Afinal de contas, qual vem a ser exatamente o significado do termo balzaquiano? O dicionário Aurélio nos ajuda: S. f. Mulher de trinta anos, ou mais ou menos essa idade. Adj. 1. Relativo ou pertencente ao escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850), ou próprio dele. 2. Que é grande admirador e/ou conhecedor profundo da obra desse escritor. Ao entrar para o dicionário, um termo já adquiriu um sentido  maior  ou mais específico do que o que lhe originou o significado. Se algo dantesco é geralmente um fato que se relaciona a apenas uma das três partes da Divina Comédia de Dante Alighieri ( apenas o Inferno, pois  o Purgatório e o monótono Paraíso, via de regra, não são contemplados nesta definição), podemos inferir também que o termo balzaquiano não é capaz de abranger toda a extensão da obra do autor francês Balzac.

 

Gostaria, portanto, de discordar da definição que o dicionário propõe para o termo balzaquiano. Embora o título da obra de Honoré de Balzac aponte para as  três décadas vividas pela mulher, os trinta anos "metonimizam" todo o caminho percorrido durante uma vida feminina. A mulher de trinta anos, portanto, não é apenas a mulher madura e experiente que sabe o que quer; a mulher de trinta anos é a mulher de todas as idades. A mulher de 30 anos não tem apenas uma idade — ela traz em si toda a complexidade e dinâmica históricas presentes no sexo feminino. A mulher de trinta anos não está completa: ela continuará a ter trinta anos todos os anos, pois os trinta anos são sempre este ano.

 

Balzac é um grande manipulador da linguagem e utiliza ferramentas linguísticas com o prazer de um artesão. Seu texto é descritivo e detalhista: mais do que escrever, ele pinta as palavras. Ler A Mulher de Trinta Anos é como apreciar um quadro — não a pintura de uma paisagem impressionista de Van Gogh: o livro está mais próximo do expressionismo presente no quadro "O Grito", de Edvard Munch. As descrições são sempre ricas em adjetivos que oferecem emoção (muitas vezes a emoção única, mais forte em P&B) em cenas metafóricas, como a inicial, que realça a coragem e a alegria de Julia ao chegar com seu pai ao Palácio das Tulherias, não para admirar o imperador Napoleão, que ali se encontra, mas para apreciar a beleza e a virilidade daquele que seria seu marido (contra a vontade do pai de Julia), Vitor DÀiglemont: "alto, bem-feito, esbelto, seus belos dotes físicos eram principalmente dignos de admiração quando empregava sua força em governar um cavalo cujo dorso elegante e ágil parecia vergar sob ele". O leitor enxerga Vitor com os olhos adolescentes da moça Julia. É, portanto, um olhar idealizado, que pisa em falso e que não admite intervenções que  questionem sua veracidade. É um olhar absoluto, que só será destruído, para Julia, de maneira cruel por imposição de fatos que negarão a imagem inicial pintada por Balzac. A trajetória de Julia — de moça a mulher, a mãe, à chegada dos trinta anos, à depressão, à fascinação de uma nova paixão, à competição com a filha, até a velhice de uma mãe culpada — é pautada por uma linguagem que é úmida e poética e que, justamente por ser pensada e artesanalmente trabalhada, acaba sendo veículo de uma monotonia que se reflete na própria vida sem ambições da protagonista. Observe, por exemplo, como Balzac escolhe minuciosamente as palavras e as força sobre Julia para enfatizar sua tristeza: "Apreciava agora a vida como um ancião prestes a deixá-la. Apesar de se sentir jovem, o peso dos seus dias sem alegria caía-lhe na alma, esmagava-a, envelhecia-a antes do tempo". A linguagem pesa, como pesa sobre Julia a vida (como são também, muitas outras vezes na obra, leves, tanto a vida como a linguagem que a descreve).

 

Julia é a mulher do título. Julia é a mulher francesa do século XIX, de todos os anos; Julia é a mulher do mês de julho da Revolução Francesa, é a mulher que desabrocha (com a burguesia) primaveralmente já nas primeiras páginas do livro. Ler A Mulher de Trinta Anos é mergulhar, sem oxigênio, no universo feminino, delicadamente descrito por Balzac. O escritor francês é, ao lado de outro francês, Gustave Flaubert, e do brasileiro Chico Buarque, um dos poucos homens que conseguiram traduzir a alma da mulher (embora Julia seja uma Ema Bovary mais contida). Ouvimos o que Julia sente, portanto, filtrado pela sensível voz masculina do autor. Balzac olha a figura feminina e dá a ela uma voz interior, descrevendo suas alegrias e suas angústias, dividindo com o leitor os segredos de Julia diante da vida. Neste sentido, a obra se aproxima das antigas cantigas de amigo, da Idade Média, pois a mulher é descrita com detalhes psicológicos pelos olhos de um homem. Balzac despe a alma feminina e enxerga nela uma nudez cheia de vícios e virtudes. Julia é séria candidata a capa de uma imaginária Playboy literária.

