Cadê os pretos?

 

Gente, que coisa louca esta minha terra! Convidada por meu marido a ver os blocos de carnaval do Leblon onde vivo, pelo menos, os que passam perto de algum restaurante menos exorbitante de preço, não consigo enxergar, por mais que procure, nenhuma pessoa de cor negra, nem mesmo mulata no meio dos foliões da terra em que me calhou morar.

Pasmo. Todos brancos, fingindo fantasia com pequenos adereços, roupa de balada mixuruca, com um ou outro adereço um pouco mais colorido para as meninas, camiseta (com ou sem) e bermudão, para os rapazes, com raríssimos chapéus mais ou menos engraçados. Até bebês bem branquinhos de nenhum sol de verão. Portavam algum chapeuzinho ou um bigodinho de gato nos carrinhos orgulhosamente empurrados por louras ou falsas louras de cabelo comprido, solto ou preso às pressas por causa do calor.

Verdade que só havía gente moça, mas será que não há jovens de pouca idade mais escuros que os queimados de praia desse meu bairro dito de elite, depois da propaganda da novela?

Claro que observo, no caminho para o restaurante, um montão de carrocinhas de cerveja, água e refrigerantes, empurradas, às vezes, com muita dificuldade, até por mulheres na faixa dos cinquenta anos ou mais, com gente preta ou quase. Vale tudo para conseguir chegar até à rua principal do bloco, uma vez que a praia está abastecida desde a madrugada, certamente. E aqui, na noite não dormida, na bagunça da competitividade de rua, cadê os brancos?

No dia seguinte, vejo estarrecida que até a musa do primeiro dia de desfile das Escolas de Samba é branca. Ou será que me engano? Onde ficou a mulata é a tal de outros tempos?

Afinal, quando acabou a escravidão no Brasil? Parece que em 1880, portanto, há muitíssimos anos atrás. E já muito atrasada em relação a outros lugares, como nos ensinava com raiva o nosso inesquecível antropólogo e educador Darcy Ribeiro e outros bons educadores.

Terminou de fato a discriminação racial brasileira? Mas quantos pretos você que me lê conhece, de paletó e gravata bem feitos (porteiro não vale), formados por universidades de boa qualidade, a não ser os vindos de visita de Angola, o que está muito na moda no nosso país, ou algum homem público raro, raríssimo. Eu particularmente conheço três, no máximo: um juiz de fama, um professor absolutamente desconhecido e um vizinho lindo, ex-modelo, único homem de cor preta no prédio metido. E mulheres negras vestidas como damas de nossa sociedade (e nem acho que as socialites se vistam tão bem assim), quantas?

E amigas e amigos, que frequentam teatros, cinemas, shows..., dizem o mesmo em relação às plateias.  Um ou outro escapa do olhar de desprezo de muita gente dita boa e entra para ver um Hamlet, com Wagner Moura,  ou outra peça de alta categoria. Nem para ver a do sobrinho de Silvio Santos sobre Tim Maia, um conhecido mulatão. Não, no Leblon. Talvez, na Praça Tiradentes.

Nos dois últimos filmes que vi, extremamente elogiados pela crítica, me dei ao trabalho de procurar um único negro na plateia, em demonstração de que também eles sabem e curtem o que é de boa qualidade em matéria de cultura. Nada. Nenhum. Tirando os atendentes de entrada que, para meu pasmo, às vezes, comentam que o filme vale a pena. Espanto justificado porque a educação escolar não os ajuda.

Nas Escolas de Samba, nos blocos de rua de outras plagas que não o bairro mais caro do Rio, aí, sim, encontrei aliviada belas mulatas e pretos de todas as idades, sobretudo no meio das baianas das Escolas que, graças a Deus, não são branquelas jovenzinhas em flor, nem se preocupam com corpos esculturais. Simplesmente, rodopiam e como! Malabaristas por natureza e educação de seus maiores da favela.

Resposta imediata ao por quê: Escola fraca desde pequenos, abandonada depois de alguns anos, ou ainda, professores incompetentes, acanhados em seu conhecimento e salário. Falta do que realmente compõe uma Nação: Educação e Cultura. E é claro, Saúde, que tem que apelar para Cuba e outros de fora, para suprir a falta dos nativos do Brasil.

E depois dizem que o Brasil não tem preconceito racial.

