uma pupa de um shilling

 

 

joyce não persabe

você não percebe que é o crepósculo

joyce cheio de anéis nunca fora de boda

você estua de bode

deije-me ele diz como uma sofetada

você parada feito esfátua não entende nátua

joyce diz que você tem dor coto de velo

você tenta cedular as gracinhas que faz com a cinto-liga

ele nem liga

uma pupa de um shilling

joyce adoraria todar um sofetada

você começa a sofejar piadas, cantrariar

ele nunca ri mas escreveu finegans wake

você não escreveu natua

comehere você diz quase simboca

que não fala esse dialeito dileito

você ilusiona

teita-se day escuro noitedando

delusiosamente eu te amorro amoríssimo

ele nãoquerendo nihil você brecha

sorry que rida com seutaque irlandez

celavida

 

 

 

 

 

 

entre um comprimido e outro

 

        

uma marionete lassa

um fígado cinzento de Prometeu

         deixa-me mais pálida

livor da alma

símiles

eu e tu

morte querida

tatuadas de vida, putas, raparigas

que rasgam calçadas

sem corpo

esquálidas

de mãos dadas

amantes

enganamos as pitonisas

os médicos com seus diagnósticos

as reclusões preventivas

        

e flutuamos, nós duas

 

tingidas do tempo

que existe

porque existe um corpo

 

esse receptáculo funesto

 

que de liberdade não tem nada

zombas dos rostos sóbrios

dos loucos és íntima

amas-me, sei

quando gargalho um choro alto

que fede à lamentação

a tua adorada desesperança

um talho sem anestesia

e me assistes deslumbrada

 

 

 

 

 

 

dor

 

a brancura do rosto

sobre o lago de  Kawabata

 

quimonos vermelhos

 

escaravelhos

aqui não há

que são eternos

e aqui o amor

acaba de morrer

dissecado pelo bisturi

dos olhos de Kawabata

a brancura do rosto

enfeita o sono de Kawabata

o pescoço branco da

bailarina ambulante

braços amputados

fisgam marionetes brancas

no lago de Kawabata

o carmim protegendo os olhos da trupe

olhar o mar pra não encarar o adeus

a impossibilidade se aproximando

carrega a maquiagem usada da esperança

olhar fixo no que não vai acontecer

a vida é tortuosa, a estrada  tem passos frouxos

sou uma esperança inacabada de Kawabata

 

morrer antes da morte e olhar com certa distância

apalpar a morte branca de Kawabata

caminhar atrás do fantasma de uma mulher

matar o amor que está ali no esquartejado

o branco que nunca tocamos

o vermelho que conseguimos alcançar

sangrar com certo alívio o desejo inexequível

regar o corpo das belas adormecidas

com o sêmen embebido de todos os tormentos

 

impermeabilizar o corpo de branco

 

para o sono do amor que nunca está pronto

no lago impossível de Kawabata

 

 

 

 

 

 

a primeira duplicação celular é culpada

 

 

possa eu fingir que a vida passa

os pássaros insistem

o sol insiste

a sobrevivência brilha

como uma anciã

não há bengalas

 

o mundo manca sobre uma perna

 

os lírios eretos contra o sol

brancos como cálices

os andaimes como ninhos

as estruturas de cimento armado

cinzas como ar

o cinza a rodar

acorrentado aos céus

as fuligens

vertigens do faróis

em verde

voar como uma indagação

 

os arranha-céus amarram a tarde

como estacas

as nuvens como  voyeurs

imóveis, seguram um rio

o mar aguarda

a vida passa a fingir

a duplicação celular insiste

a sobrevivência brilha

sobre uma perna

os andaimes a rodar

 

o mundo acorrentado a um lírio

pensa que é uma célula

 

as fuligens verdes

como uma indagação

os pássaros brancos como cálices

enfeitando andaimes

bengalas insistem

em segurar o mundo

como cimento armado

vertigem das fuligens

 

 

 

 

 

 

a vida aguarda

 

 

enquanto Natalie voa num TigerLily, o dia nasce

 

