carnaval
1
com
dez mil leões no cabelo, a dor sem
sombras
a
dor sem sombras e sua lã sem derme
pude
lamber sua cara mergulhar na claridade dos raios solares de
álcool
agora
não lembro mais
preciso
dela. por aqui? vou. subo a rua ou não? faz sol, nesta rua não. nesta rua
a tarde tem a cor dos paralelepípedos. eu conheço você, rua. reze, a rua
diz sarcasticamente. já fomos apresentadas. temos vícios parecidos. já
andei por você que. que alegria que tristeza. que alívio. que merda fui
fazer? você aparece na minha frente, você é a fumaça. na bolsa, o celular
apita mensagens atente para o rastro do homem-gosma e saberá até onde
consegui ir, gostava de ser suas coxas para fazer inveja às outras moças.
penso nas frutas, se soubessem que apodrecerão, bem antes nos implorariam
socorro: come-me, por favor.
avisto
alguém que conheço. sim, não. penso conhecer. não estou convencida.
certeza, é ele. não nos vemos desde. é ele? o
próprio.
mão
o
escritor não está salvo se não tem porque contar sua noite quando a manhã
chega.
antecipar
a velhice, como experimento. por alguns dias experimentar ser idoso.
voltar a si antes que seja tarde demais, quando já for.
se
sou alguém, sou alguém com uma pata de toupeira no lugar da mão. e
adquiro completamente estrutura por demais grotesca nos dias em que
sou obrigado a dedicar cem por cento do meu tempo ao trabalho burocrático.
após tão dolorosa deformação, quando a pressão passa e me é
permitido relaxar, imediatamente sou devolvido à forma humana. porém,
minha garra peluda e dura, a fétida mão que escreve, permanece imutável em
tais características. quase sempre me envergonho dela. parece que nunca
vou me acostumar. detesto seu cheiro e voracidade. sei que assusta a
todos.
cruzo
o centro. chove
e o branco e o cinza a emergirem dos livros de sangue do vovô vampiro. e
os sons das partituras do Bento Mussurunga esquecidas nalguma gaveta
emperrada nos porões de poeira e fungos da Escola de Belas Artes. ainda,
os sussurros de cor sépia que se apalpa em ruas estreitas e úmidas, a São
Francisco, onde se arrastam correntes das Iluminações, uma Paris do tempo
em que ainda cheirava a estrume das montarias e carroças e as horas eram marcadas pelo
sino das igrejas. meus olhos chupam este cinza e chuvoso cenário de cafés,
confeitarias, alfaiatarias, chapelarias, charutaria. e as insondáveis sarjetas dos olhos mostarda de um
pobre diabo ao final da tarde a estipular quando termina o turno das
atrocidades diuturnas e cai maciadocicada a treva. chove o inverno porque
convém, aliás, aos condenados em suas prediletas horas.
e tem este velho poeta. só ele pode me ajudar. só ele pode fazer
operar em mim a cirurgia que me exaspera.
vai
ver o velhote do décimo sétimo. enfraquecido,
doente, curvado diante de tudo, me recebe. ele diante do velho preciso de um favor. pois não, filho. o senhor coleciona armas. estou
ouvindo.
não
dá para saber se é um sorriso o que tem na cara. há aqueles que sorvem catástrofes feito sorvetes sorvessem. abre a porta e minha vida foi arriscar tudo como
pisasse em gelo fino sobre o lago frio. nos dias que correm, penso,
preservado reformado limpo o tempo todo, nada é mais ruína, só o poeta. seu escritório tem grossas grades protegendo a porta. estamos em
horário comercial. a porta e a grade, abertas. vejo seus pés só com meias.
os sapatos de couro ao lado. que
bom, ter uma mulher bonita aqui. rio, pois sou um homem. além de nós
dois, está a Esperança. isso, entre nós a Esperança: o frio gagueja, pregos são inquilinos de seus olhos. olhos... hum, olhos, diz o poeta, ontem tive vontade de fritar os
meus, eles e a língua em óleo podre, mas a Esperança, obrigado querida,
não permitiu tamanho desatino.
