Variação e Rito Sobre Uma Tourada Espanhola

 

 

Sobre o branco puríssimo

a rosa negra intumesce:

seu caule espesso,

sua pétala áspera,

sua fúria intensa e violeta.

Porque a cidade é escura,

porque as esquinas rasgam o passeio

e porque a chuva insiste fria, muito fria.

(Muitos animais

saem de entre as minhas pernas,

eu teria pensado aquela noite.

Hoje não.

Sei que moram também em minha garganta

e deslizam por ela

como o metrô desliza sobre o dia,

repleto de vozes e suores,

sua música polifônica.)

Sim, a cidade é escura,

mas a arena é clara.

O touro,

vermelho e arfante,

pinta a óleo e sangue

o pôr-do-sol

e a tarde emerge entre seio e lábio.

A cidade é escura,

mas a arena é clara

e a arena banha de festa e luta

toda a praça

que, luminosa e nua,

acende,

uma a uma,

as suas facas.

 

 

 

 

 

 

Darkness

 

 

A solidão,

essa tempestade,

esse gozo às avessas,

esse jeito de eternidade

que as coisas adquirem

mesmo sendo apenas vidro.

Essas cartas ardendo

no estômago das gavetas,

essas plumas

que surgem quando se apagam

as últimas luzes do dia.

Tudo faz a noite mais longa,

visão de uma sombra

sobre um berço.

Não há resposta

e o labirinto é o falso,

os lábios são falsos,

somente abismo,

absinto verdadeiro.

O sono,

grande placa de cerâmica

e o tempo,

demônio a ranger sobre o infinito.

 

 

 

 

 

 

Da Rotina

 

 

Varrer o dia de ontem

que ainda resta pela sala,

o dia que persiste,

quase invisível

pelo chão,

nos objetos

sobre os móveis da sala.

Varrer amanhã

o pó de hoje.

Varrer,

varrer hoje.

(E domingo quebrar nos dentes

o copo

e sua água de vidro.

Segunda, não esquecer:

varrer todos os vestígios.)

 

 

 

 

 

 

Fotografia de Menino

 

 

O menino morto

nem fazia conta

do caixãozinho de brinquedo,

do diadema de flores,

nem da roupa de festa

com que a mãe o vestira

num dia ordinário.

Curioso, mirava a máquina,

o olho fixo e estranho da máquina

que o olhava também.

 

Estava tão limpo e tão lindo

e o verniz dos sapatos

brilhava tanto,

mas o que incomodava de verdade

eram as mãos presas

numa prece que ele não sabia como soltar

e nem deveria, decerto,

pois a mãe poderia vir a ralhar

e seria um aborrecimento enorme.

 

 

[Do livro Geografia Íntima do Deserto, Landy, 2003]

 

 

 

 

 

 

A Barata

 

 

A barata

tensa

atônita

atenta

à folha

pegajosa do poema.

Um calafrio quase

na carapaça dura

e o poema agridoce

acenando

acendendo

dentro da madrugada escura.

 

O dia nasce

parindo um novo solstício

e ela,

impressa,

presa no poema-suícidio

 

 

 

 

 

 

Enfeite

 

 

Enquanto não vinhas

eu pastorava as brisas

e à noite juntava todas

nas cercas do meu sono.

Depois construía praças e jardins

com as palavras empilhadas sobre as cartas

com as cartas empilhadas sobre os dias

com os dias empilhados sobre o nunca.

Arquitetava outra engenharia do tempo

enquanto não vinhas

e nada, nada, era belo assim.

Enquanto não vinhas

fiz para mim esta urna funerária

com que enfeitas hoje

inadvertidamente

a tua sala.

 

 

 

 

 

 

Coliseu

 

 

Os carros rugem.

 

Espera de arenas, o círculo das batalhas.

 

A cidade se oferece: carne.

 

Abre a sua guarda

e os leões colidem,

esfomeados.

 

Hostes e dentes,

o seu nome é Legião.

