NA PISTA Sexta-feira à
noite, ele era o noivo de si mesmo. O paletó esportivo, o cachecol lilás,
no capricho — em junho, faz frio. Na alça da calça jeans, a fivela da
hora. As meias areia nas boas botas. Como de costume, perfume. Vamos
embora? Automóvel
frugal, simples Fiat, mas novo, a pintura a reluzir.
Ao passar
pela quadra 103, na Asa Norte, em direção à Sul, os faróis veem o homem
estendido na pista. No meio da via, o sujeito senta-se, rola no chão,
parece doido. Pode morrer o maluco. Tem de
voltar, precisa prestar socorro. Para o carro na pista contígua àquela em
que o homem se abandona deitado, de joelhos ou o que seja, sempre em
movimento, nervoso, mas sempre no centro da rua, a ponto de ser
atropelado. Sai do Fiat e
faz sinais para quem vem naquele sentido, gestos enfáticos, meio em
desespero: os motoristas diminuem a velocidade, estacam. Há os que se
sobressaltam, na antessala da raiva diante do insólito. Notam, porém, que
alguém se estatela na lona do asfalto — ferido, alucinado, bêbado? A figura do
homem estimula as últimas hipóteses: bermuda suja, camisa puída ou
rasgada, sorriso ilógico, dentes à mostra sem motivo nem
propósito. Ele chama o
cara, sai daí, sai daí, o outro não escuta ou não quer escutar. Tenta
arrastá-lo, tirá-lo de lá, mas sem sucesso. O ser humano
pesa. O do paletó
resolve apelar para o barulho: toda vez que o movimento amansa, retorna a
seu carro parado próximo e mete a mão na buzina, o berro em desvario que
acorde os prédios exaustos. Fonfon. Vamos salvar uma vida, vida de merda,
sim, que seja, porque pouco importa: única. Principia a
se formar o gargalo para o tráfego. O salvador de cachecol alterna a
buzina e o controle de automóveis, braços em rotação, explicações sumárias
gritadas da guia para as janelas perplexas. Já o sem-camisa permanece ali
na miséria ou, quem sabe, no bem-bom dos
inconscientes. Afinal chega
o socorro, vindo do hospital central, perto do lugar onde estavam. Os
paramédicos, que lembram samangos maldormidos, surgem zangados. De má
vontade. Tenta conversar, eles o cortam com impaciência; um deles, o
chefe, mostra-se ríspido. Então entende: o coitado era freguês das
ambulâncias. Volta e meia fugia das celas ou das camisas de força e se
expunha a ser colhido pelos carros, segundo lhe contaram, sem mais
detalhes. A vocação suicida. Quando o
veículo do hospital parte, já com o doido risonho e temerário preso em
suas vísceras, ele se volta para o carro — mas, meu Deus, cadê o carro? O
misticismo residual de ex-católico salta, ele se pergunta por que lhe
furtaram o Fiat quando, à vera, só pensara em fazer o bem. Ser bom. Ajudar
o próximo. Estender a mão a quem precisa. Deus, seu sem-vergonha, onde
estás que não respondes? Então divisa o carro longe, longe, mas quieto, junto ao meio-fio muitos metros adiante. O bicho, no declive, tinha descido sozinho, obediente às leis naturais. Ao descair, os pneus enviesados descreveram curva leve, uma elipse, o movimento estancou na guia. A lua no céu. Lá estava o Fiat, intacto, à espera de seu dono como os animais fiéis. Entrou no carro, safou-se em direção ao bar na Asa Sul. Ainda a sexta-feira. Tudo em ordem, menos a calma burguesa e o perfume, que o suor matara.
Escrevo esse
título antes de começar a contar o episódio, amor e ódio, sem saber onde
vai ter, onde vai dar. Vamos lá. Primeiro, o
flashback: publiquei poema há alguns anos em revista literária, um
daqueles poemas-piada que os modernistas e, mais tarde, os alternativos
gostavam de fazer, haicai sem pretensões filósofas. Achei bacaninha,
mandei: Sentimento a
esmo, meço a
distância que vai de mim a mim
mesmo. Esse era todo
o poema, três versos, o primeiro e o último em cinco sílabas, o do meio em
sete, segundo pedem os haicais. Dei a ele o nome de "Quilometragem".
Postei-o e, tempos depois, reli-o estampado na revista. Pequena vitória,
digam o que disserem. Ao menos para mim, era. O lançamento
da revista balançou velho sobrado onde, séculos antes — não há exagero,
são mais de dois séculos —, havia funcionado uma academia de letras. Os
poetas de tempos passados reuniam-se para declamar, uns para os outros, as
suas emoções metrificadas, e algumas delas ainda valem. Acham que só se
produzia literatura em Ouro Preto, Salvador e Rio de Janeiro? Por aqui
também se poetava.
No dia do
evento, famílias, amigos, o professor de português e até o prefeito, este
com nítida má vontade, apareceram e brindaram à publicação. Não poderei
dizer ricamente encadernada, como diriam narradores antigos; garanto
apenas que papel, miolo e capa não fizeram feio. As estampas sóbrias
sugeriam paisagens históricas, tendendo, porém, para o abstrato. Dentro,
alguns sonetos, nem sempre maus; rondós, forma simpática a que se volta
pouco; quadrinhas elementares, meramente enfileiradas na página; dois ou
três poemas longos, sinceros, em verso livre. Nem uma nota
na imprensa local. Minto: houve uma, sim, mas seca, diria mesmo árida.