 

 

 

 

 

Uma esperança de ver

 

Naquele dia, a catarata, sorrateira cortina que se fecha devagar e sempre para acabar com a clareza do que se olha, insiste em invadir meus dois olhos tão queridos. Prestimosos olhos de escrever, ler, enxergar pessoas, paisagens..., nessa ordem.

O dia amanhece mais turvo do que fuligem de incêndio e eu penso na depressão de quem vai fazer muitos anos e contar outros tantos para trás, na mais absoluta tristeza.

Abro a janela de meu quarto, com vontade de clarear a visão de meu rosto ao espelho, com risco de acordar meu pobre marido em seu soninho da manhã. Qual o quê! Não percebo o aparelho nos dentes de cima. Escovo com vontade o aparelho e só então acordo para o fato de que não são os dentes ao vivo. Faço tudo outra vez, que chateação!

No café da manhã, me toco que a torrada tem uma cor esquisita, assim como o queijo branco e as demais iguarias insossas de dieta, que ingiro com a parcimônia de quem não quer deixar sobrar banha em assento nenhum.

Ligo o rádio: o botão é facílimo de ver e apertar. Nem penso em CD, operação bem mais complexa. Ao pegar o jornal, novo impacto: nem com óculos de ver perto enxergo muito além das manchetes e dos títulos. Faço um enorme esforço para me concentrar nas notícias e nos artigos. Parece que a inteligência atrofia: difícil entender o conteúdo das leituras para quem vê nublado.

Penso nos cegos do mundo que, coitados, têm que ler em Braille, uma linguagem, para mim, absolutamente hermética. Uma trabalheira. Além da dificuldade de andar pela rua pedregosa do Rio de Janeiro, coisa que percebo melhor pós catarata deflagrada. Penso sobretudo em Borges, o magnífico escritor argentino, que me oprime o cérebro com seu escrito magistral.

Procuro o oftalmologista, mas o diagnóstico não me suaviza as intempéries da visão opaca. Pelo contrário, o medo da cirurgia me provoca torturante dor no pescoço e nas costas, deixando-me lesa e tesa por vários dias.

Enfim, empino o peito, às custas de muito perguntar aos operados de sucesso:

— Foi tudo bem?

— Não podia ser melhor. Não senti nada; estou enxergando que é uma beleza!

— Catarata é sopa — afirma o médico.

Com minha sogra na cabeça, senhora de idade que saiu saltitante da operação de poucos minutos, sinto-me de repente um bombeiro,  prestes a pular, feliz,  no fogaréu.

Dias depois, adentro na clínica oftalmológica de boa aparência e sou amavelmente recebida, com aquele frasório de quem fala com velho, cheio de "inhos" e agrados.

— Pode ficar sentadinha aí, que quando chegar sua vez eu chamo, tá, querida?

Pego uma revista de frivolidades e tento ler as letras miúdas, para me certificar, mais uma vez, da necessidade da cutucação em meu olho, com acréscimo de implante de objeto estranho, sabe lá o que é isso?

Morro de frio, no ar condicionado que não respeita inverno de verdade, raro na cidade do Rio de Janeiro. Meu marido, então, congela. Agarro-me a seu corpo e lá ficamos duas boas horas qual enamorados de pouco, ouvindo o cantar  estomacal, por fome do jejum, de minha parte, imposto por médico, por parte dele,  por solidariedade.

Finalmente, a moça me  pega pelo braço, como se eu fosse uma anciã, e me leva para o elevador, em passo miúdo e lento,  até o segundo andar. Lá, passa a pasta para outra, uma mulher de meia-idade, com jeito de enfermeira, que me diz:

— Um minutinho e já lhe atendo.

Quinze minutos depois, perna bamba de fome, dor no pescoço de medo, ela me entrega um traje moderníssimo, de fazer inveja à Rio Fashion Week: uma calça largona e uma blusa enorme, ambas de tecido impermeável. Com a touquinha na cabeça, fico irresistível.

Estendo-me ao lado de uma das cinco senhoras, deitadas em espreguiçadeira, à meia-luz, também à espera. Todas sem sapato, com uma estranha imitação no pé, estiradas e de olhos fechados. Um único homem, por que será? Aos poucos, fecho os olhos também, mas sou interrompida por um colírio que quase me esfola de tanto arder. Abro a muito custo o olho lacrimoso e  vejo que umas duas pacientes lá se foram com a enfermeira.

