RETINA

 

"Iste ego sum: sensi, nec me mea fallit imago".

[Ovídio]

 

 

Sempre teve olhos tristes

nunca soube, num gesto,

romper melancolias e estancar

dores que permanecem.

 

Pensou camuflar a tristeza

tingindo de azul sorrisos

apegando-se aos detalhes

belos e fugidios:

 

Carros que passam

corpos que caem ou

vozes simpáticas que saúdam

novos tempos, encontros...

 

Escreveu cartas, decorou versos

traduziu sentimentos alheios

a fim de ganhar voz e vida.

 

Fez-se outro, logo cria

emudecendo desejos ruins ou

vontades de sono e medo.

 

No espelho permaneceu, tão somente,

aquele olhar e dor que lhes

são insoluvelmente próprios.

 

 

 

 

 

 

A TEIMA

 

"[...] es que debo decir, decir, decir,

hasta hacer de mi voz una palabra sola".

[Jorge Meretta]

 

A Roberta Tostes Daniel

 

 

Consternado o canto

intervalo de gritos

ausência de vínculo

diante da tentativa

arisca do erro.

 

Claudicante o canto

horrível falsete

nutrindo apenas

manias de grandeza

vaidades à flor da

casca.

 

Vazio o canto

salto ridículo

mero exercício

ao destinatário

impassível

dist[o]ante

surdo

 

aos apelos do indigno silêncio.

 

 

 

 

 

 

SOLIPSISMO

 

"Was der Solipsismus nämlich meint, ist ganz richtig,

nur läßt es sich nicht sagen, sondern es zeigt sich".

[Wittgenstein]

 

A Daniela Lima

 

 

Lapidada calma

sutil desespero

contendo traços

ignorando móveis

ruído ausente

espaço e tempo

abatido desprezo.

 

Não havia Deus

morto alhures

ritual morno

mortalha reta

tecida de costume

tradição e berço.

 

Divina ausência

vielas invade

inflamando vontade

no sonho de forjar

ímpeto e sopro.

 

No vácuo

medita e gesta

sair às ruas

vestir inocência

tornar-se, talvez,

multidão.

 

 

 

 

 

 

VIVALDI NOS TRÓPICOS

 

"Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples".

[Manuel Bandeira]

 

Poema de mãos dadas com Denise Anzorena

 

 

No cair do outono olhares treina

folheando ausências, procura

minar a dor que, seca, martela.

 

Ao inverno oferta silêncios, perdas

petrificando a solidão cartuxa

toca, singela, violentas memórias.

 

Pelo verão carente de amarelos desejos

força "inútil paisagem"

ao derreter sonhos de necessidade.

 

Primaveril vontade cores arremata

exalando entreditos sob incertezas

postas em palavras outrora impedidas.

 

Cíclica rascunha, litúrgica, o amor.

 

 

 

 

 

 

ONETTIANA

 

"Every time we say goodbye, I die a little".

[Cole Porter]

 

 

cigarros gastam a espera

nada mais clichê do que

sinais cansados de fumaça

princípios de ânsia, querer

não estar, vociferar qual criança

 

pedido reticente por

mais um trago de culpa

no raro apontar de afetos.

 

o diabo, dizem, mora

ali, escondido, nos detalhes

para além das comoções

etílicas que cambaleiam

nos poemas decorados

naqueles bordões eleitos

a fim de criarmos "l'intimité".

 

pedido reticente por

mais um trago de culpa

no raro apontar de afetos.

 

poderia traduzir nossa queda

na tosse seca ou nos sintomas

de ressaca, pobreza, miséria

ditos e promessas para "happy

birthdays, ends, deaths".

 

pedido reticente por

mais um trago de culpa

no raro apontar de afetos.

 

cansaço apegado às imagens

representar falseia refrões

toques, gemidos, materialidades

gestos inúteis para um ideal

construído em torno de ti.

 

pedido reticente por

mais um trago de culpa

no raro apontar de afetos.

 

 

 

 

 

 

CANTO VOLITIVO

 

"And indeed there will be time

To wonder, 'Do I dare?' and, 'Do I dare?'".

[T. S. Eliot]

 

 

comungou do asco ofertado e claro

além de leitos, copos que chamam

a combinar preço e mistério gozoso.

 

aprendeu a ler curvas rabiscadas

corpo informe, instável, irascível

alicerce de nomes falseados e vivos. 

 

arranhou peles no trincar urgente

vínculo, fácil cópula, roendo

trajetos para abater odioso surto.

 

all done, viril dever posto, yes

à mesa fumega soberba, yes

Dedalus said, let's go, did I?

 

factum est, pensou consigo

difícil tarefa é unir prefixos

perfazer o soluço póstumo.

 

suprimiu a fúria em chamas

fantasmas montam a cena

farsa lambuzada na outra.

 

à caça, em sonho e carne

consumiu para si o asco

desejo perene e vindouro.

