[imagem da minissérie Capitu, produzida e exibida pela Rede Globo entre 9 a 13 de dezembro de 2008]
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

Machado de Assis, Freud, as mulheres

 

Desde o início de sua gestação ficcional em prosa, Machado de Assis traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres. Sua temática essencial consistiu em expressar as sutilezas do mecanismo psicológico no deflagrar de ações, emoções, expressões e reações no comportamento humano, muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade: ele criou um estilo de literatura não apenas de observação das pessoas mas, sobretudo, de interpretação, expondo as pequenas coisas, as passagens a princípio inocentes, um outro lado, que muitas vezes aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.

A partir do final da década de 1870 — especialmente depois do denominado romance de transição Iaiá Garcia — a obra machadiana, seguindo a linha da litera­tura psicológica, apresenta heróis e heroínas com seus eternos conflitos, complexos, dúvidas e hesitações. E traz para o centro das discussões a questão da afetividade  feminina, fazendo surgir uma mulher que aspira o poder de escolher a forma de sentir e amar, apesar de, quase sempre, não poder falar de seu desejo.

Machado sempre foi um autor interessado em prospectar as paixões humanas, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar questões e em tomá-las públicas pela voz de seus personagens. Sobretudo, percebia com clareza o lado trágico das relações humanas. Esse lado trágico — já presente em Shakespeare, p. ex., a principal leitura e maior influência em Machado (a dúvida 'hamletiana' percorre e permeia, qual exercício posto em desafio ao leitor, toda a ficção machadiana: inclusive é o príncipe da Dinamarca a referência/recorrência primordial em Dom Casmurro, e não Otelo, ao contrário do vaticinado por Helen Caldwell1 (e, parece, inteiramente assimilado por muitos estudiosos) — passa  pelo permanente mal-entendido dos encontros humanos, de um ser humano permanentemente acossado pelo outro, num processo originado, determinado e dinamizado pelo ciúme e pela desconfiança implícita, pela traição e pela infidelidade.

Muito da temática e da tramática machadianas gira em torno do ciúme e do perdão — vale dizer, do binômio freudiano de 'culpa e perdão'. Foi ele o autor brasileiro que introduziu a perspectiva crítica, fazendo da dúvida, do questionamento e da argumentação 'a la Freud', uma constante em sua obra. De Freud, Machado consubstanciou, sem o conhecer, os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras e atingindo seu clímax na ficção produzida a partir da década de 1880. Como sentencia Roberto Schwarzt2, "Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no 'complexo de Édipo'".

O amor é o grande tema, central e capital, na obra ficcional de Machado. O amor visto, tido e exposto como a única comunicação possível entre pessoas, quaisquer que sejam suas natureza, caracteres, etnia, classe social, o casamento — não havia como escapar, nos tempos do Império, da 'ideologia' moral-social que fazia o amor prisioneiro do casamento, o qual possibilitava a constituição da família: amar era casar. Para o homem, era adquirir 'título de propriedade'; a mulher, prisioneira e submissa, via no amor um meio de libertar-se, para isso, no caso da mulher machadiana, utilizando sua característica primordial: a dissimulação — e seu derivativo mordaz, o ciúme.

Amor e ciúme — de resto, um 'clássico' binômio freudiano — são os leitmotives basilares de Machado, presentes sem exceção em todos os contos, vez por outra inserindo assuntos difíceis de serem tratados à época, mas sempre em defesa da base moral do amor — como relações afetivas e conjugais entre pessoas de classes sociais diferentes, incompatibilidades e embustes sentimentais, dissimulações e disfarces, etc. Os amores e frustrações femininos eram temas constantes, inclusive o adultério e a pros­tituição — anteriormente decididamente não-aceitáveis na literatura (mas convém observar que José de Alencar já preconizara uma 'subversão' na peça Asas de um anjo, 1860 — censurada à época e retirada de cena — cujo tema iria inspirar e originar o romance Lucíola, 1862).

