*

 

Nos encontramos à beira do lago
e caminhamos, juntos,
por uma vereda triste
de bambus arqueados,
sob o peso do tempo.

Vestias sobre os ombros
o manto da noite
— nua —

trazias no peito
um canto de rouxinol
arisco...

Éramos eu e você
e um amor imenso:
explosão de romã madura
com aroma de beijos.

Agora, tens nas mãos a flor roxa
e rara do amaranthus.
E um terço banhado a ouro,
enrolado entre os dedos.

 

 

 

 

 

 

*

 

De nós, restaram, dobradas

todas as hastes do amor.

 

A febre alta.

Os verões incandescentes.

As chuvas densas.

 

Agora, tudo é silêncio

e vaso quebrado.

 

 

 

 

 

 

*

 

Pela tua garganta
velejam os pássaros vermelhos da Espanha.
Teus desfiladeiros e labirintos
induzem os homens à perdição.

 

Vestes a capa de estrelas da noite,
— teus ombros nus
— teus seios nus
— teus sonhos nus.

 

Espetas os olhos dos pássaros
com tua espada encantada.

 

As aves cegas desnorteiam-se ao teu redor.
Viajas na escuridão das vielas podres
como quem desliza sobre a neve azul.

 

Quisera poder ofertar-te o coração exangue
do toureiro.
Quisera.

 

 

 

*

Entre contínuas chuvas,

lábios e paredes frios,

ficamos intocados,

décadas a fio.

 

Podia ter renascido em tua rede de braços,

neles deitar-me nua,

às tardes lânguidas,

cheirando a capim rosa.

Deixar-me ficar à espreita

e a espera

de tuas tempestades de beijos cálidos,

e de tua língua túrgida.

 

Terías plantado em mim, as sementes

de tua geração.

Teríamos contemplado, juntos, a face de Deus,

de olhos fechados, pequenino,

dormindo entre os homens.

 

Dissestes não, com os dedos em cruz, sobre a boca amada.

 

Agora, espio os raios do luar roçando o lago,

ouço os pingos do silêncio gotejando sob as calhas

da casa que, juntos, não construímos.

 

Lembro dos teus lábios colados aos meus.

Molhados.

 

 

 

 

 

 

*

 

Abro minhas narinas
e aspiro o frescor da manhã:
o sol com as mãos em conchas
distribuindo raios,
estalando os galhos
exalando o perfume das flores
dos limoeiros.

Um enxame de abelhas
sobrevoa o céu
em busca de norte
para a construção da casa.
O néctar agridoce das flores
trai o gozo dos insetos.

No meio de tuas pernas
eu me desnorteio.

 

 

 

 

 

 

*

 

A água pura do lago

quebra em pedaços

a tua inocência.

 

Despe-te para mim

tuas vestes cor-da-mata.

 

 

 

 

 

 

*

 

Procuro em vão
as pedras dos teus joelhos.
Calcinadas, em desespero,
as minhas mãos.

 

 

 

 

 

 

*

 

Sobre o teu corpo

despejo o cálice do meu amor

tinto de vinho e sangue.

Aspiro os beijos dos teus poros,

um a um,

recolho-os com a boca túrgida.

Encho com eles minha ânfora,

para que no outono dos meus dias,

eu possa me banhar

com o frescor

dos teus lábios.

 

 

 

 

 

 

*

 

Não há outro caminho.

Nada.

Nem as hastes do trigo

se dobrarão a tua passagem.

Pássaros entrelaçados

cercaram a casa que habitastes

no último verão.

Não há outro caminho,

senão a pressa da vida

que te revira o estômago.

Recolhe-te à varanda.

Dedilhas uma canção de amor

a tua Ariadne.

 

 

 

 

 

 

*

 

Recortamos a casa dos nossos sonhos

e a plantamos na terra.

No alto de uma colina

entre um labirinto de mirtilos,

abraçada por uma cerca de pássaros,

entrelaçados.

Os olhos da casa são azuis

e miram-se no espelho do lago.

De suas janelas abertas de par em par

contemplamos as estrelas do passado

que ainda teimam em nos acenar

seus adeuses.

Nossa casa flutua

no mar imaginário do teu peito.

Ancora nos flancos entre as minhas pernas.

Emerge nos flocos de nuvens do meio dia.

Em nossa casa, deitaremos juntos,

lado-a-lado

até que a morte,

irmã-siamesa de nossas vidas

nos cerre os olhos,

para sempre.

Morreremos ouvindo o canto dos pássaros

de peito amarelo,

fazendo festa nos chafarizes do quintal.

 

 

 

 

 

 

*

 

Eu coleciono flores

dos jardins dos outros.

Mal-me-quer

bem-me-quer

mal-me-quer

Em tuas mãos depositei o cálice do meu corpo.

Restaram as cinzas das horas,

e uns ramalhetes secos,

pousados sobre os meus passos,

nas areias movediças de mim.

Eu coleciono flores

dos jardins dos outros.

Mal-me-quer

bem-me-quer

mal-me-quer

As pétalas decapitadas

teceram um descaminho

entre a vida e a morte.

No céu, um luar suspeito,

me vigia:

— há séculos.

 

 

 

 

 

 

*

 

Eu ando pelas ruas, recolhendo sonhos,

deixados ao relento.

Espatifados pelo vento.

Filhos bastardos do destino,

largados pelas mãos invisíveis do tempo,

à minha porta.

Recolho-os, galhos e gravetos molhados,
na última estação das águas.
Seco-os com os cachos dos meus cabelos.
Perfumo-os com o óleo dos jasmins,
que florescem — sempre —, em novembro,
e enfeitam a minha passagem,
sem se importarem com a minha vontade.

Embalo-os no berço fantasma
dos filhos que não tive.

E escondo-os de mim mesma,
numa caixinha de música
(antiga):
— onde a bailarina está nua
e tem as pernas quebradas.
 

 

 

 

 

[imagens ©rené magritte]

                                                         

 
 
 
 
Marisa Sevilha Rodrigues: Nasci Marisa Sevilha Rodrigues, filha de pai espanhol com mãe italiana, mas no cartório se esqueceram da minha herança espanhola, e cresci, rodrigueana. Me formei em Letras, pela Unesp, campus de Assis/SP, em 1983, e em  Comunicação Social pela Cásper Líbero, em 1986. Fui repórter, redatora e editora de Veja, Folha de São Paulo, Revista Vogue, Criativa, Guia 4 Rodas, Jornal DCI, entre dezenas de boas casas do ramo. Casei, descasei, não tive filhos e adotei a Sofia, uma cadelinha mais doce que mel, e que me enche de fé na vida. Sou diretora da Taxi Blue Comunicação Estratégica, onde atuo como consultora de comunicação empresarial, com especialidade para o agronegócio. Quando não estou lendo ou escrevendo, o que é raro, cultivo orquídeas, cozinho paellas e moquecas, coleciono imagens de São Francisco e tento praticar yoga (tento, às vezes, consigo...).