turba, a deambulação pela cidade nos princípios do séc. XXI obriga-nos ao exercício contínuo do olhar. Mapas de símbolos, graffitis ou palavras de ordem buscam diálogos com o flâneur urbano de uma pós-modernidade em esgotamento e não raras vezes um sinal ocasional poderá transportá-lo inconscientemente para essa reserva mítica que uma cultura saturada pela omnipresença retórica da imagem e do símbolo o habituou a reconhecer. O silêncio da mão aberta em negativo na superfície de betão (fig. 1) poderá reenviá-lo quase instintivamente para a profundidade obscura da caverna e para o gesto mágico da impressão digital do homem do paleolítico na parede irregular, como a que podemos observar ainda hoje em Lascaux (fig. 2). Alguns olhares mais sensíveis aos grandes mestres da arte povera talvez pudessem ainda nela reconhecer uma dessas menos frequentes mãos de Antoni Tàpies (fig. 3), manchas em positivo que desde cedo também as crianças aprendem a produzir (fig. 4) e que poderão consistir num dos mais elementares processos de criação de arte em ambiente lúdico. Qualquer que seja o reconhecimento, o flanêur contemporâneo deverá confiar no exercício inconsciente da memória pela regressão do pensamento a uma experiência que silenciosamente se recolhe na profundidade de algo que é em simultâneo insondável e familiar e ao qual se congregam tantas outras experiências quantas a sua vivência humana aprendeu a reconhecer. 

Entre o fazer da mão e o mundo de ideias e arquétipos na parede da caverna que esse fazer pretende imitar baseiam-se, como sabemos, algumas das mais antigas e conhecidas posições sobre o ato criador, entre a poiesis técnica do artista e o inatismo sobrenatural do seu dom irracional e original, aqui no sentido de força próxima da origo da própria criação humana. Reconfiguradas ao longo dos séculos, estas posições têm acompanhado a reflexão sobre a arte e observamo-las ainda recentemente através de Dennis Dutton em The Art Instinct – Beauty, Pleasure and Human Evolution, quando, a propósito da relação entre a universalidade da arte e a universalidade da linguagem, resume: "both exhibit and interplay between, on the one hand, deep, innate structures and mechanisms of intellectual and emotional life and, on the other hand, a vast ocean of historically contingent cultural materials (…) No philosophy of art can succeed if it ignores either art's natural sources or its cultural character" (2009: 31).

Evitando alguns aspetos problemáticos das afirmações, sublinharemos neste enunciado dois pontos que consideramos importantes destacar: por um lado, a contingência que é característica do ato da criação, cuja natureza transcende a exatidão do conhecimento quando remetida para a subjetividade do humano ou quando se depara com o silêncio no ponto mais remoto da sua origem; por outro, essa universalidade da linguagem que é outro dos mais poderosos e misteriosos substratos da arte e, ao mesmo tempo, sua permanente atualização ou reconfiguração. Através dessa vinda do silêncio, a palavra poiética reconfigura-se origem em todo o seu instante performativo e no seu devir é primitiva porque é sempre ação ou força atualizada e impulsiva do protogonos, daquele que, como um deus nascido do Caos, primordialmente se lança à violência.

A este propósito, Maurice Blanchot em A Besta de Lascaux, a Besta Inominável do poema de René Char, entendia o fundamento da comunicação poética no confronto violento entre a abertura e o fechamento da obra no momento da sua imposição como poder (a linguagem na pujança da sua performatividade) e o ilimitado em que ela se recusa (a linguagem do pensamento, o silêncio eterno de que é também testemunho). O diálogo destas duas vertentes agilizar-se-ia em torno do ponto comum que é a sua matriz original, consubstancial em ambas de um modo que o leva a concluir que, no decurso da sua génese, "toda a obra poética (…) é retorno a essa contestação inicial e mesmo que, na medida em que ela é obra, não deixa de ser a intimidade do seu eterno nascimento" (Blanchot, 2003: 38). Nesta conceção, a condição original, primitiva, supõe-se vestigialmente presente na sua substância, sendo possível a sua reatualização textual sob diferentes formas. Entendemos, pois, o conceito de primitivo nesta dimensão vestigial que, no âmbito da literatura, se traduz numa série de reconfigurações textuais ou versões de que decidiremos em síntese selecionar quatro: a origo, a inconsciência, o impulso e a infância.

