A MASSAGEM TAILANDESA

 

 

Nestes tempos em que a sobrevivência virou uma guerra, nada melhor que uma boa relaxada para recuperar as energias para a luta. Relaxamento e luta lembram-me a massagem tailandesa. Sua técnica foi desenvolvida na Idade Média para devolver os guerreiros ao combate o mais rápido possível, uma arma a mais no arsenal para eliminar inimigos com o máximo de eficiência. Creio mesmo que os soldados aceitavam o risco de morrer em troca da massagenzinha diária na volta ao acampamento, após os horrores da batalha. Embora conhecesse suas virtudes e soubesse que funciona, ela me fez mal. Muito mal. Saí da sessão mais tenso — na verdade, muito mais tenso — do que entrei.

Estava com minha mulher em Chiang Mai, no norte da Tailândia, uma cidade celebrada pelos prazeres e pela beleza, donde seu nome: Pérola do Norte. Famosa por ficar no Triângulo Dourado das drogas no Sudeste Asiático, tornou-se mais conhecida, no entanto, por ser o berço do tal relax infalível para guerreiros. Eu havia lido sobre as casas de massagem de Bangcoc, famosos prostíbulos. Em Chiang Mai, disseram-me, era diferente, o ofício virara uma arte multissecular. O gerente do hotel garantira-me que, partir sem experimentar a especialidade local, equivalia a ir a Nova York sem comer um daqueles cachorros quentes na rua, perto da Broadway ou, com menor poder de sedução, ir a Roma sem ver o papa.

Pegamos o endereço da mais tradicional das casas de massagem, escrito naqueles garranchos ininteligíveis do thai, entreguei-o ao motorista de táxi e partimos, minha mulher e eu, como quem segue para uma excursão. Cometi um erro. Grave, por sinal.

Nossas massagistas foram duas garotas de vinte anos, com a delicadeza de traços e a doçura de gestos típicas das tailandesas, sem falar na beleza dos sorrisos e dos corpos. Tiraram nossa roupa e vestiram-nos quimonos curtos de seda — um palmo abaixo dos quadris —, sobre os quais, devido à maciez do tecido, se manipulam os músculos sem a necessidade de óleo. Elas também usavam saiotes à maneira de Sharon Stone no lance mais ousado de Instinto Selvagem.

Então recebi a tal massagem. Feita com o corpo inteiro da massagista, nossas peles ficaram separadas apenas pela seda, num contínuo roçar de mãos, pernas, seios, pés, cabeça, queixo, tudo temperado pelo hálito doce e a meiguice da profissional. Por mais que tentasse ficar à vontade, não consegui. Minha mulher curtia com naturalidade a esfregação, eu procurava imitá-la, em vão.

Quando a garota se sentou de frente sobre minhas coxas e revolveu minha barriga em movimentos de dança do ventre, nem pensando em morte de filho e desastre de avião meu cérebro se desvencilhou do instinto. Comecei a gaguejar, enquanto a donzela, em busca de meu completo relaxamento, insistia, com graça cada vez maior, na apalpação de meu ventre.

Com os pelos arrepiados, mordi a língua, cravei as unhas na pele, quis convencer-me de que um homem civilizado tinha a obrigação de controlar os impulsos. Qual o quê, o esforço deu em nada. Como me haviam jurado que as moças eram terapeutas sérias, elevei os tailandeses à condição de homens mais civilizados do planeta.

Ao término da tortura, após uma chave de rins enquanto se inclinava para revolver meus pés com a nuca, a massagista contemplou minha penúria e apontou-me para a colega. Soltaram uma gargalhada.

Minha mulher adorou a massagem. Quanto a mim, bem, como direi, entendi por que guerreavam tanto na Tailândia.

 

 

 

©marta maia

 

 

 

PSICANÁLISE DE UM TICO-TICO

 

 

Para começo de conversa, ele tem mania de primeiras: chega com a primeira luz e parte com a primeira estrela. Isso não é nada bom, lembra megalomania. Passa o dia na garagem, empoleirado no retrovisor de meu carro ou em infindáveis voos contra o espelho. Ele, o tico-tico, pássaro perverso. Escolheu-me para lançar sujeira, uma gosma esbranquiçada que escorre pela porta do automóvel. Em vez de comer fubá, como os demais de sua espécie, prefere o jejum. Entregue ao culto da própria imagem, uma obsessão exaustivamente descrita nos manuais, jamais se ausenta para se alimentar ou fazer as necessidades. Daí a magreza comparável à dos famintos crônicos, o que, por si só, configura um quadro de anormalidade. Sofre, quando nada, de anorexia.

Talvez seja bulimia, se considerar parte da imundície originária da garganta. A favor da hipótese, há as marcas na pintura, semelhantes às produzidas por ácidos estomacais, que água e sabão não conseguem remover. Se a titica (aposto que, etimologicamente, a palavra tem algo a ver com o pássaro) sai pelo terminal inferior, ainda assim ele carece de ajuda profissional. Ninguém, sequer uma ave, pode padecer de tamanho descontrole do esfíncter. Aliás, problema muito mais sério, o acúmulo de fezes num único ponto demonstra indiretamente o apego a elas. A atitude, em outras palavras, significa a dificuldade do animal de se separar do cocô. O caso é gravíssimo!

Como se tais doenças não bastassem, existe a possibilidade de narcisismo em último grau. Para mim, os incontáveis voos contra o espelho representam tentativas de beijar o próprio reflexo. A repetição advém da frustração de alcançar o objetivo, o que reforça a conduta. A tese faz sentido. Daí, talvez, a anorexia, consequência de uma neurose anterior, mais básica. O excesso de amor-próprio causa a tragédia.