Em sua ficção, Machado traz, juntamente com Freud, para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. A princípio, de forma velada, fiel à 'ideologia' das décadas de 1850-60, nos primeiros romances e contos — a maioria das mulheres da época vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava 'um bom partido'. Se houvesse amor, melhor, mas não era o principal, pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham. Prioritários eram as conveniências pecuniárias, o interesse econômico, a ascensão social. Mas nas obras depois de 1880 ele redime o amor, e numa "recomposição com a vida" surge uma mulher interessada em poder escolher a forma de sentir e amar, ainda que algu­mas vezes não possa falar de seu desejo, a fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita — e sabemos o quanto Freud já preconizava a infidelidade como uma saída "não neurótica" para a infelicidade matrimonial vigente na sociedade burguesa mundial no século XIX.

Um verdadeiro antecipador modernista, Machado não acreditava na honra baseada na castidade, tendo nas linhas e entrelinhas de seus contos e romances chamado atenção para as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual da mulher, que devia receber instrução e não ficar completamente confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à liberdade.

Machado sempre escreveu sobre mulheres e para as mulheres e não era segredo — pelo menos até 1881, quando consolidou a longa e profícua atuação nas páginas da "Gazeta de Notícias" — preferiu colaborar em publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no "Jornal das Famílias", de 1864 a 1876 e, a partir de 1879, em "A Estação".

Sua obra, de modo geral, encena vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com Lívia, de Ressurreição; Guiomar, de A mão e a luva; Helena, de Iaiá Garcia; Virgília e Marcela, de Brás Cubas; Sofia, de Quincas Borba; Capitolina, de Dom Casmurro; Flora, de Esaú e Jacó; Fidélia e Carmo, de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos, que encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum — como em "Missa do galo", "Capítulo dos Chapéus", "Singular Ocorrência", "Uma Senhora", "Trina e Una", "Primas de Sapucaia!", "Noite de Almirante", "A Senhora do Galvão", "Uns Braços", "D. Paula", e muitos outros — a maioria podendo se catalogada como 'estudo sobre a mulher", ao revelar de forma soberba a mais aguda sensibilidade de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme.

Suas mulheres ficcionais — orgulhosas ou tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas — "com seus contornos roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio". E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, desde os primeiros romances, Machado as desenha como personagens de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva sua temática preferida: a traição. Traição era uma preocupação permanente em Machado, desde Ressurreição, atingindo o clímax 'explícito' em Dom Casmurro ciúmes e traição, 'equação' inerente a Freud.

Importante notar como a reciclagem de um processo desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressurreição, em 1872), em sua obra conclusiva Memorial de Aires — a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que 'redime' as mulheres: não mais a figura sensual que, impulsionada pelo desejo, pode chegar à traição como Capitu (?), Virgília, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada, distante e alheia à tentação, 'salvas do pecado', como Fidélia e Carmo. Nos romances pós-1880, Machado chega a reduzir o homem a um nada, ele sem a mulher, nada vale. Em Memorial de Aires, Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à famí­lia, que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e principalmente, o marido. Daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada".

Não mais as machadianas adúlteras, sedutoras, ambiciosas, impuras, dissimuladas, traidoras — antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferir os tolos ao homens de espírito...

A tríade tolo/mulher/homem de espírito permeia a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente ao longo do tempo e de sua evolução literária, transportando a 'ideologia' do livro iniciante, Queda que as mulheres têm para os tolos, para muitas das obras posteriores: a trindade habita intensamente a maioria dos contos do ciclo 1860-79, está nos romances Ressurreição, A mão e a luva e  Helena, anuncia-se em certa metamorfose na transição representada por Iaiá Garcia, transmuta-se inteiramente em Memórias póstumas de Brás Cubas e em Quincas Borba, reaparece sob enfática perspectiva em Dom Casmurro), por fim, chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires. No último, a seara da redenção total da mulher machadiana (protagonizada por Carmo), definitivamente apartada da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de espírito.

Os tolos para quem as mulheres têm acentuada queda, no início — são, via de regra, estroinas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a mulher. Exatamente ao contrário dos homens de espírito, que fracassam e são excluídos por não se coadunar com os padrões de postura, convenções e relacionamento sociais e por acreditar numa vida além e acima do jogo estratégico de aparências falsas e artificiais mas depois, numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer, assumir uma atitude de reflexão sobre a "realidade aética da vida" vis-a-vis à desilusão com as possibilidades da vida moral e, por fim, vão eles transmutar-se no cético.

