*

 

 

quero sugar seu doce

sangue mas o seu veneno

quero me molhar na sua

lágrima e no desespero

transbordar e rirmos

quero suas minhas cores

de reluz mas as sombras

através do espelho

porque quero no além-tempo

conhecer suas entranhas

seus estranhos sonhos

mas seu pesadelo

também quero nas noites turvas

quentes sós escuras de chuva

também quero nas tardes mudas

frias seu pó nas puras imundas

quero comer o primitivo

desejo obsceno mas as suas rezas

quero emudecer o seu grito

emudecer no seu grito

e junto berrar contido

quero direito e pelo avesso

amargo delicioso azedo

delgado rugoso espesso

até seu tapa

então seu toque

quero inteiro

 

 

 

 

 

 

adivinha

 

 

colocar a blusa de lã

sobre seu ombro

aceitar o peso de seu corpo

preencher minhas mãos

com sua carne

(e roer seus ossos)

 

 

 

 

 

 

no quarto

 

 

no quarto mãe e filha:

no quarto dedos espertos

e um anjo dormindo

(de bruços no berço)

 

a mão da mãe invade

a colcha entre as coxas

 

no quarto mãe e filha

o anjo adormecido

e a solidão da mãe insone

numa cama para dois

 

vibram seus dedos no grelo

sua vulva sua

 

mamãe inquieta:

o orgasmo quieto

não desperta a filha

(são dois anjos dormindo)

 

 

 

 

 

 

*

 

 

troque-me as letras

mude-me as vírgulas

tire os pingos dos meus is

 

separe-me as sílabas

altere minhas crases

grite meus tremas

me piche

me joga na parede

e me chama de c cedilha

 

 

 

 

 

 

*

 

 

naquela noite pintei as unhas

(de transparente)

pra disfarçar

que eu era tão bonita

frente ao espelho

transparente

com meus olhos vermelhos

boca, pelo em flor

beijei seus lábios de vidro

e foi tão

(aperto firme as coxas)

foi tão quente

que me chorei toda

 

desde esse dia

levo como amuleto

uma lágrima no peito

transparente

 

 

 

 

 

 

uma tragédia urbana

 

 

ela que gostava de mascar chicletes

dançar bolero fazer top less

ela que não tinha medo de poetas

meninas coroas moleques

ela eu vi outro dia

catando estrelas em bueiros no Bresser

caçando rugas no espelho dum boteco

lixando suas unhas high tech

chorando pitangas

dançando de pileque

 

ela que tinha futuro pronto

curtia a galera vivia o momento fumava um beck

ela eu vi outro dia

fazendo ponto, encruzilhadas esquinas

véu na cabeça, barriga de menina

fugindo do hospício

buscando um convento

sim

foi ela que eu vi sim

alimentando pombos num beco aos tombos

 

aquela menina chupando drops

num domingo vadio

os olhos vazios

e cacos de espelho no bolso

 

 

 

 

 

 

côncavoconvexo

 

 

eu sou a mãe de Maria

sou um tigre roçando na rede

poeta que grita por socorro

mulher que despreza teu choro

lágrima na face do mundo

dentes no bico do seio

eu sou sangue na ponta dos dedos

sou eu quem escrevo meus medos

para melhor vivê-los

fui eu quem te chutou quando você veio

eu sou a mão que desenha

o corpo que desdenha

a alma que deseja

eu sou a gota da chuva

na folha

o barato sabão que faz

a bolha

a unha que te arranha

a cara que apanha

barriga de mãe

útero no tanque

último nó atado

eu sou quem te pede

sou eu quem te despede

quem te manda

quem te ama

a cara do feto na água quente

o sonho molhado o aquário

pés descalços no magma

pestanas abaixo

olhos vendados

o índio que pulou da ponte

a filha que cresce por dentro

por deus por amém o sagrado

a alma que lê pelos olhos

eu sou eu e mais ninguém sou

sou todos e tudo que já soou

silêncio

sou

 

 

 

 

 

 

*

 

 

apenas a lembrança

de um livro esquecido,

calor do toque no seio,

o vinho que escorria

da vulva e a boca bebia

 

lembrança da poesia

flutuando sobre as cabeças

enquanto liam.

a memória da janela

nublada que chovia

 

apenas lembranças da

máscara por trás dos óculos

da taça vazia, um castiçal

velho, parafina derretida,

fantasia atrás de fantasia

 

na estante o livro esquecido

o vinho bebido da vulva

já digerido, a máscara

arrancada da cara e a poesia.

apenas lembranças

 

 

 

 

 

 

*

 

 

exigente até

na hora de gozar.

ai gente!

assim não tem orgasmo

que aguente!

 

 

 

 

 

 

*

 

 

atrás dessa carne

mulher-esqueleto

farpas de ossos

garras no peito

 

atrás dessa calma

grito contido

sede de pescador

coração-cacto

 

atrás dessa alma

palavras-não-ditas

sexo partido

sangue espesso

 

atrás dessa rocha

fraga fragata

olhos laser

navalha na carne

 

atrás dessa dama

lascas sob as unhas

coração arrancado

esguicho de sangue

 

atrás dessa morte

lágrimas em taça

de cristal seu sal

corpo refeito em vida

 

meu alimento

 

 

 

 

 

 

*

 

 

não serve

tua falta de gozo

 

não serve

tua continência

 

não serve

teu riso infantil

 

só te serve

a solidão

 

essa rabugenta

 

só a solidão

te aguenta

 

 

 

 

 

 

*

 

 

cotidianamente

satisfeita

financeiramente

estável

equilibradamente

pacificada

rotineiramente

feliz

deliberadamente

profissional

instantaneamente

salada

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©nancy standlee] 

 

Tatiana Fraga é poeta e jornalista. Idealizadora e gestora cultural do Espaço de Leitura no Parque da Água Branca, foi Diretora do Projeto PraLer - Prazeres da Leitura e Diretora Cultural da Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura. Como jornalista, foi editora, redatora e repórter de revistas de segmentos variados. Autora dos livros Nino e Nina (Mundo Mirim, 2012), Brasa (Dulcinéia Catadora, 2009), Espelho (edição da autora, 2008) e Pitangas (edição da autora, 2002). Coautora dos livros Poetas da Escola (Cenpec, 2009) e A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski (Lamparina, 2004). Foi professora especialista em poesia para crianças, ministrou oficinas e participou de diversos eventos de poesia e recitais.