*

 

 

Escolheram ser outras pessoas. E, quando dizem mar,

têm olhos subitamente azuis e fazem gestos

que lembram o balanço das ondas junto ao porto.

 

Gritam todas as noites o que não ousariam murmurar

pela manhã na intimidade do quarto — porque na sua boca

remexem duas línguas e uma delas só a reconhecem

do espelho onde já viram desfilar todos os rostos.

 

Deixam-se coroar por um halo de luz branca

que os persegue e já os atraiçoou de outras vezes.

E comportam-se como pequenos deuses efémeros, sujeitos

às conspirações de uns poucos homens que podem,

com a mesma mão, oferecer-lhes a taça e o veneno —

dobram-se para merecer o seu aplauso ou a sua compaixão.

 

Depois o pano cai. Vão para casa. E são outras pessoas.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Sentaram-se na areia e descalçaram os sapatos.

Puseram-se a contar pelos dedos os barcos

que faltariam para chegar o verão.

 

Nenhum deles falava. Tinham passado juntos

algumas noites, num quarto sem vista. E, embora

julgassem o contrário, não conheciam um do outro

muito mais do que isso.

 

Estavam ali sentados para ver se acontecia alguma coisa.

 

No verão

alguém viria forçosamente buscá-los.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Antes de um lugar há o seu nome. E ainda

a viagem até ele, que é um outro lugar

mais descontínuo e inominável.

 

Lembro-me

 

do quadriculado verde das colinas,

do sol entretido pelos telhados ao longe,

dos rebanhos empurrados nos carreiros,

de um cão pequeno que se atreveu à estrada.

 

Íamos ou vínhamos?

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto

e a luz é fraca  e treme  e eu tenho medo

das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas

da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

 

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava

no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha

a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi

de quatro folhas; e das ervas mais húmidas e chãs

com que em casa se cozinhavam perfumes que ainda hoje

te mordem os gestos e as palavras.

 

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai

demorar-se a regressar. Há tempo para uma história

que eu não sabia e eu juro que, se não adormeceres,

serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,

como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono

se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Não partas já. Fica até onde a noite se dobra

para o lado da cama e o silêncio recorta

as margens do tempo. É aí que os livros

começam devagar e as cores nos cegam

e as mãos fazem de norte na viagem. Parte apenas

 

quando a manhã se ferir nos espelhos do quarto

em estilhaços de luz; e um feixe de poeiras

rasgar as janelas como uma ave desabrida.

Alguém murmurará então o teu nome, vagamente,

como a gastar os dedos na derradeira página.

 

E então, sim, parte, para que outra história se

invente mais tarde, quando os pássaros gritarem

à primeira lua e os gatos se deitarem sobre

o muro, de olhos acesos, fingindo que perguntam.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Os gatos resguardaram-se da chuva.

Alguém diz o teu nome à janela,

olhando as aves que partem para o sul.

 

Há uma memória embaciada de outro outono,

cinzas no pátio,

o cheiro de alguma coisa que morre, mas não dói.

 

 

 

[Poemas do livro A casa e o cheiro dos livros. Lisboa: Gótica, 2002 (1ª ed. 1996)]

 

 

 

 

*

 

Não digas ao que vens. Deixa-me

adivinhar pelo pó nos teus cabelos

que vento de mandou. É longe a

tua casa? Dou-te a minha: leio nos

 

teus olhos o cansaço do dia que te

venceu; e, no meu rosto, as sombras

contam-me o resto da viagem. Anda,

 

vem repousar os martírios da estrada

nas curvas do meu corpo — é um

destino sem dor e sem memória. Tens

 

sede? Sobra da tarde apenas uma

fatia de laranja — morde-a na minha

boca sem pedires. Não, não me digas

quem és nem ao que vens. Decido eu.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Agora há uma dor que pousa nas palavras.

Não as digas — um nome basta para

dividir o coração. Se me esqueceste entre

 

um livro e outro, finge que não sei; despede-te

de mim como uma lâmpada antiga, deixa que

a tua sombra seja a minha única paisagem.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Que guardarão de mim as casas que

deixei? O pó sobre o meu nome?

 

 

 

 

 

 

*

 

 

A lágrima que pousa no papel: a tua

mão tão longe. Este é um caderno de

linhas que também não se encontraram

 

e a minha mão escreve o teu nome às

cegas numa delas. Vê — a lágrima é

uma lente que multiplica a dor, toda a

saudade do mundo cabe nessa palavra.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

No tear imaginado dos teus dedos

gastei as mãos. Chamei-te, a ferir os

lábios com o teu nome, contra as

paredes do quarto desterrado. Quis-te

 

ainda quando a morte era já uma

transparência, lente invisível para o

escândalo. Mas então era tarde de

 

mais: devia ter-te seguido aonde ias,

sem perguntas, na primeira manhã.