 Falamos em origo ou origem num sentido próximo da leitura de Walter Benjamin (a de Ursprung), que em A Origem do Drama Trágico Alemão a distinguiu de génese (Entstehung) através da imagem do redemoinho; ao contrário do nascimento implicado na génese, a origem apresenta-se sob a forma de um dinamismo emergente desse processo mas que, conforme define, "só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado, como restauração e reconstituição, e por outro lado como algo de incompleto e de inacabado" (Benjamin, 2004: 32). Sendo, para Benjamin, uma categoria histórica, tende a localizar-se em simultâneo tanto na sua pré- e pós-história por admitir permanente reatualização, atendendo ao mesmo tempo tanto ao passado da essência (a sua génese) como também aos momentos do seu reconhecimento ao longo da História. Neste sentido, a origo poderá ser descrita como um valor em permanente reconhecimento e questionação, reconfigurando-se ao ponto de manter a sua substância mítica (a origem como tempo pré-histórico, incompleto) na recriação dinâmica desses dados. Não deixa de ser pertinente remeter, a este propósito, para a caracterização que Antero de Quental propõe no seu soneto "Evolução", em que o devir evolutivo não impede a constatação da reserva desconhecida e misteriosa que pré-existe o sujeito:

 

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,

Tronco ou ramo na incógnita floresta…

Onda, espumei, quebrando-me na aresta

Do granito, antiquíssimo inimigo…

 

Rugi, fera talvez, buscando abrigo

Na caverna que ensombra urze e giesta;

Ou, monstro primitivo, ergui a testa

No limoso paul, glauco pascigo…

 

Hoje sou homem — e na sombra enorme

Vejo, a meus pés, a escada multiforme,

Que desce, em espirais, na imensidade…

 

Interrogo o infinito e às vezes choro…

Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro

E aspiro unicamente à liberdade. (Quental, 2001: 207-8)

 

Benjamin considerava as épocas transitórias de Decadência especialmente consequentes quanto a esta posição sobre a origo. De facto, no âmbito da literatura portuguesa, autores como Antero de Quental ou Fernando Pessoa acompanharam de perto, em dois polos diferentes, a profunda questionação estética e filosófica que caracterizaria os diversos movimentos finisseculares e que resultaria em novas perspetivas sobre o sujeito criador e suas relações com o texto e a linguagem poética. Ambos reconheceram na crise o avatar essencial da Decadência (em todos os géneros de manifestação em que muito baudrillarnianamente esta surja como valor de uma moral contraditória) ao associá-la à ideia de esgotamento dos paradigmas otimistas do progresso científico e seus contributos civilizacionais, os mesmos que levariam às conhecidas ruturas de Nietzsche e às alternativas vanguardistas dos inícios de novecentos. Sintomaticamente, a crise do tempo monista, unidirecional, favorável ao indivíduo-organismo no vasto corpo social, propiciou a emergência do primitivo no instante da revalorização da potência do sujeito criador dominado por forças ou impulsos vestigiais da sua origo natural, universo contingente reatualizável em qualquer ser humano como pretenderia Freud com o id., a camada mais inferior nos termos da psicologia das profundezas. A ideia de genialidade via-se legitimada desde o pensamento filosófico da Antiguidade e retificada pelos estudos científicos de oitocentos que julgaram atestar-lhe causas fisiológicas naturais, acabando por garantir com a modernidade baudelairiana o sancionamento do seu caráter cosmopolita, nevrótico, impulsivo e tendente às mais diversas figurações, sendo para Baudelaire a do baby uma das mais eficazes, a par do selvagem (cf. Baudelaire, 2004: 20). Génio infantil, análogo à criança que tenderia a observar organicamente o real como novidade, o sujeito criador desejou reconfigurar-se artisticamente no espaço misterioso do recomeço da inocência primitiva, ao mesmo tempo que valorizou o inconsciente como topografia privilegiada do redemoinho do contingente. No célebre soneto "O Inconsciente", Antero reconstituía estas versões de primitivo na imagem do Deus mudo e longínquo, para lá da morte, "espectro mudo, grave, antigo, / Que parece a conversas mal disposto", uma reconfiguração da origo que tornaríamos a encontrar com algumas modificações no não menos célebre "Na Mão de Deus", no qual o sujeito-infante (etimologicamente 'o que é mudo', o que não domina a linguagem) procura metaforicamente acolhimento:

 

(…)

Como as flores mortais, com que se enfeita

A ignorância infantil, despojo vão,

Depus do Ideal e da Paixão

A forma transitória e imperfeita.

