Fiat Lux

 

 

a poesia vive

por conta própria

e reside

no exato instante

que existe

entre a palavra

apenas pressentida

e a outra,

já esquecida

 

palavras, sim, palavras

 

que eu seja,

sílaba por sílaba,

o sopro que sai

de teus lábios

parco alento

que no ar se dissipa

 

a vida nos soletra

somos mortais

temos pressa

e estamos nus

 

homens dizem palavra

deuses dizem luz

 

 

 

 

 

 

Musa

 

 

100 vezes

ela te recusa

 

Até que,

olho no olho,

aceita tua corte

teu charme

 

Tolo

ela te usa

E pedra faz da carne

de tua poesia

 

Seu nome

já sabes

é Medusa

 

 

 

 

 

 

Podridão Nobre

 

 

O dia vagueia incerto

pelas ruas de pedra e acaso

que a cidade tem a oferecer

Um mormaço quieto,

alento de um verão

de mil novecentos e antigamente,

é esquina outra vez

 

Gosto de sede no lábio

Uvas apodrecidas na memória

A palavra, embolorada,

já não diz o próprio nome

A palavra é letra devorada por dentro

A palavra é lepra aloprada pelo vento

 

O tempo gesta seu voo

por entre a névoa da manhã

e as espessuras da alma

Goteja pequenas profecias,

doura datas, nuvens, pássaros,

sorrisos de há muitos anos

Avança pela tarde oca,

esculpe sutilezas em teu rosto

desmorona crepúsculos

sob a muralha de tuas pálpebras

faz da noite coisa nítida

e vazia

Medo e ansejo,

poder, tentação,

pudor e essência,

ausência e ocaso:

sombras e migalhas

que a fome celeste

que te consome,

não saciam

 

Ao contrário do vinho,

o tempo se locupleta sozinho

 

 

 

 

 

 

Geografia Amorosa

 

 

 

Percorro teu corpo

feito de curvas e silêncios

Nos arredores do umbigo

me perco

 

Logo ali

profunda e estreita

é a fenda

em que me abrigo

 

 

 

 

 

 

Tempo

 

 

O tempo nos comanda

Tarda, mas não fala

o quando

tampouco

o quanto

O tigre é rude

e ruge

Com terrível simetria,

o tempo apenas

urde

a eternidade

que nos resta

 

 

 

 

 

 

Folie a Deux

 

 

a vocação da nuvem

é dar rosto ao vento

 

o dever da rosa

é se paramentar com espinhos

 

a voz do peixe

é o murmulho do rio

 

próprio da tarde mansa

é devanear o tempo

 

quem percorre a sombra das coisas

engatinha no segredo delas

e ilumina o livro do dia

 

 

 

 

 

 

Andarilhar

 

 

Sigo meu caminho

ainda que inventado

 

Sempre o menos curto

o mais incerto

meu caminho é torto

como o anjo

que amortece meus passos

Deixo para trás

migalhas de tempo

e sonhos esparsos

alguns bolorentos

outros já dispersos

 

Sigo meu caminho

ainda que inventado

 

Como um náufrago

à deriva de sentido

estrela estrambelhada

à procura de abrigo

sonhadora matéria

escura da qual é feito o tédio

espera fria sobre a lápide

sigo meu caminho

ainda que inventado

 

Biógrafo divagante

o homem que nunca fui

é quem leva adiante

a carne da poesia

e o estupor da criança

sob a lua branca

Sigo meu caminho

ainda que inventado

é meu esse caminho

ainda que impensado

 

Moscas azuis me fazem sombra

 

 

 

 

 

 

Super Lua

 

 

Fúlgida

intumescida

lua meditabunda

queria dizer-te outra coisa

(sei que os olhos iluminam outra coisa)

mas dizer lua é dizer-te

por si sol

 

Berço de ouro

idade de prata

teu nome é espírito

sonho nave pirata

ordenada ao degredo

Sob um céu de gemidos

navego o mar de tua

tranquilidade obscura

 

Idioma de segredos

redoma de magia e secura

caligrafia de infinitos

Em vão, desenho

o silêncio de tuas horas

— qualquer rumor é lampejo

ou traço de memória

 

Lua furibunda

clarividente

na noite funda,

o poema à escuta,

adivinho meu rosto

em tua face oculta

 

 

 

 

 

 

Barroco Mineiro

 

 

fé metamórfica

lavrada na pedra sabão

 

com precisão litúrgica,

as mãos caleijadas

esculpem súplicas

desoculpam almas

dão feições e voz a profetas

 

no corpo de Deus,

talhado à sua imagem

e degenerescência,

o orvalho do poeta

torna terno

o instante

 

 

 

 

 

 

unoverso

 

 

um poema que não tomasse

mais do que um único verso

que serenasse toda a noite

numa única e só palavra

numa úmida e só sílaba

menos do que isso

numa única letra

menos ainda

 

num suspiro

 

 

 

 

 

 

Lusco Fusco

 

 

O sol se pôe

como quem se põe

no lugar de um amigo,

breve instante

em que a noite

não se opõe ao dia

 

Olho no olho

o ir do sol supõe

solapar trevas

antecipar estrelas

e conspirar silêncios

 

Naquilo que tudo

em tempo se torna

tanta ausência

nem a luz explica

Onde eu estava

quando você não veio?

 

 

 

 

 

 

Nihil

 

 

viver como se tudo

desse em nada

tudo dissesse nada

 

e o nada fosse

a única pergunta possível

 

 

 

 

 

 

Sina

 

 

areia nos olhos do tempo

pensamento azul no passo do vento

existo, mas me desconheço

 

longe, perto, fundo, raso

uma vida feita de acasos e ocasos

desistir é sempre um recomeço

 

duro é o ofício de viver

se é chegada a hora de morrer

aí mesmo é que não compareço

 

 

 

[imagens ©maria kreyn]

 

 

 
 

Natural de Porto Alegre
e radicado em Curitiba.
Vive por conta própria
e reside no exato instante
que existe entre a palavra
apenas pressentida e a
outra, já esquecida.
Poeta bissexto, escreve
com vagar, à maneira
do arqueólogo que espana
com sua vassourinha
a poeira dos séculos.
 
O tempo, o devir e essa
névoa que é o indivíduo
são temas recorrentes em
sua produção, marcada
por um olhar enviesado,
típico de quem confia
mais na memória,
inventada ou não,
do que naquilo que vê.
 
Formado pela UFRGS
em Comunicação Social,
atua na área editorial e
é presença constante na
cena poética da capital
paranaense. Desenho e
pintura são suas outras
paixões irremovíveis.