 

o reino à mulher amada e nunca vista.

 

 

 

 

 

 

JUIZ DE FORA

 

 

bem sabia ser impossível

servir a dois senhores:

cruz e caos.

 

nominado santo ou anti-fausto

não peca quem cerra janelas

mutilando fiasco escolástico

viciado no ciclo crisóstomo.

 

solilóquio rabisco louva

feudal porque moderno

anúncio onírico discreto

 

derramada vida em fuga

sacristia fora da névoa

canta contradita insana

 

para todo o sempre. amém.

 

 

 

 

 

 

A TRÉGUA

 

"[…] what would I say, if I had a voice,

who says this, saying it's me?".

[Samuel Beckett]

 

 

oscilo entre opostos ao cruzar dúvidas

cozidas no amaciar caseiro de purezas

estado familiar para aromas e lacunas.

 

vi o misturar, repetido, de mundos

naquele tempo nutrindo tormentos

minando sentimentos semi-divinos.

 

ergo inválido preces que embalam

dístico canto hostil aos que escutam.

 

gestos revezados pelo avesso

auxílio ou anseio sempre novo

para sanar contraditas visões e medo

 

impróprio conflito onde não caibo.

 

 

 

 

 

 

DOMICÍLIO

 

"I wish you nothing but necessity".

[Allen Ginsberg]

 

 

 

calejada voz que anuncia setembros

intervalo multicor revela retratos

na carteira retidos por mero pretexto

passado nos abraços agora negados.

 

não serei mero guardador de sonhos

sem medida entre a calma e a fúria

recados fúteis na caligrafia médica

afeto cirúrgico para amores perdidos.

 

janelas sempre fechadas anunciam

estado de coisas tempestivamente céticas

negar possibilidades, recusar saltos

implorando o frágil, sutil apelo:

 

calar chamados de nunca para sobreviver sempre.

 

 

 

 

 

 

A VISITA

 

"In the room the women come and go,

Talking of Michaelangelo".

[T. S. Eliot]

 

 

A sala de estar nunca convidou permanência

lançando murmúrios secretamente assistidos

no retratar de viagens cansadas de importância.

 

Fresta acusa janela em lasca para olhares

curiosidade imposta num exterior temível

interiorano mundo a cobiçar peles desabitadas

corpos sem rosto reduzidos ao vasto da vontade

 

apagar de postes emudece noites sempre atônitas

rua desprovida de posses, berlinda movediça

retorno enterrado aos sagrados lugares da infância

 

fazer sala como único meio de salvação.

 

 

 

 

 

 

SIMILITUDE

 

"A sorrir eu pretendo levar a vida".

[Cartola]

 

 

fazia frio naquela noite

triste entre multidões

danças confusas

subterrâneas vontades

morte e gozo

ímpeto perdido

chance verbalizada

coisas esquecidas

olhar construído

burros treinos n'água

sem ritmo ou samba

o verbo se fez pedra

calado na vergonha

lucidez de copos

cegueira medrosa

só.

voltaste ao pó

teu destino, tua morada

diluindo-se em atos

braços nunca vistos

pele de cordeiro

sangue na matilha

caça da presa

oferta ilesa ao toque

familiar e concebível

fertilidade inventada

pelo desejo de calor.

 

 

 

 

 

 

BLANCIANA

 

"Vocês não lembram / Meninos eu vi".

[Aldir Blanc]

 

 

amarga voz entre cevada

ardente fumaça sintonia

dose repetida no tropeço

soluço quente sem maré

riso de rascunhado risco

queda bêbada ao resgate

garrafa vazia faz sombra

conta somada do passado

boêmio inglês sutil

boca escancarada hoje

pretérito mais que perfeito

olhar marejado joelho gasto

sabedoria acumulada no breu.

 

 

 

 

 

 

1971

 

"É feia. Mas é flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio".

[Drummond]

 

A Lalo Arias

 

 

diabo sentado no asfalto

dane-se ser 'gauche, droit

volver...'

redemoinho festivo

versos cravados

pele tão cinza gasta

vida segura em retinas

antiquário de fracassos

leitos urbanos a desafiar

carros pernas gritos

flores brotando mortas

recado telegráfico relido

missiva medrosa metrificada

coração kantianamente

exposto freudianamente

culpado joyceanamente

ilegível 'adeus, ódio, adeus'.

 

 

 

 

 

 

[imagens ©dominic rause]

 

 

 

 

Matheus Pazos (1988), recifense de nascimento, criou-se no interior baiano. Mora em Campinas/SP, onde faz doutorado em filosofia na Unicamp. Atualmente, além dos estudos de filosofia, traduz o livro Casi una leyenda (1991), do poeta espanhol Claudio Rodríguez (1934-1999). Escreve o blogue Crônicas exílicas: http://cronicasexilicas.blogspot.com.br/.
 
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