e  no trajeto da minha Via Ápia para o trabalho

passo pela via  e  o dia

atravessando as árvores, renasce

a velocidade do meu carro se perde no detalhe

e nas miudezas da natureza tão exposta

os brotos nupérrimos e estonteantes das velhas senhoras-

arbóreas

deliciosamente abandonados ao vento

sem nenhum ambicioso intento

com a inércia preguiçosa dos amantes

folhas descaradamente novas como noivas

suspensas ao longo da via, da minha via de bacante

elegantes na sua juventude momentânea

dependurando o dia nos atos da via

cingem de verde os clarões mais desenfreados do novo

o presente é o grande ovo que explode

a manhã desmiolada subvertendo o velho

o ontem atrofiado em medos da aporrinhação dos carros

o hoje goza do segredo que governa o dia

os brotos nupérrimos e estonteantes das árvores

folhas descaradamente novas como noivas

os pássaros transtornados com tal iguaria

se banham nas águas que a chuva acumulou

nos segredos das árvores que balançam o hoje nas copas

a despeito do efeito encardido do monóxido

do carbono expelido pelos atacantes de metal

um exército lento e obstinado com elmos coloridos

de vez em quando uma mão mecânica joga um cigarro

no caminho da  via, o tráfego tóxico

primitivos transeuntes que sem chão não andam

e desandam rolando pés de borracha, na faixa

o cortejo poderia ser o de Dionísio

enquanto Natalie voa num TigerLily de volta pra casa

os pássaros dormem ninados pelos sons-motores

até que o dia nunca termine

a noite espera em uma  love-cabine

o meu nome agora é Oquínoe ouvindo TigerLily

do meu quarto até a Ática

o Corifeu me leva numa black limusine

o verde agora é noite

a luz é artificial

o dia foi banal, a noite promete infernal

a vida é artificial, o êxtase é artificial

verdadeiros, só os excitados pássaros

ou os verdes brotos tenros

sem nenhum ambicioso intento

como o vento

 

 

 

 

 

 

o efeito narcótico da mesmice

 

 

cada manhã fecha-se o círculo dos anseios

 

e na minha fragilidade, encolho-me

finjo não escutar todas as perguntas de um dia novo

o presente argúi-me com voz de ditador

 

as minhas respostas rastejam pelas sinapses

 

como móveis sem qualquer utilidade para um cômodo

escadas de questionários para a decolagem

que o ar está faminto de mim como um souteneur

 

e o meu Adão rejeitou-me, antes que eu tivesse corpo

que mulher vive sempre a ausência do amante?

ou sequer se lembra do que ele é?

repeliram-na, não foi?

também tem a mesma fome?

 

comprou a prazo a sua estada e não tem como pagar?

quanto custa o não acontecido?

nesses dias repetidos.

um filho cara do outro nessa eternidade?

 

repouso o meu corpo empalhado.

 

arrasto-me, um andrajoso arcanjo expulso

sinto vertigem ao decifrar a esfinge

que finge ser a resposta

nesse pantanoso mundo feminino tenho de Licaste os espinhos

estou fora da via sagrada da existência

 

troquei o manto luxuoso por caminhos

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo o conhecia

 

 

ele tinha a beleza discutível de um modelo vivo de Caravaggio

com demônios vivos nos olhos

as coxas firme de um cervo

as nádegas redondas de um cupido

a natureza o queria

o mar o queria

o ar o queria

o fogo o queria

o homem o queria

 

ele era um pedaço da eternidade

frágil como qualquer verdade

que quer existir

os pintores o queriam

olhá-lo era ver a decoração de Deus

e o apetite devorador de Saturno

para os invejosos, uma flor inútil a ser arrancada

para os que nunca o teriam, uma anomalia

como uma divindade ele sabia

que a doença do amor pode matar

que até uma flor pode roubar

por isso existem espinhos

que uma estrela é uma divagação da noite

em pleno caminho

e a lua dama do açoite

ele tinha asas vermelhas

e pousou no meu jardim

ria desordenadamente e batia as asas

nas mãos um alaúde e a música dos anjos

depois calou-se e contou-me

a deusa da boa ventura viu a sua sorte

nas mãos do narciso uma morte

quase sem explicação

logo depois foi mordido por um lagarto

e mostrou ao mundo sua delicada afetação

 

quase desmaiou ao ver a cabeça de Golias

 

já que Davi não era

e viu nos olhos tristes de Salomé

que ela amava João Batista

comparou a existência ao martírio de São Lourenço

em meio à vida, como manter o senso?

somente os olhos da Medusa o denunciaram:

uma exuberante  estátua de pedra de um Baco hermafrodita

 

 

 

 

 

 

mar tírio

 

 

rubim anel

martírio casado

juras banidas sem cor

o brilho da pedra

Fedra

rufo suspiro

ele é um vampiro gordo nas minhas ancas

eu sou a noiva

uma dobradura de papel

pálida e servil

um demônio fazendo reverências

escondendo o punhal

num vaso de alabastro

chamativo

vestido assanhado em carmim

pernas dando gargalhadas

um trampolim para o Vesúvio

atimia obsessiva após o sexo

você casou, realmente, com essa mulher?

era ela?

a  aquiescência encarnada?

a noiva

a noite de núpcias

lençol — tírio no branco, enfim

embalada  para presente com lacre

uma dobradura de papel

você a possui?

