*

 

O cenário

Foi a morada da onça

 

A ópera triunfante

Arrancou os abrigos dos corações

 

Corações palpitantes 

Florestas virgens

 

 

 

 

 

 

*

 

Totalidade

Vestido de noiva

Pomba da paz

Magnólias a brotar

Nuvens flutuantes

Pétalas de margarida

Espuma do mar

 

 

 

 

 

 

*

 

Chove vermelho

A terra grita

O homem

Rasteja entre ratos e baratas

Tontas ao luar

 

Raízes despencam

Do céu ausente

Vertido ao chão

 

Chove

Chove ossos e risos

Ossos azuis

Ossos ossos

Cabides de poemas

Poeira de estrelas

 

Chove

Chove ossos

 

 

 

 

 

*

 

Granitos vestidos

Metros e metros de asfalto

Alinhavam a cidade guardada

Entre montes verdes

Entre muros cinzentos

Entre luares e pecados

 

Cidade de horizontes belos

Horizontes pintados aquarela de sonhos

Cidade de horizontes ferrugem do tempo

Luz memória

Cidade gritada na manhã

 

 

 

 

 

 

*

 

A rosa não rosa

A flor não flor

De cor não cor

Não perfumou

A dor não dor

Do fim não fim

 

A rosa não rosa

A flor não flor

De cor e dor

Não borrifou

Gota a gota

No lar

No ar

No mar

 

Não há mais flor

Não há mais rosa

Nem cor

Só dor

 

 

 

 

 

 

*

 

Silêncio

Calem todos os gritos

Silêncio

Calem todos os lamentos

Silêncio

Calem todas as bocas

Silêncio

Calem todas as orquídeas

Silêncio

Calem todos os rigores

Amores

Calem

 

 

 
 
 

*

 

Eu estou aqui a escrever vazio

Vazio sobre o vazio do tempo

da mente vazia

Estou aqui a escrever vazio

Sobre o mais profundo vazio

O vazio sem forma

O vazio sem bordas

Que escapa vazio

Dissolvido no vazio

dissolvendo vazio

 

 

 

 

 

 

*

 

A saia vermelha caminhou, subiu e desceu ladeira

Pendurou-se em grades, muros de pedra e de zinco

Pulou cerca de arame farpado

Banhou-se de chuva

Deitou-se sobre o verde

Arrastou-se pelas ruas e ruelas

Debruçou-se sobre janelas e varandas

Entrou e saiu das igrejas

Sobrevoou telhados

Diluiu-se na branca neblina

Deixou rastros cor de rosa pela cidade de ouro

E sumiu vazia.

 

 

 

 

 

 

*

 

Esta cidade

Ninho

Cercada de montanhas

Enraizada em ouro

Alimenta os que a habitam

Com a força

De deusa mãe

E crava amor

Como se fôssemos

Raríssimas joias

 

 

 

 

 

 

*

 

Vitória de Samotrácia

 

Desconectada

Parada

Armada

Magoada

 

Desesperada

Privada

Amada

Machucada

 

Disparada

Pesada

Adorada

Mirada

 

Desligada

Pirada

Atirada

Melindrada

 

 

 

 

 

 

*

 

a casa ainda exala o cheiro da fumaça

a fumaça que deixou marcas entre lembranças e memórias

a fumaça que se funde com o perfume da rosa rosa

desabrochada sobre a mesa

a rosa rosa beleza do meu pântano

 

 

 

 

 

 

*

 

Uma estátua de sal

 

Encontro de sais e cristal

 

Átomos e elétrons

 

Cristal semente

 

Átomos e elétrons

 

Cristal semente

 

Íons de sódio e potássio

 

Cristais em cores

 

Faces

 

Arestas

 

Vértices

 
 
 
[imagens ©francis picabia]
 
 
 
 
 
 
 
 

Regina Mello. Poeta e artista visual com formação multidisciplinar, divulga seus trabalhos em mostras nacionais e internacionais. Fundadora e diretora do Museu Nacional da Poesia (MUNAP), desde 2006. Curadora e idealizadora dos projetos "Galeria da Árvore", "Sementes de Poesia", Original — livro de artistas, coleção MUNAP, entre outros. Autora dos livros de poesia Cinquenta (Anome, 2010) e Passos Partidos (Anome, 2012). Publicou livros/escultura de poesia Livro de Vidro I e II, 2004/2005. Organiza e participa da Antologia de Ouro Museu Nacional da Poesia (Anome, 2010) e foi publicada na revista "Poesia Sempre" nº 35 (Fundação Biblioteca Nacional, 2010). Vive em Belo Horizonte. Publica seus textos e imagens na internet e bloga em http://reginamellobr.blogspot.com  | http://apoesiadassombras.blogspot.com.