A transformação do homem de espírito se dá no cenário das metamorfoses processadas na criação ficcional machadiana. Não obstante o 'aviso' dado em Queda..., alertando para o insucesso do romanticismo, praticado em diferentes níveis e objetivos, Machado indica, nas obras iniciais, o amor romântico como solução —embora o narrador insinue ser um meio ingênuo para depois trilhar caminhos mais audaciosos, descrevendo-o como a mola propulsora da destruição, o problema deixando de ser visto dentro dos termos de relações de classes e passando a ser encarado sob a ótica mais ampla e universal  da própria condição humana.

A partir do início da década de 1870, o macro-universo do entorno se transforma, o micro-universo literário deve acompanhá-lo: Machado pressente os novos tempos, convence-se da necessidade crucial de mudança, já exercita os primeiros passos, altera seu enfoque, sua temática, sua linguagem, seu estilo, sua estética literária. Intensifica o apontar para o superficialismo das relações humanas, as pessoas (homens e mulheres), tendo de viver sujeitas a valores sociais que lhes são impostos e dos quais somente poderão se libertar com mudanças radicais de consciência, de atitude e de atos, dando início a um processo de reflexão que será plenamente desenvolvido nas obras posteriores processo que o autor/narrador protagoniza no homem de espírito-personagem, que passa do alheamento e distanciamento, da desesperança e da  desilusão, às gradativas adaptação e interação com a realidade, daí assumindo postura reflexiva e consciente (até transformar-se no cético). Porém, se o homem de espírito muda, amadurece, estabelece nova relação com a mulher, o tolo  continua com sua frivolidade e estoicismo, servil às convenções sociais e atado ainda à retórica romântica e novos perfis são dados a dois dos vértices do triângulo: o homem de espírito caminha da contemplação para o ceticismo, a 'nova' mulher machadiana deplora a frivolidade do tolo e passa a se inclinar para o homem de espírito.            

Machado, como supremo criador, atento e obediente aos ditames sociais-'ideológicos' dos novos tempos, interfere no processo: o que o homem de espírito não logrou modificar a natureza das mulheres o autor/narrador faz, porém mantendo tanto a "vulgaridade dos tolos" quanto a natureza "aética" da vida social. No entanto, como sempre fez em toda a sua obra ficcional, o autor/narrador, que modifica a mulher e o homem de espírito, abre mão de suas 'prerrogativas', camufla as diferenças existentes entre injunções ficcionais e reais, incentiva o leitor a acreditar no fictício ou no embuste/artimanha e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca ou nenhuma confiabilidade, um  'narrador volúvel' (que habita e conduz particularmente Dom Casmurro e muitos dos contos). Em suma, convoca o leitor à acurada reflexão sobre a preferência da mulher quer a antiga quer a atual e deixa-lhe a responsabilidade do julgamento conclusivo.

Especulam muitos dos estudiosos que Machado era mesmo 'feminista' — e a cada leitura de sua obra nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo. Sem dúvida alguma, em Machado o feminino confirma-se como uma categoria literária. Obsessivamente observador, a aguda e profunda visão machadiana das "cousas deste mundo" o fez constatar o quanto a mulher na sociedade oitocentista brasileira — reclusa e dominada, doméstica e servil — era 'anulada' pela própria condição feminina: se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.

 

 

 

 

Feminista, emancipacionista, mas realista

 

Articulista, escritor, pensador, nunca silencioso sobre seu tempo, Lima Barreto não poderia ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade. Ele retratou-a e a fez personagem de contos e romances e escreveu sobre ela em artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas sob um caráter de ambiguidade, ora criticando-a, por vezes atacando-a, ora defendendo-a, muitas vezes enaltecendo-a: diz-se "antifeminista", põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas defende a necessidade de instrução para a mulher; repele o ingresso da mulher no serviço público ("rendosos cargos para as mulheres das classes sociais mais favorecidas: e as reivindicações das operárias?"), mas defende o divórcio e justifica com vigor o adultério feminino (ambos, forma de revolta contra um homem opressor e uma concepção de  casamento instituída pela sociedade). Imbuído da moral do seu tempo, retrata a mulher pela ótica comum, mas denuncia sua "absurda" situação de dependência aos homens.

