Rezo

 

 

Rezo

Através da masturbação diária.

Dedilho meu rosário óbvio.

E só creio em Deus

Quando gozo.

 

 

 

 

 

 

Alguma coisa sobre mim

 

 

Esqueleto de navios

Ancorados,

Naufragados nos meus rins.

 

Tratores devassam

Territórios hostis.

 

Gasto preces com

Defuntos ruins.

 

Minha vocação é para

Sicária ou prostituta.

Divino seria

Exercer em mim as duas.

 

Aspecto de noiva

Leprosa mendiga.

Cheiro a adolescente radioativa,

Açougue ao verão implacável do meio-dia.

 

Eu, a órfã voluntária,

Desde que sobrevivi ao aborto,

Respiro a vida através de poesia.

 

 

 

 

 

 

Duas Ninfomaníacas

 

 

1. Frida Kahlo

 

A androginia é um altar santo.

Lavoura profana ensaiando

Ser autopenhasco.

Na coluna vertebral,

Cano de espingarda.

No sexo, delicada

Papoula de aço.

 

 

2. Eva

 

Você não acredita em Deus.

Mas eu acredito em você.

Eva, é mentira.

Não me deixei ser seduzida.

Esmaguei a serpente,

Queimei

Árvore da vida.

Não sabia o que

Fazer com a nudez.

Quando desvelei suas febres,

Adão, maçã, Éden...

Quis tudo de uma vez.

 

 

 

 

 

 

Insana

 

 

Lisbeth Salander

Acompanha-me ao altar.

Sou uma noiva muito,

Muito prendada.

Tatuagem de cinta-liga,

Piercings nos mamilos,

Undercut, batom bicolor,

Anja de asas amputadas,

Mais o peso da alma.

 

Rezo pelas almas-penadas

Dos fetos dos orgasmos

Das mulheres infibuladas.

 

No mercado negro,

Dizem,

É possível trocar petróleo

Por óvulos de virgens.

 

Uma enfermidade

(Mediocridade burguesa)

Me impede de crescer.

A irrealidade da sombra.

Transmutação em Brecht.

 

Estou arraigada à uma flor

Que se desmancha

Assim que você a cheira.

 

Salto do mosaico coletivo

Para despossuir-me.

É a masturbação diária

A via pela qual confundo a política?

 

O ápice da mudança é rebelião.

O resto é sereno, chuva sobre incêndio

(Clichês como este),

Um sepultar de cadáveres e fezes.

 

Venha.

"Fazer a redenção da inércia."

Por toda a poesia,

Resolvo espalhar minha lepra.

Vendo-me assim tão noiva, rubra, poeta,

Não distinguirão se estou gozando

Ou tendo um ataque epilético.

 

 

 

 

 

 

Florescendo

 

 

"Trocam crianças

Por comida?"

Não, Kurt!

Trocam por desperdício.

 

O punho esquerdo

Erguido.

O destro dedo médio

Em riste.

 

Vou para a rua,

De burka,

Sem calcinha.

 

Luto para

Um país mais justo?

Luto

Porque espero

Tornar-me hermafrodita

Até o fim da vida.

 

 

 

 

 

 

Esqueleto de flor de aço

 

 

O amor me exaspera. Cálculo na uretra.

A felicidade, penso-a

Um calmo verde mar vespertino.

Mas o dia a dia, aquário com urina.

Mas o dia... mas o dia a dia tem aspecto

De um clitóris atado

A uma plataforma petrolífera.

 

Cadela, farejo

Os fósseis de cios ancestrais.

Flor nenhuma me alenta.

Hálito nenhum me dá paz.

Quem me dera me desferissem

Golpe de barra de ferro na cabeça!

A vértebra letal

Fendida;

Eu, entrevada para sempre.

Borboleta em escafandro?

Filhote de demônio marsupial

Abatido.

Só chegamos a Deus

Impelidos pelo câncer.

Fé proporcional à fome.

Guerra empoleirada nos ombros.

Eu, de minha parte,

Não trocaria minha

Genitália

Pela imortalidade.

 

 

 

 

 

 

Estudo de literatura

 

 

Eu, que sei que você

Quis dizer, sim,

(Quando corrigiu meu poema)

Que minha poesia

É uma poesia a um milímetro

Da obscenidade gratuita,

Penso no que, talvez,

Você pensaria

Se descobrisse

Que assisto

A sua aula sem calcinha,

Escrevendo ridículos sonetos românticos

(Enquanto codifico orgasmos nas entrelinhas).

 

 

 

 

 

 

 

 

Supérflua confessando

 

 

Já raspei meus cabelos

Em solidariedade

A personagens de novela

Que morreriam de câncer.

Mas o câncer delas era de plástico

E minha dor nunca foi cenográfica.

 

Já jejuei uma semana

Para entender a fome

De crianças africanas

Devoradas pela malária.

Mas minha fome a qualquer

Hora poderia ser morta.

E a delas era herdada,

Contagiosa e incurável.

 

Já quis ser mais alta

Mais loira e mais farta.

Apliquei piercing no nariz para ter

No mínimo alguma máscara.

 

Já agradeci ao Senhor

Por ter me concedido um Big Mac.

Mas hoje quando passo

Em frente ao McDonald's

Dou uma cuspidinha.

(Confesso que nessa hora

Eu gostaria de ser homem.

Tiraria o pau e oxidaria

A porta com minha urina vingativa.)

 

 

 

 

 

 

Cicatriz

 

 

Aquele gosto

Bom, doce,

Que tua boca

Me trouxe

Foi se enferrujando

Aos poucos.

Hoje, quando olho

Os lugares em mim

Que teus lábios habitaram,

Entendo que é

A ausência o que necrosa

Um coração exposto.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

(depois de ler Drummond)

 

Sei que nasci

Para esculhambar

Aqueles que se esqueceram

Do motivo

Que os levou a começar a caminhar.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Uma chuva tão fina

Que não demove o incêndio

De seu intento

De consumir-nos vivas.

Um ranger de violinos.

Tuas coxas

Aliciando as minhas.

Um emaranhado de fios elétricos.

Todos vivos, ligados.

Desencapados.
Brincando de pique-pega.

Eu levando minha água-viva doméstica

Para brincar com as patricinhas.

Para expor suas vísceras nojentas

Sob o disfarce cor-de-rosa.

Abaixo da nudez.

Abaixo da pele.

Quase na alma.

Tentando.
Antes que o que há

De nocivo na inocência

Nos dizime completamente.

 

 

 

 

 

 

Duo

 

 

1. Beckett

 

"— O absurdo me constrói".

"— A mim, Deus, também".

"— Amém!".

"— Ninguém".

 

 

2. Lars

 

 

Meu clitóris (...)

... tesoura enferrujada...

Agora!

 

 

 

[imagens ©jean-michel basquiat]

 

 

 

 

 

 

 

Nanda Prietto (Alfenas/MG, 03/05/1997). Autora do livro de poemas Princesa mas peçonhenta (ainda inédito). Mora em Poços de Caldas/MG. Fã de Nirvana, Björk e Pitty, gosta de coisas híbridas, por isso, pensa que é um Rimbaud-fêmea. Aliás, adora Rimbaud, Drummond e Kurt Cobain. É guitarrista-base na banda "Macacos & Donzelas". Estreou como uma das Escritoras Suicidas em outubro de 2013. Como toda garota alternativa de 16, crê que delicadeza é cilada, jura que é sobrevivente de um aborto e acha que sua sina é cuidar de flores sob escombros.