olhos,
penso eu e enxergo bem a Esperança. como se prenhe dos pavores gelados da
morte, a Esperança, serzinho menor que esta joaninha, tivesse vindo para
debruçar o poeta no parapeito do abalo sísmico de si mesmo. do poeta, conheço
o seu desejo fundo de ser bom. que anjos olham dos olhos de um homem
caído? o filho (travesti no motel impessoal a recordar o suburbano pai)
está longe. a mulher da sua vida, hoje anciã no asilo São Vicente de Paula
a mascar a dentadura do tempo em que foi alegre e cobiçada. e ele, só mais
um que rememora com fotografias da família e ninguém ama sozinho, é ilusão o que
não esqueço, o resto foi real, a memória resiste na umidade, no mofo que
agarra onde pode, a memória, falsificadora de quadros de água, não empoça
— onda que bate na orla e desmancha, esquecimento. o poeta é todo ele
esquecimentos, o que ama está diariamente sendo comido pelos cardumes de
peixes da mente. então penso: ele está mesmo certo, pois nem é estourada
feito a luz a memória, nem completamente escura, pode que um espelho
estilhaçado: grãos do indefinível, fagulhas de universos. necessário é ir
aonde somos ínfimos, olhar cada pedaço isoladamente, quem sabe, apalpar
algo do que um dia fomos sem comparação. lembrar não doeria se a lembrança não aprisionasse o que
esquecemos. o desespero da memória é reinventar esquecimentos. sim, pois o
futuro extremo é o fogo ou a
terra com suas bibliotecas de ossos.
cadê o Dinheiro?, quer saber o velho poeta. Dinheiro,
animal roxo de espasmos. Dinheiro, animal aberto de gritos. Dinheiro,
peito de cimento. ele diz é preciso
fazer mais uma vez a alegria, mesmo com Dinheiro, sucata ideológica,
franja na testa do búfalo, feridas em seu esôfago, tudo vira sopa, mas
mesmo assim, que a alegria.o velho não é direto. meus olhos passeiam pelas paredes carcomidas
da sala abarrotada de pastas e caixas de arquivos. daí tiro a carteira do
bolso e abro. conto as cédulas, em seguida alcanço o maço ao velho. ele
pergunta se minha sócia (Esperança?) é casada. meu filho também não é. seu filho trabalha aqui com o
senhor?, pergunto. espanto-me um pouco, pois há muito tenho sido mais
calado que os mudos. é bom ouvir minha voz. esqueço que sei falar. nunca
lembro de ser em voz alta. a mãe
dele se incomoda, viu, a coitada sofre de pressão alta, qualquer dia cai
dura. a mãe dele? a mulher do Asilo que não é. mas então quem, se o
velho é viúvo, se dura já caiu tem muito tempo, possivelmente, a mãe do
filho, o travestido. o senhor pode
me dar um recibo? claro, o
recibo, repete o velho. e procura com os pés os sapatos debaixo da
mesa. ele arfa. enquanto levanta da cadeira.
isso, o velho poeta, ele levanta da cadeira, corpanzil de quase
dois metros de altura e larga estrutura. lento paquiderme sem idade.
resurge de dentro de um dos arquivos. vou mostrar o meu tatu, ele tem
uma machadinha reluzente na mão. é ela, penso, a que será minha. ele
diz enquanto acordamos sob o sol, é
preciso fazer com fúria, é preciso limparentrar no chão com o olho.
mas eu só vejo o que se mostra. nada mais terrível. penso: quem vai morrer
de quem, eu dele, ele de mim? pobre criatura de Deus. os poemas que fez,
sangue a pingar de seus afagos. ser
feliz na fúria, diz o velho, juiz a extrair duras falas como unhas dos
próprios pés arrancasse. olho novamente para baixo da mesa, o tapete me enoja. o cabo é feito de casco de tatu,
diz e depois já esteve fuça a fuça
com um bicho destes?
inventa
(o texto inventa) que é um
velho sozinho. um mosquito o acerta na panturrilha. ele deixa que beba o
sangue e vá embora inchado. poderia tê-lo esmagado, quis saber até onde
iria. não me arranho, estudo o desconforto. igualmente
toleráveis sejam as invisíveis lesões, veneno do passado, também alívio?
por ser passado?. por que buscaria obter alívio? opção vã. a natureza
nunca está parada. a dor, parede com infiltração, comichão a percorrer
veias. o silêncio lateja e não deixa hematomas. se o mosquito tivesse
bebido um pouco mais teria estourado a si próprio, mas soube a hora de
parar (embora a natureza nunca pare). resta-nos algum futuro, diz para
si e ao mosquito. talvez o meu, de mão, seja mais trágico.