Evidentemente que sua posição 'pendular' no enfoque da mulher brasileira do início do século XX é resultado e reflexo do momento histórico em que vivia, pleno de oscilações e mutações.

Longe, muito longe da falsa, equivocadissima acusação de misoginia, posicionava-se, na realidade, não contra a mulher em si, ou ao feminismo como movimento defensor e propugnador dos direitos da mulher, mas contra o feminismo então praticado por "lideranças medíocres e interesseiras", um feminismo da moda, "feminismo bastardo, feminismo burocrático, feminismo de secretaria", e sobretudo  contra os signos do progresso republicano: a rigor, insurge-se contra um feminismo de caráter elitista, que não propugnava por transformações sociais e visava apenas interesses particulares dos setores privilegiados da sociedade. Lima Barreto  era, antes de tudo, crítico da mulher burguesa, esnobe e, ao contrário, simpático à mulher proletária, suburbana.

Nesse sentido, um dos maiores equívocos que se pode cometer é considerar Lima Barreto como contrário aos movimentos e ações emancipacionistas da mulher. Isso ele não foi em hipótese alguma, realçando na crônica "O Nosso Feminismo", que "(...) Não me move nenhum ódio às mulheres, mesmo porque não tenho fome de carne branca; mas o que quero é que essa coisa de emancipação da mulher se faça claramente, após um debate livre, e não clandestinamente, por meio de pareceres de consultores e auditores, acompanhados com os berreiros de dona Berta e os escândalos de dona Daltro. É preciso que isso se faça claramente, às escâncaras. Cada um, então, que dê sua opinião. (...)".

Para ele o movimento feminista de então não propunha ou lutava pela defesa da mulher, era "frágil, inconsistente, inócuo, só se preocupava com perfumarias, acessórios  e inutilidades"; desprezava a mulher operária e reivindicações trabalhistas e sociais, divorciava-se da questão do ensino e da educação para a mulher; desvinculava-se dos problemas afetivos e conjugais da mulher e da degradação do casamento imposto pelos homens e pela sociedade; mantinha-se completamente omisso diante do uxoricismo.

 

 

Sexo forte, sexo frágil

 

Lima sempre conferiu  à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e não-ficcional, retratando e  comentando a situação da mulher perante o casamento, a moral que lhe era  imposta pelo homem e pela sociedade, a desigualdade de julgamento do adultério masculino e do feminino, a viuvez, as oportunidades educacionais e profissionais, a prostituição, o início do movimento feminista no Brasil. Se, de um lado, no conjunto de artigos e crônicas — quer sobre feminismo, movimento feminino, voto feminino, direitos femininos, literatura feminina, quer em especial sobre mundanismo, moda, comportamento, hábitos femininos — Lima destila permanente ironia crítica; de outro, o retrato das mulheres elaborado em seus textos ficcionais mostra-as dependentes dos homens e submissas às 'normas' sociais da época, sim, mas em muitíssimas vezes em outras, não — com atitude e comportamento progressistas: são elas superiores aos homens, exemplos de Olga, em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina, em Clara dos Anjos; Edgarda, em Numa e a Ninfa; Efigênia, em O cemitério dos vivos; Cecília, de Diário íntimo; Cló, Adélia, Lívia e  outras, em diversos contos.

 

 

"Tema de Carmen"

 

Vale ressaltar, porém, que o suposto 'antifeminismo' barretiano tem sua contrapartida significativa: numa série de artigos e crônicas a que ele denominou "Tema de Carmen" (sic) — a propósito de julgamentos de crimes ditos passionais —Lima Barreto defende veementemente a mulher e ataca os homens, os advogados e juízes que "se atribuem direitos sobre a vida das mulheres, direitos reconhecidos por júris que os absolvem", denunciando crimes de uxoricídio, nos quais homens matavam "mulheres infiéis" e, pior, eram absolvidos por "legítima defesa da honra", e alardeando intransigentemente os direitos da mulher "que são, como todos nós, sujeitas, às influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores".

De modo geral, Lima interpretava, denunciando, a atitude violenta dos ho­mens  por força de eles se sentirem donos, proprietários das mulheres com as quais se relacionavam, não admitindo ser preteridos. Defendia com vigor a mulher e clamava  que as deixassem amar à vontade, "não as matem, pelo amor de Deus!" (crônica "Não as Matem").