 

 

 

 

 

 

Chapeuzinho Vermelho                                                  

 

 

[a Francisco Brennand]

 

 

O lobo é o cheiro

(da noite)

o lobo é o passo

(do gato)

o lobo são os olhos

(do touro)

é a lua

o uivo da faca.

 

O lobo é a dor

(do relógio)

o lobo é o caminho

(mais curto)

o lobo é a cesta de doces

o lobo é o talho

é o susto.

 

o lobo é o pelo

(do lobo)

o lobo é a pele

(macia)

o lobo é a língua

(pingando)

é o baile e a máscara:

 

o lobo é menina.

 

 

[Do livro A Cartografia da Noite, Lumme Editor, 2010]

 

 

 

 

 

 

A propósito de um painel de Athos Bulcão

 

 

O voo do pássaro,

vórtice,

vértice,

vertigem.

O voo

transparente vidro.

O voo,

voragem,

velocidade,

estática do azul sobre o branco,

tênue desequilíbrio:

azulejaria.

 

 

 

 

 

 

A Longa Noite

 

 

Quando a tempestade

se adensa

dentro da bolha de vidro

ele se refugia

no meu sonho.

O meu sonho é largo

como o universo em expansão

mas ele se contenta com pouco,

um pequeno quarto,

um canto no porão.

 

É a guerra, ele diz.

 

Sem qualquer resultado

o buscam

sua mulher,

seu velho pai,

o superior imediato,

as varreduras da polícia.

Ele fica quieto,

suspenso,

e se alimenta

do amoroso silêncio

com que o recebo.

 

É a guerra, eu repito.

 

E em torno de nós

a escuridão com o seu manto.

 

 

 

 

 

 

Das pequenas perversões

 

 

Amo o corpo que a memória desenha

imperfeito

a lacuna

e a incerteza

e certa lembrança de

um dia

pele sobre pele

acreditar em números puros.

Amo o cadáver

que a memória

insiste em colocar

em seu lugar

esboço malfeito

da sua presença

sangue de um animal ferido

— lobo ou leão

mentira ou descoberta.

Amo o seu nome

carne impossível

dita entre meus dentes

sêmen

pedra tumular

e essa brincadeira

de completar o quadro

com aquilo que lhe falta.

 

 

 

 

 

 

Do Coração

[em cinco atos cirúrgicos]

 

 

I

 

Coração

 

[por uma definição mais precisa]

 

E afinal de contas é só um músculo,

carne como carne,

muitas vezes de terceira

 

(mas dizem quem nem para uma sopa serve).

 

 

 

II

 

 

Coração

[por uma imprecisão realmente séria]

 

Quando um coração se quebra

o que dele

não se regenera?

(a cicatriz, esse poço sem fundo,

é

como se quer

um túmulo?)

 

 

 

III

 

Coração

[por uma indefinição não absoluta]

 

Quando um coração floresce

suas raízes intumescem:

paredes inchadas

válvulas crescidas

 

(explode

no que se perde).

 

 

 

IV

 

Coração

[por uma condição indefinível]

 

O que da tua ausência

me define

ou me necrosa?

 

(Teu coração

é minha acrópole

ou minha cova?)

 

 

 

V

 

Coração

 

[por uma imprecisão definidora]

 

O coração é pois uma mentira

feita de veias

sangue

válvulas

e algumas feras

incendidas.

 

(máquina de moer

moela

estômago

o coração

essa engrenagem

é mais ácido

do que sonho?)

 

 

[Poemas inéditos]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©robert bechtle]

 

 

 

 

Micheliny Verunschk é escritora e crítica literária brasileira com trabalhos publicados em Portugal, França, Espanha, Canadá e Estados Unidos. Finalista em 2004 do Prémio Portugal Telecom com o livro Geografia íntima do Deserto (2003) é ainda autora de O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003) e A Cartografia da Noite (Lumme, 2010). Bloga em http://www.ovelhapop.blogspot.com.br/.