do rio de janeiro para nova york, 17 de junho

 

 

amanhã às três da tarde ninguém saberá

do amor que tive

nem  terá provado do azul descoberto

por guilherme

quando rompia seus horizontes

 

amanhã às três da tarde

no turbilhão do pequeno mar

os nós vão ser arraigados aos sonhos

 

(e breve a breve

todas as coisas retornarão

ao seu lugar)

 

 

 

 

 

 

são paulo, primeiro de julho

 

 

uma estrela suja caiu do céu
caiu diretamente à minha mão
arranhou-me as costas,
os vitrais,
os nervos de todas as ordens
a estrela arde os olhos e eletrifica-me o corpo
atravessando aquela porta, morri um pouco
aliás, com você, já morri
de três a quatro vezes

mas olhe:
em breve, partirei
procurarei no branco o estremecimento do azul

(o amor é só um estremecimento do azul, Ulisses)

a estrela suja queima a mão
largá-la significará abrir mão do céu mas
este céu eu não quero
este céu é sujo e feito de pássaros irrequietos
quero os meus pássaros em paz

talvez seja caso de renascer em azul, atropelando
as fugas e reerguendo
as gaivotas

fugir nunca é despreparo, mas antes:

necessidade.

acordei num sobressalto mas ainda no escuro
a estrela jazia no chão
a porta entreaberta já avista um muro
 
da sua voz, restou apenas o tecido, posto num canto,
à espera do frio de setembro para ter uso.

 

 

 

 

 

 

de são paulo para nova york, 23 de abril

 

 

(ao som de lou reed, em uma madrugada furiosa)

 

cruzei com um pavão ontem, entre alsácia e lorena. [ aliás, existe a profissão de escolhedor de nome de ruas? por que ninguém pensou na lorena fazer esquina com alsácia? e na lira ser esquina com bola preta? a rua angústia precisava cruzar a menino de engenho ]

 

perguntei onde é mesmo a saída — ele riu. tudo é azul. marinho, bandeira, musgo, caminho, naftalina, alsácia e lorena. tudo vai ficar azul. tudo vai ficar da cor que você quiser.

 

palavras têm gosto. palavras mancham. sorvete de coco tem gosto de ladrilho. lentilha bem temperada escorre quinta-feira. penso no gosto das palavras: já imaginou comer esquadria no café da manhã? sonoridade tão esverdeada tem esquadria — es-qua-dri-á. comer resina, gasolina, tubaína. palavras terminadas em ina curam cânceres, ressacas e espinhas.


você já criou cavalos?  cavalos são dóceis e disciplinados. cavalos deixam marcas na primavera. com o aquecimento global, estamos no inverno do outono. a primavera será no inverno. a primavera trará mucuripes e amor em pleno julho: um verdadeiro acinte.

se eram os deuses astronautas, ivam com eme é um planeta chamado rock hudson.

[o futuro manda lembranças. das lambanças que fiz e farei — eu sofro de um sopro de vida.]

o amor quando nasce é azul. ganha riscos de amarelo — como aqueles que farpam os teus olhos — e depois vira travesti. o amor é um grande traveco, em realidade: há dias de homem, há dias de mulher. o resto do tempo é híbrido (e sente uma dor no cu dos infernos).

um beijo cheio de amor travesti,

 

 

 

 

 

 

rascunho do mar

 

 

aos dezesseis anos

fui presa

por ter violentado o mar.

 

o mar.

 

a boca, imensa

cuspia farelos de coragem

e maresia

 

meu medo

joguei aos peixes-surdos do mar

 

arranquei com os dentes

o silêncio,

inaudível e vermelho,

do mar.

 

aos vinte e três anos

tingi os frágeis abismos

de areia que separavam

minha cela

do mar.

 

costurei labirinto para desmanchar

em tons de francisco

o espelho dourado

da água salgada

 

um sonho passou, deixando fiapos.

 

agora,

de tempos em tempos,

o mar vem me visitar.

 

 

 

 

 

 

com o oceano inteiro a navegar

 


a ponto de partir
escuto nossos olhares sorrindo
à distância

o azul ainda arde
na pele do mais recente
náufrago

me despeço como quem afia as garras

(estou ameaçada e repetida)

 

um dia iremos nos
encontrar
já sem a ânsia de controlar
as palavras


sorriremos
das cidades que construímos e
enterramos na velocidade do
azul profundo


depois mergulharemos

 

(cada um com seu próprio tanque
de oxigênio)


diremos:
um dois três

desapareceremos

junto às ondas


às memórias de alto
mar

 

 

 

 

 

 

o regresso à antuérpia

 

 

estamos parados diante da garota que

não consegue amalgamar as tranças do cabelo

furiosamente ela sorri

estamos parados diante dos diferentes nomes que os homens dão às coisas.