 

 

 

[Poemas do livro Nenhum nome depois. Lisboa: Gótica, 2005 (1ª ed. 2004)]

  

 

 

©anne brigman 

 

 

*

 

 

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos

e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo

doeu-me onde antes os teus dedos foram aves

de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

 

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha

camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração

que era o resto da vida — como um peixe respira

na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

 

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti

é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara

um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo

um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

 

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos;

mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota

as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Se partires, não me abraces — a falésia que se encosta

uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre

e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

 

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão

das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;

mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,

porque o ar que respiras junto de mim é como um vento

a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces —

 

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno

nos dias sem ninguém — longe de ti, o corpo não faz

senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta

as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto

espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.

 

Se me abraçares, não partas.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada

daquilo que disseste quando os meus seios começaram

a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,

murcharam tão depressa as rosas que me deram —

se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu

deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

 

Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão

cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,

só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais

que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos

os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia,

deitei-me com mais homens do que aqueles que amei

e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

 

Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre

caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.

Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez

não chames pelo meu nome, não que peças que fique —

as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me

embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue

de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como

uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

 

Mãe, eu vou-me embora — esperei a vida inteira por quem

nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta

hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.

Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas

essa voz, tu sabes, não é a tua — a última canção sobre

o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias

foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão

tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam

virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

 

 

 

 

 

 

*

 

O sono retirou-se do meu corpo e as cigarras

atormentaram as minhas noites. Depois de teres

partido, os lençóis da cama são como limos frios

que se agarram à pele. Porém, se me levanto,

não faço mais do que arrastar a solidão pela casa;

 

talvez procure ainda um gesto teu nos braços

do silêncio, como um pombo cego a debicar

as sombras na única praça deserta da cidade —

 

o amor nunca aprendeu a ler nas linhas da mão.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Que é das palavras? Como chamar

por quem as esconde se, sem elas,

nem o silêncio tem nome?

 

 

 

[Poemas do livro O canto do vento nos ciprestes. Lisboa: Gótica, 2007 (1ª ed. 2001)]

 

 

 

 

Arte Poética

 

 

Num romance, uma chávena é apenas

uma chávena — que pode derramar

café sobre um poema, se o poeta,

bem entendido, for a personagem.

 

Num poema, mesmo manchado

de café, a chávena é certamente a

concha de uma mão — por onde eu

bebo o mundo em maravilha, se tu,

bem entendido, fores o poeta.

 

No nosso romance, não sou sempre

eu quem leva as chávenas para a mesa

a que nos sentamos à noite, de mãos

dadas, a dizer que a lata do café chegou

ao fim, mas a pensar que a vida é

que já vai bastante adiantada para os

livros todos que ainda pensamos ler.

 

No meu poema, não precisamos de café

para nos mantermos acordados: a minha

boca está sempre na concha da tua mão,

todos os dias há páginas nos teus olhos,

escreve-se a vida sem nunca envelhecermos.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Levanta-te e amaldiçoa o tempo —

amanhã tão depressa e quase nada

para ficarmos juntos até à escuridão.

Tantas manhãs terrivelmente lentas

antes de ti, tantas tardes de retratos

 

exaustos sobre as mesas, noites que

nunca abriam fendas para o sonho; e de

repente os dias a fugirem como água

de dentro de uma mão, amanhã tão

 

depressa. Não te conformes: amaldiçoa

o tempo. Se for preciso, grita com Deus —

 

a mim ouviu-me enquanto te esperava.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Ainda bem

que não morri de todas as vezes que

quis morrer — que não saltei da ponte,

nem enchi os pulsos de sangue, nem

me deitei à linha, lá longe. Ainda bem

 

que não atei a corda à viga do tecto, nem

comprei na farmácia, com receita fingida,

uma dose de sono eterno. Ainda bem

 

que tive medo: das facas, das alturas, mas

sobretudo de não morrer completamente

e ficar para aí — ainda mais perdida do que

antes — a olhar sem ver. Ainda bem

 

que o tecto foi sempre demasiado alto e

eu ridiculamente pequena para a morte.

 

Se tivesse morrido de uma dessas vezes,

não ouviria agora a tua voz a chamar-me,

enquanto escrevo este poema, que pode

não parecer — mas é — um poema de amor.

 

 

[Poemas do livro Poesia reunida. Lisboa: Quetzal, 2012]

 

 

 

 

 

 

Maria do Rosário Pedreira nasceu em Lisboa. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, é editora, dedicando-se hoje à descoberta e divulgação de novos autores portugueses. Como poeta, estreou, em 1996, com A casa e o cheiro dos livros (traduzido em italiano e catalão), a que se seguiram O canto do vento nos ciprestes (também editado no Brasil) e Nenhum nome depois. A sua poesia está representada em numerosas antologias e revistas portuguesas e estrangeiras. Além de poesia, escreveu o romance Alguns homens, duas mulheres e eu (1993) e duas séries de livros juvenis que foram adaptadas à televisão. Recebeu vários prêmios literários e participa regularmente em encontros de escritores nacionais e internacionais. Escreve o blogue Horas Extraordinárias [horasextraordinarias.blogs.sapo.pt], no qual partilha diariamente a sua paixão pelos livros.