©richard kaby
 
 
 
 
 

 

 

 

"... a música    diz  o sábio chinês Tchen-ma-tsen — é o que unifica [...]. Pois a unidade da obra tem uma ressonância toda própria.  A  obra  acabada flui para  ser comunicada,  até,  mais adiante,  refluir para sua fonte". (I. Stravinsky,  Poética Musical em 6 Lições).

 

Inteiramente gravado em Londres, acaba de ser lançado o CD Impressions1, da flautista brasileira Lucia Viola, radicada há anos na capital inglesa. É o segundo álbum da instrumentista, que em 2009 iniciou sua produção fonográfica, com Sundial. No primeiro disco, Lucia está acompanhada por violões, baixo acústico, percussão e teclado. Nesse seu novo trabalho, optou pelo duo com piano, além de apresentar peças para flauta solo. Stevie Lodder e Michael Richards são os pianistas que a acompanham.

 

 

 

 

Uma das grandes novidades de Impressions é a presença de quatro peças compostas pela própria flautista: "Enchanted Garden" (faixa com o qual abre o álbum), "Les Feuilles sur le Vent", "Etude" e "Bali". São peças curtas que, reunidas, compõem uma bela suíte. No projeto fonográfico de Lucia, elas se alternam com as composições de Chris Wells, um de seus parceiros musicais mais constantes, que já compôs especialmente para ela várias das faixas de seu álbum anterior.

O projeto estético do novo CD parte de intensa pesquisa de sonoridades, texturas e cores não só da música, como também das artes visuais do período que compreende o final do século XVIII e início do século XIX, um dos preferidos de Lucia, cuja sólida formação musical erudita, iniciada ainda no Brasil e concluída em Londres, aliada ao especial talento, a habilita a navegar com extrema desenvoltura, consistência e leveza pelos universos clássico, popular e jazzístico, captando de todos eles elementos que ora dialogam, ora se fundem com nítida pertinência, ora se contrapõem, erigindo vibrantes contrastes.

Ao conceber o projeto de seu segundo álbum, a flautista brasileira mergulhou no período histórico de sua preferência, empreendendo viagens físicas e interiores pelo sul da França e pela região da Liguria, na Itália, experimentando atmosferas e ambientes próprios dos impressionistas. Nesse amplo e delicado tecido de afinidades eletivas, as cores e sugestões de pintores como Monet, Matisse e Manet e a trajetória musical de Debussy e Ravel compõem um rico manancial de fontes com as quais o pensamento musical da intérprete — que agora também nos apresenta a face de compositora — se harmonizou de modo intenso.

 

 

©petronio cinque

 

 

Nesse quadro, compreende-se a razão da escolha de "Enchanted Garden" como primeira faixa de Impressions. Trata-se de peça de sua autoria, escrita para flauta solo, que se abre com uma bela melodia inicialmente lenta, e que, gradativamente, adquire adensamento rítmico e melódico, construindo escalas de tons inteiros, já sugerindo, em seus compassos, muito do trabalho depois desenvolvido nas faixas subsequentes do álbum. A flauta atravessa o tempo e suas escalas de tons inteiros dão forma a pensamentos, espessuras, colorações e até mesmo temperaturas. Como diz a própria compositora, "Enchanted Garden" foi concebida como uma homenagem a Debussy, inspirando-se em Syrinx2, conhecida obra do compositor francês, datada de 1913, igualmente escrita para flauta solo e considerada indispensável ao repertório dos flautistas. "Enchanted Garden" foi desenhada por Lucia Viola como uma espécie de continuação da obra de Debussy, e, portanto, trazendo a mesma fluidez de Syrinx, com ela dialoga de um modo bastante especial, valorizando os sons de duração mais longa, realçando os silêncios prenhes de música, e, por vezes, tecendo uma ode em torno deles. Nenhum silêncio é supérfluo, nenhuma pausa é gratuita. Os espaços entre os sons permitem ao ouvinte assimilar com suavidade o estranhamento gerado pelas escalas de tons inteiros. Fragmentos melódicos decrescentes sucedem-se na parte final da peça, que se encerra num espaço de suspensão, grávido de ideias sonoras. "Enchanted Garden" contém em si uma muito bem engendrada síntese dos elementos desenvolvidos ao longo do CD.

"Aesthetic", a segunda faixa de Impressions, é de autoria de Chris Wells e foi composta para flauta e piano. O ritmo, bem acentuado pelo piano de Michael Richards, precede a trama melódica apresentada pela flauta. Células rítmicas são expostas num encadeamento que sugere uma procissão de indagações e respostas, em sinuoso fraseado. A peça também recebe a influência dos impressionistas, evocando melodias e harmonias de Fauré, ao mesmo tempo em que se conecta à obra pictórica de Matisse. 

"Vila Real", para flauta e piano, traz timbres mais graves e, em sua bem urdida espessura, as frases vão estruturando movimentos ondulatórios ou pendulares quase incessantes. Mais uma vez, o perfeito entrosamento dos intérpretes garante belos momentos e depurados contrastes.

"Les feuilles sur le Vent", composta por Lucia Viola para flauta solo, tem sua ideia musical inicial nascida de um passeio à casa de Maurice Ravel, Le Belvédère, em Monfort-l'Amaury, nas imediações de Paris, na qual o compositor viveu entre 1921 e 1937 e que hoje se transformou em museu, conservando-se do modo original, inclusive com o piano do músico. A trama melódica e rítmica sugere um intenso movimento de folhas a rodopiar em um jardim. O caráter cíclico, índice de retorno e renascimento, também está presente na peça. Os solos da flauta trazem motivos musicais que vão se repetindo com mínimas variações, expandindo-se à medida que as frases começam a ralentar.