 

seria você uma visão?


a mulher que pegou o touro pelos chifres

recebe o vento sem pudor

diz estar preparada para o deserto

corta a grama com a habilidade de

quem desfere poemas às duas da manhã,

quando já não há ninguém para recolher os passaportes

john disse: com relação a você vir para o deserto,

não é necessário trazer escorpiões nos bolsos.

 

quando tudo é sonho, tudo é.


estamos parados diante de dylan thomas

na cadeira de balanço e nos lembramos de

quando eles fabricavam os letreiros em néon

estamos parados e há qualquer linha anunciando a cordilheira.

o mundo é real como nunca mais haveria de ser.


estamos parados diante da água. noutro canto do mundo eram oito horas da manhã quando a água amanheceu verde. ontem estava azul. não há ninguém na areia, a água cobriu os arrecifes e há os tubarões. só se vai à água quando se vêem as pedras. estamos parados e hoje não há pedras.


de todo modo chegamos ao topo — e o topo não era exatamente um lugar inexplorado, devo dizer.

 

 

 

 

 

 

minha menina

 

 

trago até hoje nos bolsos teu

rosto de nariz desconfiado, de

uma tal sorte de miragem que ainda

é possível ouvir os violinos (mesmo

num ponto tão distante)

mentira

nunca estivemos assim à parte

a língua manchada de azul te

encontra em gatos, bússolas

e poetas que insistem em repetir os homens têm

asas os homens têm asas os

homens têm asas

uma miragem é

isso que você é — não como a eletricidade

que é um mistério mas tal qual

violino tocado antes do naufrágio

faixa de areia branca entre

vestígio de fim ou princípio

de mundo: hoje posso não

ser poeta, estou vestida de

gagarin a ver-te azul e imensa

quem sabe amanhã não

descubro como calcular

nos teus osteoblastos a

salinidade do mar do norte.

 

 

 

 

 

 

para john

 

 

o segredo do mar aberto você

detém e conhece todos os pássaros que

vale a pena conhecer

 

enquanto lá fora os cães bailam
a melodia você descobriu

como parar de chover

enquanto seguimos


a oeste na direção do sol
preferimos as ondas

no golfo do México

as estrelas brilham frágeis

 

 

 

 

 

 

encher as mãos de sal para construir a antuérpia


sempre sonhei com a antuérpia como o lugar onde pudesse enterrar as mãos
onde coubesse a minha saudade das cores arrefecidas

o amor como mero estremecimento do azul 

sempre sonhei com a antuérpia como o lugar onde pudesse 
aceitar os subterfúgios que me caibam

já não se contam gaivotas como antigamente

sempre sonhei com a antuérpia como o lugar
onde amanhece a poesia quando somem as facas

é verdade, estamos nos abandonando, pouco a pouco

 

 

 

 

 

 

— o que é um pélago?


talvez seja o estremecimento da terra

talvez seja a
descoberta de que o sal conduz

eletricidade e som
você já aprendeu a atravessar a estrada?

os olhos
quando mudam de cor

avisam: o mar não tem diminutivos
de um lado há uma terceira

mulher perscrutando círculos ora
em tons febris ora

em tons vermelhos

do outro, uma nova
cartografia acaba de ser inventada mas essa é mais uma
história de obsessões com o norte

e por isso mesmo ainda não é nada demais

 

 

 

 

 

 

na eslováquia repeti 

 

 

os homens têm asas os homens 
têm asas os homens têm asas

 

 

 

 

 

 

notícias da ilha

 

 

são duas mil 
pontes algumas têm braços
em outras queimam-se os dedos 

mas não é mesmo de fogo que aqui
se trata
 

 

[imagem ©elizaveta porodina]

 
 
 
 
 
Letícia Simões é formada em Comunicação pela PUC-Rio e estudou Cinema e Artes Plásticas na University of London. Publicou Pessoas de quem roubei frases, pela 7Letras e daqui, em 1976, acenei para você, pela Patuá. É cineasta e artista visual.