Chagas

 

 

Chagas emasculou quarenta e dois meninos

Chagas desmentiu o laudo pericial

que indiciava pancadas na cabeça

Chagas disse que não extirpou os órgãos sexuais

nem fez uso do sangue dos meninos

Chagas seguiu com um dos garotos

para colher o fruto do açaí

de seguida lhe tirou as roupas

e as colocou em um buraco

a cinco metros do local do crime

Chagas não escolhia vítimas

mas oportunidades para fazer o mal

 

Chagas, está preso

nunca mais vai arrancar

pedaço de mãe

que não pode ser reposto

 

 

 

 

 

 

Liturgia

 

mesmo que seja eu,

no auto-retrato,

à frente do espelho

 

é no olhar do outro

que determino

a passagem das horas

 

 

[do livro O relógio avariado de Deus. Portugal: Edições Pasárgada, 2011]

 

 

 

 

 

 

casa

 

 

a casa com desenhos pueris

vive nos dedos de uma criança

mas esta já não é a minha casa

 

a minha casa desenha-se com cheiros

pequenos destroços de homens e mulheres

simples, que moram e morrem nela

 

a minha casa alberga

violência à porta e beleza à janela

(cartão postal estranho: sangue e arco íris)

 

mas é aí que vivo, divido, diviso

uma cidade de águas e tantas vezes duvido

que o pesadelo também faz parte do sonho

 

apesar disso a minha casa tem uma cara feliz

e uma melancolia doce escondida

no silêncio das suas ruas de luz

 

 

[do livro O relógio avariado de Deus. Portugal: Edições Pasárgada, 2011]

 

 

 

 

 

 

*

 

o que se passa

ignoro

 

da tua pele macia

sei do fruto intocável

 

do teu beijo

sei que outra boca desfrutas

 

sei do teu sexo

pela subtração dos corpos

pela imaginação do voo a solo

 

 

o que se passa

ignoro

 

só sei do impasse que paralisa

só sei que não sei o que dizer

àquele que me faz levantar

nos dias em que o sol sorri

 

(é mais dorido o azul

quando lá fora o dia lindo

sobeja e não tenho

a chave do cárcere)

 

sigo

ou olvido de vez

este relógio que por vezes

abre uma janela?

 

o que se passa

ignoro

 

só sei que o silêncio

é resposta que baste

 

 

[do livro Insulares, inédito]

 

 

 

 

 

 

*

 

verso algum

com linha costura

 

e não há quem dele

traduza

 

a faca o corte o amor

no seu lume

 

o inferno o fogo o norte

que em si sucumbe

 

 

[do livro Insulares, inédito]

 

 

 

 

 

 

o cofre

 

 

o que guardo no coração?

 

pedaços de bilhetes para muitos lugares

pedaços de bilhetes para muitos lugares na memória

pedaços de bilhetes para muitos lugares na memória

que eu não quero esquecer

 

tampinhas de Coca-Cola com a bandeira do Brasil

tampinhas de Coca-Cola com as bandeiras dos países da América do Sul

tampinhas de Coca-Cola com as bandeiras de todos os países do Mundo

(muita Coca-Cola eu bebi, meu Deus, por causa das bandeiras)

 

a caixa de costura em madeira da minha mãe

a caixa de costura em madeira com a minha coleção de ostras

a caixa de costura em madeira com os barulhos do mar

a caixa de costura em madeira que a minha mãe silenciou na lata de lixo

 

o que guardo no coração?

 

andar de bicicleta na rampa do mercado de bairro

o braço partido na rampa do mercado de bairro

a bronca da mãe que avisara sobre a rampa do mercado de bairro

o gesso assinado do braço partido na rampa do mercado de bairro

 

o poema que fiz para Alice

o poema que entreguei para Alice à porta do bar na Rua Farani

o beijo na boca que ganhei de Alice por causa do poema

 

a descoberta com a prima do algo proibido

a chinelada no rabo por causa do algo proibido

o elevador da batcaverna no improviso do poste da rua

a chinelada no rabo como prêmio pela minha queda do poste da rua

 

fumar escondido na casa de banho das meninas

fumar sem a chinelada no rabo

a minha mãe nunca soube do cigarro

nem das meninas

 

o que guardo no coração?

 

é bem mais do que consigo guardar numa vida de papéis

não cabe nesta página ou na caixa de sapatos

arrumada num canto qualquer da despensa

está algures, sépia, vivo e por vezes fechado

em cofre há muito esquecido

 

o que guardo

não é como uma fotografia de Itabira na parede

mas como dói

 

 

[do livro Poemas infantis para quando eu for grande, inédito]