Pode, também, estar acontecendo o contrário. O animal, quem sabe, apresenta comportamento suicida, donde as contínuas agressões. Noto mesmo o crescimento da força das investidas, sinalizando a piora do paciente. Receio a trombada final.

Acho que, agora, fantasiei muito. Voei longe. Preciso despassarinhar-me com a ajuda da psicanálise, que me sugere um caminho mais plausível. Como se pode observar, todos os tico-ticos são iguais. Eu não distingo um pai de seu filho. Eis a explicação: tenho em casa um edipiano mal resolvido. A ave, antes de se agredir, tenta, na verdade, destruir o pai. Enxerga no reflexo a figura paterna e, na ausência de superego repressor em função do baixo número de neurônios no cérebro, a pulsão se manifesta em toda a pujança. Aliás, ocorre-me que o paciente está sempre sozinho. Vai ver, já matou o pai. De quebra, comeu a mãe. Literalmente, sem interpretações esdrúxulas. Possui, no inconsciente, um feroz instinto assassino que deságua em crimes hediondos.

Como atenuante, vislumbro uma psicose maníaco-depressiva, bem definida pela fase hiperativa, quando os ataques contra o espelho acontecem até a exaustão, seguida da fase de desânimo, marcada pela língua de fora e uma prostração de dar pena, antes da retomada do ciclo.

Após tanta doença, em nome do diagnóstico mais preponderante, procurei falar com o paciente: nada como o contato direto. Respondeu-me com um jato fecal que escorreu até o piso da garagem. O caso se definiu, pior do que imaginava. Revelei-lhe, com a calma que a ocasião prescrevia, a voz desprovida de toda e qualquer emoção, o grande segredo: se quisesse, ele poderia mudar. Sim, bastava querer para mudar a vida!

Voltou-se para mim com um olhar terrível, típico dos assassinos. Eu, hein? Peguei minha cartucheira, calibre doze. Se ele me ameaçar de novo, prego fogo na hora, com os dois canos, igual fiz com o jacaré que vivia debaixo da minha cama. Os tiros foram tão certeiros que nunca se achou um pedacinho do bicho para contar a história.

 

 

 

 

EJACULAÇÂO ANUNCIADA

 

 

Depois dos quarenta e cinco, a conselho médico, todos os anos ele controlava o PSA, um indicador de câncer na próstata. Não queria ser pego de surpresa. Por isso, num sábado de manhã, antes das oito, em jejum, lá estava ele no laboratório para colher o sangue para o exame. No salão apinhado, retirou uma senha, aguardou a convocação e dirigiu-se a um dos vinte guichês. A atendente leu o pedido do médico, digitou os dados no computador e estendeu-lhe um formulário cheio de perguntas, uma das quais era: havia ele ejaculado nas últimas quarenta e oito horas? Estranhou a curiosidade alheia, mas os médicos deviam ter seus motivos. Em nome da verdade, respondeu sim.

A atendente pegou o impresso, ficou exaltada:

— O senhor não pode fazer o PSA!

— Por quê?

— O senhor teve ejaculação nas últimas quarenta e oito horas.

Ele quase pediu à mulher para falar mais baixo, porém o assunto ali devia ser rotina, manteve a fleuma:

— Sabe, é que vou viajar amanhã, o PSA é mero controle anual, não existe evidência de alteração, não me avisaram dessa exigência, por favor libere, é possível?

A funcionária gritou para o supervisor, na outra ponta dos guichês:

— Zé Roberto, este senhor aqui teve ejaculação nas últimas quarenta e oito horas, quer fazer PSA. Pode liberar?

— A ejaculação foi há menos de vinte e quatro horas, Maria?

O quarentão, em visível desconforto, respondeu antes que o questionamento se delongasse:

— Foi há menos de vinte e quatro horas.

Maria levantou a voz outra vez:

— Foi há menos de vinte e quatro horas, Zé Roberto.

— Então encaminha ele lá pra dentro que a chefia decide.

Ao andar pelo salão rumo à colheita, o paciente notou o sorrisinho amarelo no rosto dos clientes que aguardavam a hora de chegar aos guichês. Uma velhinha ria abertamente, quer dizer, escondia a risada comprimindo as mãos sobre a boca. Ele se empertigou, convencido de que o deboche era inveja alheia.

Quando esticou o braço para submeter a veia à agulha, o técnico reteve-o:

— Desculpe, mas o senhor não pode fazer PSA. Teve ejaculação nas últimas vinte e quatro horas.

— Por favor, quebre o meu galho, é só rotina, vou viajar, ninguém me avisou.

— Vou consultar a médica — e, na mesma respiração, chamou a doutora que chegou em segundos e leu o pedido de exame.

— Senhor, a ejaculação foi há menos de oito horas?

Ele concluiu que a curiosidade estava ficando grande demais, lembrou-se dos momentos prazerosos com a esposa bem na hora de sair de casa, queria ficar logo livre do interrogatório, resolveu mentir:

— Por aí, umas oito horas.

— Então vou liberar, mas não é a norma.

Depois de retirado o sangue, pegou depressa a guia para o resultado, colocou-a no bolso e correu para tomar o cafezinho do laboratório. Uma senhora, muito à vontade, bateu em seu ombro:

— Você pagou o mico hoje, hein?

Não, ainda não havia pago completamente. Como de fato ia viajar, pediu à filha para pegar o resultado. Ela, ao ler a guia, começou a rir. Bem no meio do papel, estava escrito em letras enormes: TEVE EJACULAÇÃO NAS ÚLTIMAS VINTE E QUATRO HORAS.

 

 

 

 

 

 

Luís Giffoni. Tem 23 livros publicados que receberam várias premiações, como o Jabuti, APCA, Prêmio Nacional de Romance (e de Contos) Cidade de Belo Horizonte, Prêmio Minas de Cultura. Vive em Belo Horizonte.