Mistura-se

 

 

Mistura-se.

Metaesquemas de Hélio.

Amores líquidos de Bauman.

Belezas platônicas.

Verdades superficiais.

Etnocentrismos em subterfúrgios,

aparentemente tão escondidos.

Rompimento de tratados.

Mitos criados em tardes abafadas

de um domingo.

Azuis desejos de Drummond.

As comas nas cordas de um violino

que nem toca.

A mesa posta com o que tem.

A esperança tão imbuída

de coragem,

que é músculo,

ossos,

pele.

Que é falta alegre

de vir a ser

algo

que ainda

nem vem.

 

 

 

 

 

 

Sonho

 

Salta:

molha a boca da ponta

acesa em diamantes.

Vagalumeia.

 

Cala.

Ri do fundo

do horizonte.

Igual a um astronauta.

 

Embala

a lua cheia.

Para que ela não

caia.

 

Descobre

o cordão de prata.

Regateia.

O natal chegou antes.

 

 

 

 

 

 

Declaração

 

Tem dias em que o ar

está por demais pesado.

E o avião,

por descrença,

leve.

 

 

 

 

 

 

A hora mágica da tortura

 

A hora mágica da tortura:

quando já não nos importamos mais.

Feito turistas às vésperas da partida,

a sentir inteiros o que é brevidade,

junto a um alívio ingênuo de retornar.

Feito mocinha em rua escura,

sem casa para se abrigar.

Feito a fome, diante do

bolso sem trocado,

da carteira sem dinheiro,

e sem nenhum talvez, mas, ou olhar.

 

 

 

 

 

 

Folhas de amoreira

 

São quase sete da manhã nesse tempo inventado, e parece que hoje o céu será cinza. Meu corpo, castigado por insônia.

Meu cérebro a intentar maneiras de não sucumbir ao espanto de ver mais uma vez como, quando frágeis, somos derrubados.

Estudo sobre sericicultura, e dói saber que para haver seda, é preciso que a mariposa morra.

Técnicas milenares de tortura, rotas de viagem a durarem ao menos seis anos. O humano em sua infinita capacidade predatória.

Você diz que tudo acabou, que nada dará certo, e eu desacredito. Um de nós deve manter a lucidez de saber-se vivo. Estou pronta para o recomeço, não queimarei em água. Veja: precisamos de tão pouco! Apenas que nos deixem ser casulo, e depois nos deixem mexer as asas.

Nua, como a palavra deve ser, você diz. A rua, a lua, temos de graça.

Corro atrás de folhas de amoreira para nós dois.

 

 

 

 

 

 

Esconderijo

 

Vontade de me enfurnar numa flauta transversa intocável.

 

 

 

 

 

 

História boba e sem graça

 

Foi com sede ao pote.

Porém lá o que havia eram torradas.

No susto, deixou-as cair.

Esfareladas.

Catou-as do chão e comeu-as mesmo assim.

Sem sentir o gosto,

e sem sentir nada.

Não sorriu.

Mas também não derramou uma lágrima.

 

 

 

 

 

 

Sobre domingos e segundas

 

Domingo é dia de esquecer memórias. Pois justamente aos domingos, todas se reúnem à nossa volta, desde o café da manhã até a hora de dormir, por mais que as mandemos embora. Então penamos por horas, para aprender a ter olhos de não ver.

 

Segunda é dia de resolver pendências. Pois a vida é sim um mar de rosas: para cada flor, infinidades de espinhos, a castigarem braços, pernas, costas, falas, almas. Às segundas, reaprendemos a nadar. As feridas mal curadas dos últimos dias, renascem sem piedade. O oceano é imenso; não há margens, tampouco encostas.

 

Saudade é todo dia. Felicidade, dia nenhum.

 

 

 

 

 

 

Mau humor

 

O mar acordou de ressaca.

As ondas parecem chuvas.

O lodo,

revirado em água suja,

choro.

Tanto sal.

 

 

 

 

 

 

Resposta

 

Responder dor com dor é fácil,

cômodo

e pequeno.

 

O desafio é despisotear flores.

Catá-las do chão,

prender nos cabelos.

 

 

 

 

 

 

Agonia

 

Correndo, correndo, correndo por pântanos.

Trago margaridas nas mãos.

 

 

 

 

 

 

Aponto minhas armas em direção à felicidade

 

Aponto minhas armas em direção à felicidade, e digo: renda-se!

Não importa se já é tarde para o brilho do novo.

Se sou louça lascada, ou envelope devolvido de carta.

Resisto.

Tomo um banho de chuveiro, escondida do frio, mesmo em água gelada.

E outro de tristeza, sem capa ou guarda-chuva, sem nada.

O estado natural do sangue é quente, e líquido.

Você, afogado em tempestade, nem vê.

Faço fogueira da minha vaidade:

queimo-a inteira.

E insisto. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©salvador dalí]

 

 

 

 

Thamar de Araújo. Memorialista. Pintora. Publica seus escritos no blogue Memorial de Lilia [www.memorialdelilia.blogspot.com.br]. Mestre em Psicologia Clínica. "Mamãe falou que eu faço um bruto sucesso em Quixeramobim".