— Agora é fácil: são só três. Vai num instante. — Ânimo, Maria!

É quando vejo outras duas damas entrarem, deitarem e passarem à minha frente. Nem dá tempo de perguntar em que loja uma delas comprou uma bela bolsa de couro escuro e elas vão saindo. Pergunto as horas e percebo que estou há mais de quatro horas na mesma cadeira. Fico irritada e exclamo:

— Alguém tem que conversar comigo! A fome é muita, gente. Não aguento mais! Depois, reclama-se do sistema público de saúde. Aqui é plano e bem pago.

Percebo que é noite porque mudaram a assistente: noite e dia são escuras com luz artificial acesa, na sala hermeticamente fechada. Pelo menos, bato um papinho legal com a nova atendente, mais jovem e faladeira, graças a Deus. Em segundos, exponho-lhe minha vida em detalhes e ela, a sua. Quase lhe proponho um chá bem quente com torradas, para disfarçar o frio do ar condicionado.

Finalmente, me conduzem trôpega a uma especie de antessala de vários compartimentos, separados por cortina, como fazem os hospitais norte-americanos. Nada de quarto particular.

Um senhor se aproxima. Pergunto-lhe meio p*** da vida:

— Por que sou a última, doutor?

E ele:

— A senhora teve hepatite em criança e é perigoso para as outras pacientes.

Fico boquiaberta com o poder de uma hepatite tratada com homeopatia por minha mãe e seu médico de estimação.

O homem cata minha veia, certifica-se de que no braço não existe nada azul, além de um pequeno caroço sem cor, nas dobras. Coisa de muito tempo e de repetidas espetadelas. Ouço um "Xiii, tenho que pegar a da mão; arde um pouco, mas é o jeito".

A essa altura, só penso em lautos jantares, sem nenhuma salada verde, cheio de carne vermelha, se possível, de porco gordo, acompanhada de vinho, sobremesa ultradoce, de preferência Toucinho do Céu bem português, e vinho do Porto ou outro licor açucarado.

Conduzem-me pre-operatória a outro cubículo, onde paro de enxergar de vez. Sinto a cabeça presa de tal jeito que nem dá para repirar fundo, que ela mexe. De repente, começo a ver uma espécie de luz esmaecida e móvel, no olho-vítima. Nenhuma dor ou aflição, tranquilizada que estou por calmante potente.

Múmia sem nenhum tipo de sentimento e a voz do cirurgião:

— Pronto, acabou!

Em casa, olho tapado por quase dois dias, tento dormir do lado contrário, por azar,  o lado de que mais gosto. Tenho pesadelos dos mais cabeludos por duas noites, o que, por certo, será matéria para a próxima sessão de psicoterapia. Vai é sair coisa dali.

Dia seguinte à cirurgia, enxergo o que não queria ver, no espelhão do banheiro: manchas de sangue pisado embaixo do olho operado. Fico muito louca da vida e nem valorizo o fiat lux maravilhoso das coisas à minha volta.  Pura vaidade, inútil vaidade. Não há nada que esconda as tais manchas, nem maquiagem grossa. Levo dias e dias tentando não piorar minha situação crítica, sem me olhar demais. Rezo para que, até domingo, eu possa estar menos medonha e dar os parabéns à minha sogra, pelo aniversário e pelo êxito das operaçoes duplas de catarata.

Agora, resta-me esperar pela alta, fazer uma série de exercícios respiratórios, em academia de distensionar, muita psico e fisioterapia, e nova força para encarar mais uma, no olho direito.

 

 

 

 

 

[imagem ©txema yeste] 

 

 

Maria Lindgren [Maria José Lindgren Alves]. Escritora. Professora aposentada com Mestrado em Educação (PUC-RJ). Publicou Uma rolha na lágrima (Rio de Janeiro: Mondrian, 2004) e Habitantes de mim (Rio de Janeiro: Editora MEMVAMEM, 2008). Autora de Antônia, quem é você e outras histórias, inédito. Todos de contos e crônicas, em estilo leve, embora permeados de problemas da vida, quase sempre contados com certo humor. Como assessora pedagógica, publicou Ensino da língua inglesa para leitura pela Secretaria de Estado de Educação/RJ, Plano Básico de Estudos (ensino fundamental, médio e supletivo). Tem textos no portal Vânia Moreira Diniz e Cronópios. Seu blogue: mariajoselindgren.blogspot.com.