©jerry uelsmann
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

A volta pra casa no ônibus do Tambaú, o das 23h10m

 

 

nas noites em que se retorna do mundo

não só o recolhimento se confunde

com o comboio de vento

na estrada de frio e cemitério

como também a arquitetura do escuro

no só das horas que nos separam do outro dia

 

no entanto até quando

pelo excesso do que amanhece em nós

a ficção não se apagará

e o silêncio continuará sendo um vagão dos que pulam a janela da noite

 

 

 

 

 

 

Praça do Relógio

 

 

o que espiam os ponteiros do relógio

nos galhos tombados?

o tempo é um espantalho espreguiçando

no escuro canto do pássaro pernudo

a primavera é uma chuva triste

flores. flores. tempestade amarela

habitando o susto

naquele dia a vi envelhecendo

pelas frestas do silêncio austero

logo depois subi na árvore

e desenhei a noite com a luz

de um palito de fósforo

a um canto da noite um avião de papel

me fazia advinhar a frágil espera

dois melancólicos só se encontram para desnudarem a intimidade das

delicadezas perdidas

 

 

 

 

 

 

Alberto Guzik

 

 

tudo que eu digo que é belo

é triste

a beleza é uma forma da morte

ir se acomodando aos poucos

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Vi duas crianças brincando de faz de conta. Havia um cão por perto. Um cego de bengala atravessou no meio da brincadeira. O cão não reagiu. As crianças o imitaram. Do outro lado do muro um coveiro dava seu passeio matinal por entre flores e sepulturas. vez outra as crianças pulavam o muro para brincar de esconde-esconde no vasto horizonte dos mortos. Depois que o cego se foi elas resolveram imitar o tape tape da bengala. Como se fosse um réquiem para vivos e desvivos.

 

 

 

 

 

 

*

 

maria era uma florzinha que catava ventos sensíveis. da infância das coisas invisíveis descobriu a pegada de uma secreta alegria. começou a criar desenhos sobre os hiatos de uma vida. o primeiro desenho contava a estória de um silêncio manco. o segundo desenho falava sobre a estória de uma flor que ficou invisível. o terceiro desenho narrava a estória de um prendedor de cabelo com cara de formiga abandonada. no quarto desenho eles eram uma família. uma família que piscava na escuridão.

 

 

 

 

 

 

Kopenhagen

 

 

é difícil prever

quando a vida vai se abrir

e acender um palito de fósforo

na curvatura da tua solidão

como um segredo

que ao invés de ser guardado

dentro de uma árvore

é despejado sobre quem existe no teu silêncio

a mão do invisível é uma língua de gato

que passeia pelos olhos

e move dentro os escuros

e como uma caixa de chocolate e um filme

que se ganha de presente

pode muito bem ser um convite

para povoá-los

os escuros

 

 

 

 

 

 

Epitáfio para uma ONG




não há cosmética

para os que não tem rosto

 

 

 

 

 

 

Epitáfio para um contemporâneo



acreditava nas suas fragilidades e nas suas paixões

de uma forma ou de outra era um empolgado

 

 

 

 

 

 

Avenida Paulista

 

 

ela tinha uma cachorrinha chamada psicanálise

ele tinha um gatinho chamado teatro

 

 

 

 

 

 

Concreto

 

 

nunca vi meus pais

caminhando de mãos dadas

na memória eles se juntam

como uma fotografia partida

de um banco de praça

 

 

 

 

 

 

Avenida Paulista II

 

 

o passeio com o cão

deixou de ser uma simples alegria

no dia em que decidimos

colocar a solidão na coleira

 

 

 

 

 

 

Cais

 

 

os navios estavam ali

parados com uma ternura de coisa vivida em segredo

a tarde nos olhos enrugava alguma lembrança

conversávamos sobre a chuva

sobre como ela altera o sentido de urgência das coisas

as rasas fatias da vida

os silêncios partilhados

 

 

 

 

 

 

Celebridade

 

 

Andy Warhol

Estação Pinacoteca em SP

a garota de Guaianazes

da escola Vilma Flor

desmaia

pegara o trem às 6 da manhã

e às 11h ainda não tinha provado

da Campbell's Condensed Soup

 

 

 

 

 

 

Família

 

 

sempre fomos poucos

três mulheres e um homem

os rituais em torno da mesa

tinham como imagem respeitosa

restinhos de comida

que a mãe deixava cair

pelos cantos dos lábios

o movimento concentrava

um aprendizado insuspeito

de pertencimento

para bem depois se tornar

um desenho arqueológico da ausência

o homem cresceu solitário

passando máquina zero na cabeça

para ampliar a sozinhez

e assim como os Xavantes

comunicar a saudade

as mulheres bordaram no tempo

duas cadeiras a menos

 

 

 

 

 

 

O Torcedor

 

 

se passaram vinte e quatro anos

depois que o autor de os conjurados morreu

tanto naquela época quanto agora

a poucas horas da missa de sétimo dia de Johnny Alf

o mundo não entristeceu

o mundo nunca entristece

com desaparecimentos assim

Matheus sim

Matheus sim sempre

o mundo não

o mundo não nunca

os conjurados de agora

estão aqui em Botafogo

assistindo  o morcego da porta principal

estão por toda a Paulista

vendo o homem que engarrafava nuvens

os conjurados de agora

estão na Feira da Praia Grande

amontoados nos pés sujo da tia Amélia e da tia Lulu

discutindo as miudezas do belo

para próxima temporada de inverno das toadas de Boi

os conjurados de agora

aprenderam a rezar

e já são sensíveis

 

 
 
junho, 2013
 
 
 

 

 
Dyl Pires (São Luís/MA, 1970). Poeta, ator. Publicou dois livros de poesia: O Círculo das Pálpebras (1999) e O Perdedor de Tempo (2012). Publicou ainda no jornal Rascunho de literatura, Revista Literatura em Debate e na Revista Pitomba. Na gaveta, O Torcedor, A Menina de Pé Trocado e A Alegria é um Antigo Caderno de Caligrafia. Ator da Cia. de Teatro Os Satyros, participou das seguintes montagens: Roberto Zucco e Satyros Satyricon. Vive em São Paulo.
 
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