Incondicionalmente, sustentava que se devia, isso sim, "condenar o matador conjugal", que conforme a nefasta concepção dos crimes executados "em nome de uma honra familiar, lava-a matando a  mu­lher", a qual face à opressão de que via de regra era vítima, pelo homem e pelas 'regras' da sociedade, tem  todo o direito de não amá-lo mais. Repudiava veementemente esse tipo de crime — muito mais grave do que o adultério era o do assassinato, ato premeditado, não movido por um impulso de momento — pois "as constantes absolvições de uxoricidas dão a en­tender que a sociedade nacional, por um dos seus mais legíti­mos órgãos, a admite como normal e necessária" em sessões nas quais era julgada não a atitude criminosa do homem, mas a conduta sexual da mulher, que de vítima tornava-se ré: defendia-se  o uxoricida atacando a honra feminina, acu­sando a mulher de "desavergonhada". Condenava essa prática que além do mais funcionava como um estímulo para que tais crimes continuassem ocorrendo: para ele, o julgamento de cri­mes de uxoricídio deveriam ser desvinculados da apreciação da conduta sexual feminina e da ideologia dominante que exi­gia do sexo feminino a fidelidade absoluta — o que deveria ser sentenciado era o assassínio em si.

 

 

A mulher e a sociedade

 

A rigor, esses textos barretianos devem ser compreendidos a partir da posição de Lima quanto ao casamento e ao adultério — visto este como forma de revolta da mulher contra a sociedade que lhe apresenta um homem como dotado de predicados excepcionais. Para ele, não proveniente de motivação física, sexual, e sim originário da concepção de casamento instituída pela sociedade, cuja única vítima é a mulher, impossibilitada de realizar nele a sua natureza sentimental, vendo-se obrigada, fora dos canais convencionais, a procurar o homem que deseja e a realize.

Lima Barreto, convém frisar, respeitava o  casamento e o entendia como o meio quase único de realização plena do sexo feminino — na crônica "A Amanuense", cita o alemão Krafft-Ebbing: "a profissão da mulher é o casamento", insistindo na imperiosidade da relação franca e elevada que deveria regular a vida matrimonial —"entre os dois só deve haver a máxima lealdade, todos os dois devem entrar na sociedade conjugal com a máxima boa vontade e admiração um pelo outro" — em prol dos valores que caminhavam para o desaparecimento ou deterioração na sociedade burguesa da época.

Não deixava, contudo, de ater-se à realidade concreta do que era o casamento nessa sociedade republicana burguesa: para o homem, uma espécie de "transação comercial", reduzindo a mulher, em última instância, a uma "escala para subir" — como Numa Pompílio de Castro, que só se casara com Dona Edgarda Cogominho para  poder ascender na carreira política, já que o pai dela era um dos proeminentes políticos no meio nacional (novela Numa e a ninfa). Em contrapartida, a mulher procuraria encontrar sua realização e dedicar-se a  um 'homem superior' — que a sociedade definia ser o doutor. Ela, via de regra, deixava-se levar por essa equivocada conceituação, gerando, em certos casos, a decepção, que a induzia à busca de 'alternativas': ao ter a revelação da face real do marido, desiludida no casamento e decepcionada, procurava fora do matrimônio alguém 'superior' a quem pudesse dedicar sua natureza sentimental  insatisfeita — caso de Dona Laura (conto "O filho de Gabriela"), casada com o conselheiro Calaça.

Lima entendia ser o amor eterno praticamente impossível, sabia ser intrínseco à condição e natureza humanas a mutação dos sentimentos e, em especial, responsável pelas transformações sentimentais, sensoriais e afetivas femininas. Daí enxergava a temporalidade do casamento, sua 'não eternidade', e preconizava o direito feminino de interrompê-lo, em ter  liberdade de escolha, buscar outro amor ao ter o casamento fracassado (ao contrário de Dona Laura, que vai encontrar no amante, Dr. Benevenuto, "o que lhe exigiram a imaginação e a inteligência", o homem superior que não há no marido é justo Edgarda, em Numa e a ninfa) e com isso praticar o adultério, não aceito e punido pela sociedade, sem merecer, no entanto, ser assassinada.