 

Como criança, em lôbrega jornada,

Que a mãe leva ao colo agasalhada

E atravessa, sorrindo vagamente,

 

Selvas, mares, areias do deserto…

Dorme o teu sono, coração liberto,

Dorme na mão de Deus eternamente! (Quental, 2001: 313)

 

Leitor de Antero, António Nobre faria da infância nessa epopeia da crise que é o o domínio pleno da condição do génio em permanente atualização ingénua do receio da sua perda, entrevia no sono da morte o retorno à pura inconsciência, tal como coincidentemente manifesta no último soneto da obra onde clama por uma dor insuportável, "(…) é a dor do pensamento! / Ai quem me dera entrar nesse convento / Que há além da Morte e que se chama A Paz!" (Nobre, 1983: 148). Posteriormente, Fernando Pessoa celebraria o génio infantil de Alberto Caeiro pela originalidade da única inocência, a de "não pensar", que nas palavras do heterónimo é também uma forma de aproximação ao momento solar da humanidade em que, como descreveria em "O Guardador de Rebanhos", todos os homens descobriram como irmãos a luz nua do alvorecer da civilização:

 

Bendito seja o mesmo sol de outras terras

Que faz meus irmãos todos os homens

Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu

E nesse puro momento

Todo limpo e sensível

Regressam imperfeitamente

E com um suspiro que mal sentem

Ao Homem verdadeiro e primitivo

Que via o sol nascer e ainda o não adorava.

Porque isso é natural — mais natural

Que adorar o sol e depois Deus

E depois tudo o mais que não há. (Pessoa, 1994: 88)

 

Se é sabido que António Mora considerou Caeiro "um primitivo contemporâneo", tal como os seus restantes comentadores heteronímicos (Ricardo Reis, Campos, Thomas Crosse) fá-lo por nele considerar exemplarmente reunidos o objetivismo e materialismo característicos do projeto neopagão. Uma posição como esta, porém, significará ao mesmo tempo reconhecer a sua imensa complexidade, se atendermos aos diversos momentos em que os poemas de Caeiro se sujeitam contingentemente a exercícios hermenêuticos com resultados variáveis; pensamos aqui, como exemplo, nas aproximações que Ricardo Reis reconhece a um certo panteísmo neo-romântico muito próximo de Teixeira de Pascoaes e do ideário da Renascença Portuguesa ou mesmo a desconfiança proporcionada pela receção dos seus textos, que o próprio Pessoa destaca em artigo incompleto destinado a A Águia (de 1913-14) ao assegurar a Caeiro a máxima originalidade apesar da desconfiança quanto à sua pura objetividade e espontaneidade: "Assim como para materialista o acho espiritualista em extremo, e, como para poeta o acho filósofo em excesso, para espontâneo acho-o consciente de mais" (idem, 217).

 Questões como estas suscitam a necessidade de releitura da complexidade de Caeiro, para a qual concorre a presença de Pascoaes e de suas versões do primitivo. No prefácio à reedição de Marânus, Eduardo Lourenço considerava a sua visão, tal como a de Pessoa, suspensa de uma ausência distinta do nada pessoano e da utopia da objetividade por se apresentar como uma ausência sensível, associada a uma forma de panteísmo resultante da conciliação dos opostos que acompanha a evocação primitiva do ser na sua dimensão cosmogónica e natural. Clamava Marânus, protagonista da obra homónima, o mistério da criação aos montes selvagens:

 

«Ó lodo, imundo e vil, de que sou feito!

Fragilidade humana, como sabes

Criar, em tua dor, o que é perfeito?

Como geras a vida, sendo a morte?» (Pascoaes, 1990: IV, 32)

 

Em alternativa ao homem solar de Caeiro, idealizado no seu paganismo luminoso e clássico, Marânus recorda na sua deambulação pela montanha uma outra versão antropológica do primitivo, o horror do grito do primeiro homem (o "orango") na primeira experiência de confronto com a crueza da sua verdade animal, revelada como anti-Narciso ao descortinar "surpreendido e medroso, num regato / Seus feios gestos e peluda cara!" (idem, 52-53), obrigando-o a desviar o olhar de si para o mundo, da sua objetividade para a recriação do mundo:

 

E julgou, por momentos, regressar

Às primeiras idades criadoras,

Em que do centro, a referver, do mar,

Surgiam cordilheiras abrasadas! (…)

E viu-se, nesses tempos primitivos,

Quando, a primeira vez, descortinara,

Surpreendido e medroso, num regato,

Seus feios gestos e peluda cara!

