Teimosia

 

 

Um gerânio resiste

Tardio, à janela.

 

O tempo move

agreste

a engrenagem azul

das horas.

Permanência é ilusão.

 

No abismo cíclico,

auroras já de há muito

indigestas, gritam.

 

Amarelos apodrecem

Galinhas ciscam

Sóis caem

Lagartixas deslizam

Céus se abrem.

 

Só o gerânio se esquece ontem.

 

 

 

 

 

 

Frágil

 

 

Por dentro

nunca fui rocha

 

Infindável tocha

foi o que pude

 

Queimei-me

para esculpir nos olhos

o rude.

 

 

 

 

 

 

Metamorfose

 

 

De tanto nascer

as coisas pesam

 

Depois ossam

Depois rareiam

Areiam

 

Até não mais ser.

 

 

 

 

 

 

Delicado

 

 

Não se desliza pela flor do jasmineiro

sem desgrenhá-la,

 

rompê-la em pistilos e pétalas.

 

O toque, se não o do vento,

é sempre imperfeito.

 

Toda mão tem medo da flor que ama.

 

 

 

 

 

 

Sertão

 

 

a Guimarães Rosa

 

 

Aqui onde moram as veredas

e onde o rio

gargantua com o Cosmo

 

Riobaldo ainda grita por Diadorim:

      

Diadorim não vem.

Diadorim anjou!

 

 

 

 

 

 

Benzedura

 

 

Quando um estouro de cigarras

anuncia tempestade e o ar torna-se irrespirável

ainda vejo, tremendo no meio da tarde

de um remoto setembro,

estendidas ao céu do nunca mais,

as mãos de meu avô.

 

Em seus lábios murmúrios afastavam

a negritude das nuvens.

 

E ele a me mostrar, quase rindo, as nesgas de azul:

— um dia ainda lhe ensino a assoprar nuvens.

Aprendi saudade.

 

 

 

 

 

 

Permanência

 

 

Ainda aqui, sem saber o que faço

com o teu corpo,

de outra manhã,

que enlaço

 

como se fosses

o infinito a dançar

sobre um grão de girassol

 

 

 

 

 

 

Estéril

 

 

Agora o sal

da palavra

 

se faz sol

 

a derreter

o androceu

do girassol.

 

Seca a flor

eu me faço

gineceu em fuga.

 

Há um talo quebrado

na curva da manhã.

 

 

 

 

 

 

Fragmentos

 

 

Na lembrança, um céu de beleza

quase inventada.

A porteira.

A rosa.

O pé de goiaba.

O doce do dia

que não se acaba.

Faz trinta anos.

Ontem.

 

 

 

 

 

 

Memoração

 

 

a Iacyr Anderson Freitas, que me apresentou

à poesia de Ruy Espinheira Filho

 

 

A manhã de agora

não há.

 

Outro tempo mora

na luz que evapora

da colina.

 

Numa manhã de eu ainda

bem menina,

 

o vento atrapalhando

o cabelo das bonecas ruivas

no milharal.

 

Outro tempo sabe

a cor desse azul fugidio

em fio de rio encrespado.

 

Outro tempo no laço

de fita dourado.

 

Outro riso

na boca do peixe no anzol.

 

Outro sol.

Outra dor.

 

Agora: tão frio,

tão branco!

 

O retrato: só o retrato ri

o riso brando do sempre.

 

 

 

 

 

 

Dona Chica do Carmo de Deus

 

 

Faltava-lhe tudo:

Feijão

Arroz

E mundo

Só não lhe faltava

Luz

E azuis, muitos azuis no olho esquerdo

Porque o direito tinha o defeito

Da cegueira feita em desdita.

 

Faltava-lhe tudo:

Feijão

Arroz

E fumo

Mas sobrava-lhe a esperança

De que eu o tivesse no "embornal" da cidade

Para a felicidade do azul no seu olho esquerdo

Para a felicidade da boca, que respingava pelo canto,

Um café sem medo

Para minha felicidade de ver,

De escolher ver advento de sol

Em saliva de dor.

 

 

 

 

 

 

Fim

 

 

A pele das tuas unhas

já descama ao meu toque.

Talvez seja tarde para um drink

ou para um rock.

 

 

[imagem ©charles ray] 

 

 

 

 

 
 
Lázara Papandrea (Pouso Alegre/MG, 1965). Formada em História, pós-graduada em Metodologia para o Ensino pela UVA e em Estudos Literários pela UFJF. Vive em Juiz de Fora desde 2006. Atual coordenadora do grupo "Café com Poesia e Arte", com apresentações regulares no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes (MAMM). Publicou, com outros autores o livro de poesia Exercício de Olhar (Juiz de Fora: Funalfa, 2011). É autora dos inéditos Tudo é Beija-Flor e Górgones. Escreve regularmente no blogue Vestes de Palavras.