*

 

 

Hoje, também os carros dançam. As casas movem-se levemente. E eu — que mudei de casa e de roupa, de cidade e de cama, de palavras... Eu, que mudei de música e de carro, de saudade, de quarto... Eu — que mudei de computador e de rua, de eternidade e de paisagem, de abraço e de clima... Eu — que mudei de língua e de lágrimas, de deus e de caderno, de crenças e de céu... Eu — que mudei de lume, que mudei de medos... Eu — que mudei de planos, de lençóis, de secretária... Eu — que mudei de óculos e de rumo, de amigos, de champô, de rituais e de supermercado... Eu — que mudei de tudo que em quase nada mudou, mudei de dentro de mim para dentro de ti, meu amor.

 

 

[Do livro Talvez os Lírios Compreendam. Ed. Cadernos do Campo Alegre, 2004]

 

 

 

 

 

O PRINCÍPIO DO AMOR

 

 

As pessoas ordenavam-se mal.

Ordenavam mal

o princípio do amor, da cidade.

Faziam filas (e filhos) à porta.

 

Ordenavam-se talvez

como quem conhece o trajecto

para casa.

Sonâmbulas, repetidas:

ordenavam, ordenavam.

 

Algumas enlouqueciam

pacientemente à porta,

antes de entrar.

 

Entende: ordenavam-se

tão sem desordem

nessa espera

que algumas morriam

imediatamente à porta

logo que entravam.

 

 

 

 

 

 

O PRIMEIRO HOMEM



Era um homem viciado na luz.

As mulheres que diziam "o homem, o homem"

levantavam-se ou levantavam os olhos

ofuscados e repetiam o homem

e apontavam confusas para dentro do olhar

do homem.

O homem achava estranho que elas

dissessem apenas isso: "o homem",

e um dia disfarçou-se de mulher

para se esconder da luz.

 

Da primeira solidão do homem

ninguém falou.

Ninguém repetiu

a primeira solidão do homem.

 

 

[Poemas do livro A Cidade Líquida e outras texturas. Deriva, 2006]

 

 

 

 

TRAINDO O POEMA

 

 

Juro: eu tinha prometido não escrever

este poema. Não gosto de supermercados,

nem de poetas de supermercado, mas hoje enchi

a casa de manteiga e não pude evitar uma sensação

de metáfora, uma ironia a escorregar-me nos dedos

como anúncio de contemporaneidade. Juro: eu não preciso

de tantas embalagens, nem preciso deste poema,

mas há tantos dias que não posso tomar o pequeno-almoço

na minha casa sem manteiga, sem poema, que hoje enchi-me

de coragem para tudo isto.

E juro: apesar da traição, sinto-me hoje mais

contemporânea

do que nunca.

 

 

 

 

 

 

O MEDO

 

 

Não tenho o hábito dos cafés, nunca tive,

mas aquele ficara-me de um livro de Al Berto.

 

Eu falava do medo, não do medo de Al Berto,

do meu, e a minha amiga dizia-me qualquer coisa

amiga. Falávamos de amor, e ela talvez me dissesse

para não ter medo do medo de Al Berto

nem do meu.

 

Confesso: de tudo o que me disse a minha amiga,

ficou-me apenas a palavra

granito.

 

 

 

 

 

 

DO MEDO EM DIANTE

 

 

Trazia a novidade de não ter medo

de descer a rua e atravessar a sombra

dos prédios atirada como arma

de granito, como festejo de civilização.

Perdera subitamente o medo do seu século,

do século que se vivia naquela rua

onde alguns se morriam à injecção,

do século das luzes dos seus vizinhos

a apagarem-se ao mesmo tempo

sem nunca terem trocado nada que não

essa distância de garagem, essa coincidência

dos horários civilizacionais.

 

Trazia a consciência de ser europeia

(África doera-lhe nos olhos como holofotes)

e de não querer escrever sobre esse assunto.

Mas não ter medo de descer aquela rua,

não ter medo de apagar sozinha a luz àquela hora,

não ter medo de nunca estacionar o carro na garagem

e de estar por isso sempre mais só do que os vizinhos,

 

pensava,

 

era suficientemente novo

para o poema.

 

 

 

 

 

 

SMS

 

 

Porto. 20h. Ninguém canta.

 

 

[Poemas do livro O Problema de Ser Norte. Deriva, 2008] 

 
 
 
 
 

*

 

 

Eva abriu a arca. Dela retirou o pó e a serpente em forma de coração. A nudez de todas as coisas começou a assombrá-la. Percorria a pele com aquela forma indefinida. Colocou-a sobre a árvore como se a coroasse. Depois sentou-se, e chorou. Sentia um profundo cansaço. Não dormira durante muitos dias, porque quisera estar atenta. Tão atenta. Agora não sabia descansar. Não sabia como ocupar o espaço. Não havia, em suma, um lugar que não fosse dessa árvore que se tornara branca como as paredes e as maçãs agora apodrecidas a um canto, gastas.

 

 

 

[Do livro A Inexistência de Eva. Deriva, 2009]

 

 

 

 

 

*

 

 

Apareceu para jantar no Vale Formoso um pianista.

O pianista trazia a mulher pianista, o filho

que preferia jogar às cartas, e um grande saco de maçãs. 

 

À refeição, servida no alpendre, contou que vivia no campo

e que procurava em Lisboa uma casa onde coubesse

com a sua mulher, o filho de ambos, e três pianos.

 

Fiquei preocupada com a família do pianista

— eram três —

e com a família de pianos

— eram três —

e pareceu-me melhor avisá-los de que seria difícil encontrar

uma casa onde coubesse tudo aquilo

e a macieira.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

No Vale Formoso, vou fumando cigarros,

vou tomando cafés, vou fugindo das abelhas,

vou fazendo de conta que aprecio

a natureza.