Miúda, mal-humorada, mal escrita: uma nota escrota (perdão, perdão).
Semanas, talvez meses depois do lançamento, os poetas comprimidos na
revista já não tinham esperança de que os jornais comentassem os textos. A
essa altura, um crítico literário aqui de Goiás, afetando a melhor das
intenções, resolveu analisar os poemas, pertencentes a autores os mais
diversos, residentes em cidades várias. Eis que sai o
artigo, comprido, no jornal do município vizinho: catatau pretensioso mas,
ao contrário da brevíssima nota do dia de lançamento, não propriamente mal
escrito. As regras de grafia e pontuação lá estavam, respeitáveis e
respeitadas; a sintaxe, apesar de pedante, era inteligível; o vocabulário,
verdade, recendia a século XIX. Seja como for,
legível. O autor do
artigo distribuiu parcos elogios, ainda assim somente entre poetas mais
conhecidos na área: o vetusto Feliciano, de lirismo realmente apreciável;
o epigramático Noel, talvez superestimado; o grande Moog; o grande
Clayton, este, quem sabe, o melhor deles. Foram, contudo, elogios breves,
quase sovinas, como se baixasse no crítico o pudor de admirar, louvar,
reconhecer. Pois é:
quando o artigo chegou a meu nome, o hermeneuta, sei lá por quê, decidiu
caprichar nos desaforos. Aquela linguagem estava datada; o poema não
queria dizer nada; se era para escrever tão pouco e tão em tom de piadinha
o melhor seria calar, enfiar a viola no saco, não poetar mais, jamais.
Emburrei.
Emputeci. Danei, virei fera, pantera, queria dar tapas na cara do tal
crítico literário. Bicho burro! Então não se pode escrever como se quer,
não se pode curtir o prazer das palavras, brincar com elas, ser feliz com
elas? Ficasse em casa, brincasse em casa, em público só se pode ser sério,
douto ou, como queria o Bandeira, escalafobético? Assim não é
possível. Encontrei,
tempos depois, nosso crítico num café. Desabafei meu rancor, disse-lhe que
ele não tinha razão, que fosse cobrar seus tostões de quem estivesse
disposto a dá-los, que comigo não, violão. Poucas e boas. Ele tentou se
defender, mas fui tão enfático que, parece, o peguei de surpresa, ele que
não esperava tanta veemência, e finalmente o rendi ao perguntar: "Terá
havido mesquinhez, talvez?". Pôs as mãos no peito, à altura dos mamilos,
como quem protesta inocência, girou nos calcanhares e
desapareceu. Acham que
acabou? Começou aqui. Foram meses em que, se nos víssemos, atravessaríamos
a rua. Não ele apenas, mas eu também, nenhum de nós queria olhar para a
cara desagradabilíssima do outro. E assim passaram cinco anos, um pouco à
maneira dos melodramas e boleros. Vinha eu
caminhando tranquilo, rancores pacificados ou, pelo menos, adormecidos,
não só quanto a meu algoz literário, mas também no que toca a outros
detratores, quando avisto certo sujeito à mesa de um bar na calçada.
Achei-o parecido com um amigo de adolescência, e mais: senti a visão do
velho amigo como prazerosa, quase o anúncio de, no mínimo, um dia feliz,
uma boa semana, sucesso nos negócios e no amor; um rosto que prenunciava
coisas boas, só coisas boas. Estendi para
o conhecido o gesto mais puro, o riso mais generoso, perdulário. O sujeito
que eu confundia com o melhor e mais remoto amigo, saído de memórias
cálidas, placentárias, a princípio pareceu não entender minha atitude, mas
um ou dois segundos depois abriu sorriso largo, diria até voluptuoso, e
entregou as suas mãos às minhas mãos festivas. Era o crítico. A partir
dali, confiado numa reconciliação que o simples acaso promovera, sem falar
na miopia, trata-me como a um irmão, irmão íntimo, irmão mais que de
sangue. Não tenho coragem de desiludi-lo e, convenhamos, esse não deixa de
ser um desfecho gordo, corado e bem disposto para inimizade que se
prometia eterna e que tinha por baixo a mera vaidade, não apenas, porém
principalmente vaidade, a minha e a dele, que Deus nos abençoe, nos
ilumine e pronto, ponto,
amém. setembro,
2013
Fernando Marques é
professor do Departamento de Artes Cênicas da
Universidade
de Brasília, jornalista, escritor e compositor. Publicou Retratos
de mulher
(poesia; Varanda), Contos canhotos — Pizzarelli na danceteria e
outras histórias
(LGE), A comicidade da desilusão: o humor nas tragédias cariocas
de Nelson
Rodrigues (ensaio; Editora UnB/Ler Editora) e os textos teatrais
Zé — peça
em um ato, adaptação em verso e canções do Woyzeck de Büchner, e
Últimos
— comédia musical em dois atos (livro-CD), ambos pela
Perspectiva. Autor
da comédia A quatro, encenada em Brasília (2008). Tem
reportagens e artigos
publicados em jornais e revistas de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo e
em
revistas eletrônicas. A cantora Wilzy Carioca lança neste ano o CD
De cor, com
14 canções do autor. A peça Zé será republicada em
novembro de 2013 pela É Realizações.
Mais Fernando Marques na Germina > Contos |