adoro o aço, diz o velho, tenho mais
de noventa facas em casa. súbito, estamos eu e ele numa fazenda, de
tocaia, espingardas em punho, com sussurros de vamos cercá-los e gestos
circulares com o braço indicando as direções. conheço bem este tipo, o
velho conversa, encanta os animais antes de abatê-los. adoro o aço e a pólvora, diz, também coleciono armas de
fogo.
para
a Esperança o hálito matutino é querosene. para a Esperança hoje é mais um
dia de caça, matar outro leão. penso: mão, de adeus ao poeta. sim, adeus
porque posso
querer esquecer, mas se esquece por aí mais
facilmente guarda-chuvas que amores. e se esquece, infinitamente, mais
canetas que guarda-chuvas. mas eu não. eu sou o melhor em encontrar
canetas para continuar escrevendo sob a chuva. posso querer esquecer, só
que escrever é lembrar do futuro. talvez por isso, para ainda me ensinar
algo mais, ele diz a idade é uma filha que tenho, e a
manhã seguinte, sempre essa insistência de ressurreição.
sou
uma mão horrível. sou uma mão que para nada serve. estou parecendo um
baiacu pescado. ninguém quer comer um baiacu, o peixe mais nojento dos
mares. penso nele morrendo fora da água. inchando e, depois de quase
explodir em sua febre gorda, alívio, graças a seu aspecto repulsivo, é
devolvido ao lugar de onde o tinham exilado. veja, não é só a beleza que
salva. ao contrário, a beleza em alguns casos é mesmo capaz de assinar a
sentença de morte. já a feiúra, que pode ser relativa, é sim do ponto de
vista comum uma espécie de condenação, especialmente se a pessoa não está
(mas quem está?) bem resolvida. no entanto, mesmo ela, a feiúra, pode
salvar vidas. funciona mais ou menos como um final feliz entre os
infelizes. decepe-me, maldito escritor. um baiacu na frigideira não é
alimento, mas veneno letal.
a
mão sua. lambo a palma salgada. olho para ela: as marcas, as linhas da
vida que espantaram a Cigana que me quis ler. tenho uma machadinha comigo.
lambo a lâmina. testo o corte de seu fio com a língua: suave. passo os
dedos. as pontas se mancham de vermelho. a mão chora não faça isso comigo. cale a boca. não, eu
imploro.
ele
diante dele preciso de um
favor. pois não, filho. o senhor coleciona armas. estou
ouvindo.
escândalos
são cuspidos. ferroadas de luz. choques fedorentos. pobre mão. com a
esquerda, não aplico a anestesia. ela corre o lado direito do meu corpo.
com a esquerda, a morta canhota que nunca falou, a canhota inábil. seguro
firme a machadinha. respiro fundo. minha testa pinga. a camisa está
molhada. a canhota, a única que não titubeia. é agora NÃO, grita a mão
selvagem, apavorada. o golpe certeiro. o barulho de veias: ossos e
cartilagens, plástico que se partisse. o sangue, terracota, ensopa a
página amarela do caderno aberto.
abril,
2013
Luiz Felipe
Leprevost (Curitiba/PR, 21/03/1979). É formado em artes cênicas pela CAL (Casa de
Artes de Laranjeiras/RJ). Escritor, diretor teatral (Cia. Teatro de Geada)
e músico. Produziu poemas, contos, novelas e dramaturgia. Autor do romance E se contorce igual um dragãozinho
ferido (Arte e Letra, 2011). Também publicou os poemas de Ode mundana (Medusa, 2006). E os livros
de contos Inverno dentro dos tímpanos (Kafka Edições,
2008), Barrasantipânico e barrinha de cereal (Medusa,
2009) e Manual de putz sem pesares (Medusa, 2011).
Integra as antologias de poesia Roteiro da poesia
brasileira, anos 2000 (Global Editora) e Peso
Pena (Black Demon Press). Poemas de sua autoria foram publicados
na revista Coyote, número 20. Tem contos publicados nas revistas Arte
e Letra, Jandique e Lama 1 e 2. Entre peças teatrais encenadas: Hieronymus nas masmorras, O butô do Mick Jagger, Na verdade não era. No
momento trabalha em sua nova novela, Dias nublados. Vive em Curitiba. Bloga
em www.notasparaumlivrobonito.blogspot.com.br.
Mais Luiz Felipe Leprevost em Germina
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