 

nem ela

acha que tem  um corpo

que prazer é este?

uma marionete ensanguentada

uma bailarina alucinada

 

a corda quebrada da caixa de música

o noivo  sempre satisfeito

com um punhal cravado nas costas

suspenso no vermelho

girando como música

 

 

 

 

 

 

solas vermelhas

 

... um gato afundando as unhas postiças black velvet

Joe uma vez me deu uma lingerie dourada

não sou nenhum colar que se exibe numa caixa

apenas a parte de cima das minhas costas

tocam o encosto azul

ele e seu próprio corpo

morde o lábio inferior

eu poderia não ter vindo

não prometo nada ao amor

fixamente nos olhos vestindo nada

num malabarismo imprevisível

levo o maior dedo do pé esquerdo

um gato fazendo sua limpeza exibicionista

o dedo do pé esquerdo na língua com gosto de licor

o carpete gasto como se não houvesse paredes

ele aperta os lábios

não posso mais

o sapato azul esquerdo descansando inconsciente no tapete escondido pela

sola vermelha

a minha coleção de sapatos para pisar os homens

posso vesti-la?

as mãos em despedida girando uma nada amigável cinta de renda preta

o seu corpo é levado do quarto por um redemoinho

alongo o pescoço

deslizo

o queixo como uma serpente no tampo do

movelzinho lateral

os lábios esticados

para pegar

o que restou do biscoito salgado

espalhado

ao lado do copo

de uísque...

 

 

 

 

 

 

BB

 

 

o mármore prende as estátuas

o amor move a boca

as saias sacodem os olhos

 

as curvas perseguem Bardot

 

atormentadas pelos cintos

cinturas movem-se de preto

o mambo escorre sob os saltos

 

o mármore prende as lendas

 

o amor move o mito

as saias sacodem o decote

as bocas fogem das Sibilas

as curvas perseguem o trajeto

 

cinturas movem-se como bocas

 

o mambo escorre entre os seios

o mármore prende as saias

as estátuas sacodem os olhos

os céus fogem de preto

 

cinturas movem Bardot

 

os cintos perseguem as curvas

atormentados por um body preto

as Sibilas movem o ar

 

as lendas viram souvenir

 

o mito move a boca

oui

 

 

 

 

 

 

honey

 

 

você tem que delinear

esses seus fodidos olhos tristes

à la calas

com a desvantagem

de não poder gritar

de dor

numa ópera ou num show

a não ser que você

alucine a cantar

a tristeza da billie Holiday

com a mesma voz

ice-sedutora

da cantora lamentosa-veludo-paradise

tente sonhar

que está num cabaré

deite num piano branco

de acrílico da Schimmel

com seu pouco corpo

e aquele seu amor rouco

judiando das cordas vocais

ou então

simule

o sumertime estonteante

felino-janis-joplin

nem pense em chorar

você tem que delinear

esses seus fodidos planos loucos

que transbordam e afundam

nesse seu cérebro turbinado

you know?

nenhuma lágrima

engula a angústia

como quem engole a vida sem vomitar

o que será do seu rosto se essa sua maquiagem for embora?

retoque o batom como um fantoche curvilíneo

se nada funcionar, pare de respirar

finja que é outra alma qualquer

menos você

não fez teatro?

tente abrir mais os olhos

vale qualquer coisa, honey

esconda os queloides obsessivos dos pulsos

também, não é preciso

arreganhar os dentes

lembre-se da beleza que é a sua boca

fechada

 

 

 

 

 

 

bright paiting

 

 

planando

sobre os sapatos gastos

asas explodindo de novas

cracking — phantom

elevador parado no térreo

 

que dia é hoje?

 

14 mostra o painel incrustrado

o número que não é data

o dia não importa

escolher a cor na paleta

do pintor

bright-paiting no elevador

o número do andar que habito

17 temporário

não há nicho eterno para um pássaro

que dia é hoje?

convocação para os moradores

dia 19

deveria haver um calendário

em todos os lugares

entre um vão e outro

nos elevadores

calendários de caixas voadoras

planando

acima do corpo

a porta range e escancara no 17

ou é dia 17

painel luminoso parado

todos os números apagados

o pintor exausto de olhos fechados

pisca um olho

chega de dúvidas

e engodos

é o fim ou o começo?

eu, mesmo sem corpo

tropeço nos números desesperados das agendas fugidias

planando

sobre o corpo

agora em camisola viciada

as asas explodindo de novas

sem qualquer utilidade

para os sonhos REM 

 

 

 

[imagens ©robert & shana parkeharrison]

 

 

 

 

 

 

 

Malu F Alves (Santo Antônio de Posse/SP, 1952). Poeta, publicou Velho é o Espelho (Ateliê Editorial, 2007). Vive em São Paulo desde 1970.