A defesa barretiana da mulher não se limitava à explicação da raiz do adultério: ia mais além, propondo a instituição do divórcio — como nas crônicas "No ajuste de contas" e "Como budistas..." — e uma reformulação jurídica da instituição do casamento, com propostas que, convertidas em lei, atingiriam no cerne todas as deformações implícitas no matrimônio, propiciariam a libertação da mulher do estado degradante que lhe era imposto e eliminariam o direito consuetudinário e quase legal de o marido poder praticar o uxoricídio em caso de adultério.

 

 

Feminismo

 

Casamento, adultério feminino, divórcio, uxoricídio constituem pressupostos à suposta — e equivocada — posição 'anti-feminista' de Lima Barreto. Ele opunha-se, isso sim, às formas, métodos, práticas e posturas do movimento feminista da época.

O movimento feminista brasileiro, iniciado no fim da década de dez séculos, antes de surgir como um bloco coeso, dividiu-se já em suas origens em algumas ramificações, cada uma delas com líderes próprios e com algumas reivindicações idênticas e outras particulares, verdadeiras bandeiras das facções ou, como dizia Lima Barreto, das "igrejas" ou "seitas". Eram quatro: a de Mme. Chrysanthème que "quer, para a mulher, a plena liberdade do seu coração, dos seus afetos, enfim dos seus sentimentos" (crônica "No Ajuste de Contas"); a liderada por Leolinda Daltro, denominada "Partido Republicano Feminino", propugnando pelo direito da mulher; a de Berta Lutz, sob o nome de "Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher Brasileira", que tinha como bandeira a luta pelo ingresso da mulher na burocracia; e a facção conhecida por "Legião da Mulher Brasileira", que nomeara como presidente de honra a esposa do Presidente da República, Dona Mary Saião Pessoa, contando também com o apoio da Igreja Católica. A principal reivindicação que as unia era a extensão do direito de voto à mulher.

Lima Barreto reduzia as facções a duas: o feminismo sufragista e o feminismo burocrático; o primeiro de "propriedade" de Leolinda Daltro (que aparece como Deolinda nas crônicas; e na novela Numa e a ninfa, como a personagem Florinda Seixas) e o segundo, de Berta Lutz. À entidade de Mme. Chrysanthème não dava muita importância e quanto à "Legião da Mulher Brasileira" se restringia a ironizar o caráter oficial da entidade.

Leolinda (ou Deolinda) Daltro e Adalberta Lutz, que capitaneavam as posições feministas da época, eram os maiores objetos das críticas — contundentes, irreversíveis — de Lima. Com tais 'lideranças', dizia Lima, as reivindicações feministas de sua entidade não estavam a propugnar por uma elevação da mulher, mas voltadas unicamente para elas, preocupadas apenas em pleitear o direito de voto para que uma faixa da elite pudesse usufruir das vantagens que estavam limitadas à cúpula política masculina. Até porque Lima não via no voto um elemento por meio do qual pudesse ser reformada a situação na Republica Velha — portanto, o que as feministas pleiteavam pouco significava, era  mera acomodação ao sistema montado, ao qual ele nunca deixou de se opor. A denúncia de Lima contra o movimento feminista centrava-se em sua conivência com as práticas políticas de então, em termos de corrupção, favorecimento, clientelismo, oportunismo.

Além do mais, e isso para Lima constituía questão crucial, o feminismo, como então praticado, esquecia-se totalmente da mulher pobre e da mulher negra — ambas, aliás, observava ele, tendo já conquistado lugar de operária, sem movimentos feministas, nas fábricas de tecidos e nas livrarias como empacotadoras de livros. ("Pergunto: esta mulher [uma velha negra] precisou do feminismo burocrata para trabalhar, e não trabalha ainda, apesar de sua adiantada velhice?" — crônica "Voto Feminino").

Nesse particular, vale realçar que Lima não só acatava a profissionalização da mulher — mas causava-lhe aversão ser ela realizada com intuitos interesseiros, circunscrita a benefícios para poucos e no proteger os já privilegiados; acusava "a maneira irregular e ilegal que tem presidido o provimento desses cargos, por moças e senhoras" (crônica "Voto Feminino") — não lhe negando capacidade e condições de exercer um cargo público, por exemplo; como também propunha o aumento do número de Escolas Normais para que as mulheres tivessem melhor educação e com isso pudessem desempenhar papel importante na formação da criança, quer na escola, quer em casa (cf. crônicas do grupo "Educação Feminina" e em "A poliantéia das burocratas").