 

No Vale Formoso, vou aprendendo o caminho

para o mercado, vou comprando fruta, vou pesando

o peixe.

 

No Vale Formoso, vou escrevendo versos,

consciente porém de que seria mais fácil conquistar-te

com uma caldeirada de raia

do que com o poema.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Antes de vir para o Vale Formoso,

convidaste-me para almoçar.

Eu já tinha almoçado mas era tanta a vontade

de te ver que lá fui contigo comer chocos

com tinta.

 

À mesa no Vale Formoso, e sem fome, às vezes

punha-me a pensar que poderia não ser amor,

mas era certamente alguma coisa séria

o que me fazia almoçar duas vezes

no mesmo dia.

 

 

[Poemas do livro Vale Formoso. Deriva, 2012]

 

 

 

 

 

ESTÁTUA DA LIBERDADE

 

 

E ali estava — nós a atravessarmos de barco

a alegria: o pai ainda de bigode, de chapéu castanho,

a mãe de óculos e écharpe, a Marta que em breve seria mãe também

mas não sabia que transportava no útero mais um passageiro,

o Miguel, pequenino e corajoso, sempre a tentar que os pés não doessem

de tantas avenidas, e o João Pedro, tão recém-casado, tão recém-feliz,

tão quase pai também sem o saber;

nós ao sol, de costas para ela, de frente uns para os outros, pressentindo

que Nova Iorque só interessaria por ali termos estado muito juntos,

e que na passagem dos anos apenas isso importaria, apenas isso:

termos ali estado distraídos, sentadíssimos, confortáveis

como os nossos corações.

 

E de repente ali estava ela a imitar os montes, de um verde indecifrável,

ali estava a imitar os homens invadidos, pesada, com picos na cabeça,

de braço esticado a tentar a luz, de livro pendurado,

ali estava séria, muda, quieta,

toda feita de pausa como um susto, como se jogássemos mímica,

como se a seguir nos pregasse uma partida, um grito,

e desfizesse a pose e risse de boca muito aberta à brincadeira,

livre então dos curiosos que empunhavam câmaras como se vê-la

assim, parada e incapaz, fosse espectáculo digno de registo.

 

Nós a chegarmos à ilha, a desembarcarmos do alheamento,

nós do tamanho familiar, todos de cabeça ao alto na inacessível sombra,

nós a rirmos das pessoas que lhe descobríamos na cabeça,

eles literalmente à varanda da cabeça, os visitantes,

ignorando que um futuro dia de Setembro inibiria aquela subida aos céus.

 

E ali estava ela de nariz empinado, recusando o gesto de anfitriã:

 

alta e ofendida

estátua

que era preciso limpar.

 

 

[Publicado na Revista Egoísta, 2010]

 

[imagens ©laurie kaplowitz]
 
 

 

Filipa Leal (Porto/Portugal, 1979) formou-se em Jornalismo na Universidade de Westminster, Londres, e concluiu o Mestrado em Literatura (Estudos Portugueses e Brasileiros) na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Publicou o seu primeiro livro, lua-polaroid (ficção), em 2003, e estreou na poesia no ano seguinte com Talvez os Lírios Compreendam (Cadernos do Campo Alegre). Seguiram-se, na editora Deriva, A Cidade Líquida e Outras Texturas, O Problema de Ser Norte, A Inexistência de Eva (finalista do Prémio Correntes d'Escritas) e Vale Formoso (2012). Foi, durante três anos, jornalista e locutora residente do programa Câmara Clara/Diário Câmara Clara, da RTP2. Fez uma passagem pela Rádio Nova, foi editora do suplemento "Das Artes, Das Letras" no jornal O Primeiro de Janeiro e, mais recentemente, da revista da Casa Fernando Pessoa. Colaborou também com a revista Os Meus Livros. Integrou o projecto LEM (Lisboa, Encruzilhada de Mundos), na Câmara Municipal de Lisboa, participando na produção e divulgação do Festival TODOS, entre outros. Depois de um ano de formação no Balleteatro do Porto, começou a participar, em 2003, em recitais de poesia no Teatro do Campo Alegre (Porto), ciclo Quintas de Leitura, e desde então tem feito leituras com regularidade (CCB, Casa Fernando Pessoa, Casa da Música, Teatro São Luiz, etc.). Tem colaborações dispersas em vários jornais e revistas (Egoísta, MeaLibra, INÚTIL, Colóquio Letras, Textos e Pretextos, entre outras). Está representada em antologias em Portugal (destaque para a edição de 2012 da FNAC, O Prazer da Leitura, com o conto "Isabel") e no estrangeiro (Itália, Croácia, Galiza, Colômbia e Venezuela), e o seu livro A Cidade Líquida e Outras Texturas foi recentemente publicado na Espanha, em edição bilingue, pela editorial Sequitur. Em 2010, teve um dos seus poemas exposto no Metrô de Varsóvia, na iniciativa "Poems on the Underground" e, já em 2012, representou Portugal no Festival de Poesia de Berlim. Em 2013, depois de um curso de Guionismo na Faculdade de Letras do Porto, escreveu e encenou a sua primeira peça de teatro. Morrer na Praia estreou em Lisboa, no Teatro Rápido, e passou pelo Teatro do Campo Alegre, no Porto, tendo sido vista por mais de 700 pessoas. Atualmente, está a coordenar, com Inês Fonseca Santos, o ciclo de conversas "Os Espaços em Volta" na Casa Fernando Pessoa.