 

Uma mulher, retratada pela pena de um homem, não se mostraria por inteiro se tal retrato não abordasse a sua relação matrimonial, definida como por Balzac como "prostituição legal". O início da vida amorosa de Julia se dá com Vitor, um militar. E é justamente o bélico, não o belo, o que vai caracterizar a relação dela com o marido, já que, antes de reservar ao já cônjuge raiva e  indiferença, para ficar com Vitor, declarou guerra ao pai e, por conseguinte, a toda a hipocrisia da sociedade burguesa na França, que enxergava no casamento o fim supremo para a felicidade e objetivo maior de uma pessoa. A tia de Vitor, a Marquesa de Listomère, é porta-voz desta hipocrisia ao tentar converter Julia às doutrinas monárquicas do século de Luís XV com argumentos como: "Desde Eva até nós, o casamento foi considerado uma coisa tão excelente". Vemos em Balzac que o casamento é algo com o qual a mulher tem que se conformar; é uma idealização da felicidade. Por isso causa em Julia, ao se ver apaixonada por outro homem, uma sensação de deslocamento social e espiritual, causa essencial de seu sofrimento: "Sofro e tenho vergonha de sofrer, vendo Vitor feliz com o que me mata". A felicidade de Vitor é burocrática, e Julia não deseja tal felicidade: se recusa a carimbar um selo em seu coração. Paga, por isso, um preço alto: vê ali não a tinta azul do carimbo que a sociedade exige, mas o vermelho-sangue que pulveriza o seu ser até o final. O fato de Julia se apaixonar, em seguida, por um médico, Artur (que contém no nome, em português, o "ar" que tanto falta a ela), não deixa de ser uma indicação de que ela busca nele uma "cura" para a doença que lhe corrói a alma: a melancolia causada por um casamento frustrado.

 

O grande conflito interno, que sustenta a narrativa em A Mulher de Trinta Anos, é definido com precisão cirúrgica pela protagonista, quando se refere à resistência ao amor por Artur: "Combati o amor involuntário ao qual não deveria ceder". Não há como acrescentar uma vírgula nesta precisa passagem. Aqui Balzac toca no mais forte e avassalador dos amores (frequentemente considerado, especialmente no Ocidente, "O" amor hoje no século XXI): aquele que sentimos independentemente de nossa vontade. Neste caso, não parece haver lei nem sociedade que consiga proibi-lo sem criar traumas. E Julia torna-se o grito sufocado de uma legião que se reconhece nela até hoje. Aí, talvez, resida a força desta obra, que busca racionalizar o sentimento, busca "afugentar o fantasma da razão", nas palavras de Balzac. A razão, aliás, na França do século XIX, é a base que tenta (sem sucesso) sustentar a sociedade.

 

Há, nesta tentativa de racionalizar o sentimento, a explicitação do conflito que gera o grito, pois mostra a impossibilidade de conciliação de opostos: "A razão é sempre mesquinha comparada ao sentimento. Uma é naturalmente limitada, como tudo que é positivo, e o outro é infinito". Tal batalha também é representada quando ela se vê, como mulher, travando um duelo com o tempo, já sugerido no próprio título, que ela define muito bem aos trinta anos, quando olha para trás e projeta o caminho que lhe aguarda na frente: está segura do que quer ao mirar na certeza de seu passado, mas apoiada na total incerteza ao apontar para o futuro.

 

O conflito de opostos é parte de um movimento magnético, presente nesta narrativa de Honoré de Balzac, em que os personagens representam os pólos de um imã: ora se repelem, ora se atraem. Julia e Vitor certamente são de polaridades iguais; a aproximação de ambos é uma fagulha que explode em repulsa. E a repulsa em Julia pula para a melancolia, e daí para a busca de um pólo diferente. É nesta estrada imantada que a menina se torna adolescente, se torna mulher, se torna mãe, se torna amante, se torna velha. E o leitor pode enxergar em cada uma delas a mulher de 30 anos, que segura uma luneta, que ora aponta para o passado, ora para o futuro. O movimento está explícito nas idas e vindas psicológicas do humor de Julia e pode ser traduzido, por exemplo, na seguinte passagem, com ênfase nos substantivos (grifos meus): (Julia) "tinha pelo marido essa compaixão vizinha do desprezo que destrói com o tempo todos os sentimentos". O movimento bipolar com que Julia pendularmente caminha é também simbolizado nesta poética observação do narrador: "O céu e o inferno são dois grandes poemas que formulam os dois únicos pontos sobre os quais gira a nossa existência; a alegria ou a dor". Poderíamos afirmar, portanto, que o balzaquiano é um tanto dantesco também. Pelo menos por mais trinta anos.

 

 

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O livro: Honoré de Balzac. A mulher de 30 anos.

Porto Alegre: L&PM, 1998.

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dezembro, 2014