Desse modo, segundo ele, as proposições profissionalizantes e eleitoreiras dos movimentos feministas apenas tinham em vista dar possibilidades de realização aos atributos menos importantes da mulher e como bandeira a aspiração do menos elevado, fazendo a mulher simplesmente obter igualdade aos medíocres que compunham o sistema. Para Lima — e sua concepção tão elevada da mulher, ela atuando junto ao homem — as exigências do feminismo só podiam ser encaradas como rebaixamento da condição feminina, portanto, censuráveis.

Em outro viés, enfatizando a deterioração do casamento como motivo do aviltamento da mulher, só reconheceria grandeza no movimento feminista da época se atacasse esse problema central: não o fazia,  ignorava-o: "(...) Contra tão desgraçada situação de nossa mulher, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem os borra-botas feministas que há por aí (...) — crônica "Voto Feminino".

Lima Barreto não via no movimento feminista nada de grandioso, de heróico, de superior, mas sim uma articulação feminina burguesa para meramente conseguir, por meios não legais, cargos públicos, onde a mulher, em lugar de realizar a sua natureza mais nobre, iria ter a possibilidade de exercitar o seu lado, segundo ele, mais vulgar. Via o movimento como eminentemente elitista, que nada mais buscava além de estender às mulheres os privilégios de que gozavam os medíocres que compunham o sistema. Sem o mínimo pendor social, limitava-se tão somente a reivindicar direito a voto e a cargos públicos, constituía-se em aglutinação para tentar obter a extensão às mulheres das regalias de que gozavam os membros masculinos dos grupos dominantes.

De notável e inquestionável consciência social, avesso a qualquer forma de autoritarismo, intransigente denunciante do drama das minorias no Brasil do final do século XIX — negros e mestiços excluídos do mercado de trabalho no período pós-abolição, exploração dos operários — Lima Barreto tratou com vigor a opressão contra as mulheres, não as que ele chamava "burguesa republicana alienada", mas principalmente as humildes, pobres, algumas delas mulatas, submetidas a uma sociedade machista e injusta, submissas a pais ou padrastos ou irmãos, ou maridos ou noivos ou namorados dominadores e agressivos, a patrões e senhores exploradores e, em especial, carentes de oportunidades de educação e limitadas à formação educacional e cultural insuficiente, alijadas de círculos sociais.

 

 

Educação da mulher

 

Especial era o olhar que Lima dedicava à formação escolar da mulher e ao processo educativo a elas estabelecido. Foi acerbado crítico da carência de oportunidades educacionais às mulheres, e veemente defensor da obrigatoriedade de serem a elas conferidas melhores possibilidades de educação — o que, de resto, apenas confirmava a posição analítico-reflexiva que dispensava à mulher em sua ficção e não ficção.

Na verdade, a maioria das mulheres do início do século via a educação simplesmente como um meio para se fazer mais agradáveis a seus companheiros. Não buscavam uma emancipação intelectual — o que justamente levava Lima a propugnar  por melhores oportunidades educacionais para o sexo feminino. As mulheres, via de regra, mantinham-se circunscritas à esfera do lar, refletindo os padrões culturais da época: predominava o conceito de que a mulher era mais sentimental e amorosa do que intelectiva e filosófica. Segundo Lima, essa era essencialmente a causa da infelicidade existencial e conjugal da mulher. Além disso, estudavam, em sua maioria, em colégios religiosos, o que era acentuadamente criticado por ele, sugerindo para as mulheres uma educação mais aberta, mais completa, mais eficiente.

Lima sustentava que somente por meio de uma instrução mais aprimorada a mulher, como 'alicerce da família', poderia abrir seus horizontes e dispor da competência necessária para educar os filhos com discernimento. Para ele, a instrução feminina contribuía de forma decisiva para a do homem e seu engrandecimento enquanto cidadão: da educação dada aos filhos dependia o destino das gerações e, consequentemente, da sociedade.

 

 

 

Notas

 

 

1 CALDELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
2 SCHWARTZ, Roberto. Mesa redonda, in Bosi, Alfredo et al, Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982.

 

 

 

março, 2014