E de si mesmo, atónito, fugiu,

Por desertos aspérrimos gritando!

Ai daquele que, um dia, descobriu

A sua triste e humana condição!

Mas também os seus olhos, nesse instante,

Ávidos se tornaram de outra luz, (…)

O seu gosto era olhar, isto é, criar,

Converter em humano sentimento

A espiritualidade azul do ar (…) (idem, VII, 53).

 

 

O impulso do olhar converteu-se em gesto criador, a primeira mão silenciosa que, antes da linguagem, se dedicou à conversão da ausência em sensível. A cena primitiva do início da arte, ainda em estado silencioso, não deixa de encontrar semelhanças no pensamento de Vico na Ciência Nova a propósito dessa idade sagrada dos deuses e dos seus hieróglifos misteriosos e mudos, que o filósofo pretendeu ver associados ao nascimento dos mitos (mythos/mutus), tempo esse em que também as nações gentias, pensando sob "fortes impulsos de violentíssimas paixões" (Vico, 2005: 181), aprenderam, "como crianças do nascente género humano", a criar as coisas a partir das suas ideias e da sua corpulentíssima fantasia.

Entre o olhar apaixonado dirigido à origo em reconfigurações intercomunicantes como as do impulso, da inconsciência e da infância e a atualidade e pertinência destas abordagens em alguns poetas portugueses como as que, muito incompletamente, procurámos destacar, o gesto do primitivo continua a dar conta do fascínio pelo mistério universal da arte do qual a poesia, diria Blanchot, é sempre uma forma de reenvio para essa ausência de que se reveste qualquer coisa de mais original.

        

 

 

Referências

 

BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. Trad. Teresa Cruz, 3.ed., Lisboa: Vega, 2004.
BENJAMIN, Walter. A Origem do Drama Trágico Alemão. Trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
BLANCHOT, Maurice. A Besta de Lascaux. Trad. Silvina Rodrigues Lopes, Lisboa:

Vendaval, 2003.
DUTTON, Dennis. The Art Instinct — Beauty, Pleasure and Human Evolution, London: Bloomsbury Press, 2009.
NOBRE, António, . Introd. Agustina Bessa-Luís. Porto: Livraria Civilização Editora, 1983.
PASCOAES, Teixeira de. Marânus. Pref. Eduardo Lourenço, Lisboa: Assírio & Alvim, 1990.
PESSOA, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Ed. Teresa Sobral Cunha. Lisboa: Presença, 1994.
QUENTAL, Antero de. Poesia Completa. Org. Fernando Pinto do Amaral. Lisboa:

Publicações Dom Quixote, 2001.
VICO, Giambatista. Ciência Nova. Trad. Jorge Vaz de Carvalho, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

 

 

 

Reprodução das Figuras

 

 

Fig. 1 - grafitti (Madrid, 2012)                     Fig. 2 – Mão em negativo, gruta de Lascaux, França.

 

 

 

Fig. 3 - Antoni Tàpies, "Poems from             Fig. 4 – mão de criança (trabalho individual)

de Catalan" (década 70)  

 

 

dezembro, 2013

 
 
 

Francisco Saraiva Fino. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, pela Universidade do Porto e Mestre em Criações Literárias Contemporâneas pela Universidade de Évora. Presentemente é Doutorando em Literatura Portuguesa nesta instituição. Investigador do Centro de Estudos em Letras (Universidade de Évora) e membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra do poeta Daniel Faria, onde, entre outras funções, foi responsável pela edição de O Livro do Joaquim (2007). Tem participado com comunicações em colóquios nacionais e publicado ensaios e recensões em revistas nacionais e internacionais. É responsável pela edição dos volumes de poesia Fumo, de Rodrigo Solano, em 2010, e Coroa de Rosas, de Duarte Solano. Tem centrado os seus estudos nos domínios da literatura portuguesa e da teorização estética, nomeadamente na poesia moderna e contemporânea e suas relações interartísticas.