A faixa seguinte, "Bom Retiro", de Chris Wells, recebe o nome de um antigo parque de Madrid. A influência da música espanhola é explícita. Flauta e piano, em duo, acabam por sugerir o som de guitarras e evocam os passos de dançarinos, ao cair da tarde. Sente-se a atmosfera ibérica máxima, com seu inconfundível calor. O mimetismo instala-se na flauta. Sopro em forma de dança entre braços, luzes e muitos compassos. É imperativo registrar que a presença da influência musical ibérica/espanhola também está presente em outras faixas do álbum Impressions, como, por exemplo, em "Alcântara". A mesma influência já se fazia sentir em Sundial, com o realce decorrente da presença dos vários instrumentos de cordas.

Em "Caravela", de Wells, ondulações nascem dos arpejos do piano e se prolongam pelas frases da flauta, que, em tom de fluidez, reencontram com maestria a longa tradição que liga simbolicamente a música ao mar, como bem disserta José Miguel Wisnik, em "O som oceânico e os delfins de Apolo"3.

A flauta de Lucia Viola, móbile, percorre, na medida certa, instâncias sinestésicas e onomatopaicas. Em "Etude", de Lucia, e em "Adieu", de Wells, camadas de iluminação despontam no fraseado, re/descobrindo clareiras, na bem dosada utilização de ornamentos, efeitos e contrastes tímbricos. "Isabella", talvez a mais brasileira das faixas do CD, nasce como uma valsa-jazz de Wells, que, dançando entre alicerces eruditos, deixa entrever, uma vez mais, o perfeito casamento tímbrico entre flauta e piano obtido pelos intérpretes. Em "Alcântara", da obstinada repetição de notas de base emitidas pelo piano de Michael Richards, brota a melodia rápida de linhagem híbrida, aludindo às características da música oriental.

E o ápice da presença dos elementos orientais se dá na belíssima faixa "Bali", de autoria da própria Lucia Viola. Nessa expressiva peça escrita para flauta solo, a intérprete/compositora passeia com desenvoltura e suprema naturalidade pelas escalas de tons inteiros e pentatônicas, colorindo os motivos rítmicos que se repetem e se desenvolvem de modo quase minimalista. A música é o resultado estético das várias experiências e pesquisas de Lucia com a música da Indonésia. Seu interesse e conhecimento das sonoridades produzidas pelas orquestras de Gamelão a levaram a tentativas de buscar uma espécie de transposição dos timbres próprios da percussão para a sua flauta. E o faz com pleno êxito, em "Bali".

 

 

©petronio cinque 

 

 

Como bem leciona Wisnik, a música dos balineses está entre as joias do mundo, tendo como uma de suas características mais representativas a imbricação entre o mundo rítmico e o mundo melódico, em que se sobressaem "percussões tomando a forma de alturas, as vozes tomando o caráter das percussões"4.

Escreve Wisnik: "O gamelão de Bali (ilha situada a leste de Java e famosa pelo requinte de sua tradição musical) é uma orquestra baseada em conjuntos de metalofones: instrumentos de percussão afinados, com os quais se constroem intrincadas tramas de ritmos e melodias (gongos, pratos, sinos, xilofones, etc). Toda a riqueza dessa música advém do próprio processo de extração de melodias do mundo das percussões, da conversão de timbres percutidos, vale dizer, de rimos, em alturas ordenadas. Os balineses tiram das pedras o leite e o mel das melodias, e o caráter percussivo que está na origem de seu som impregna toda sua terminologia musical, que, pouco teórica e muito prática, é quase toda onomatopaica. As notas das suas escalas ([..] que se baseiam num modelo diatônico do qual se extraem pentatônicas) são nomeadas, curiosamente, ding, dong, deng, dung, dang (correspondendo ao nosso fá, sol, lá, dó, ré): as alturas melódicas recebem, assim, denominação de caráter timbrístico e percussivo, que funcionam como perfeitas onomatopeias do gamelão"5.

Nas quinze belas faixas de Impressions, pulsam e desenvolvem-se múltiplos motivos musicais que, entre deslocamentos, diálogos contrapontísticos e sucessivas repetições celulares, vão se transmutando, para fornecer ao ouvinte os mais refinados elementos que compõem tanto a música ocidental quanto a oriental. O talento e a inventividade de Lucia Viola confirmam-se em todos os detalhes do álbum: na escolha sensível do repertório, na unidade de seu projeto poético, na beleza e no engenho das melodias por ela compostas, sobriamente distribuídas pelo disco, na interpretação capaz de realçar a dinâmica das passagens, as variadas texturas concebidas, o caráter cíclico dos temas, o encadeamento de melismas, que se alternam com notas longas de frases largas, nas quais a valorização do silêncio e dos intervalos é reflexo de uma significativa experiência estética.

As ressonâncias, progressões e onomatopeias presentes em Impressions, em delicado e elegante tratamento dos temas e surpreendentes e arrojadas ondulações tornam único o trabalho de Lucia Viola. Seu novo álbum exige-nos infinitas escutas — para navegar, circular, realimentar a vibração e a plenitude dos ciclos, das vozes, na tactilidade e na expressividade de massas sonoras de imprevisíveis rotas, em incessante mímese.

 

 

Notas

 

1Impressions, álbum de Lucia Viola. Sound Designs Music (PRS) Gravação, mixagem e masterização: Michale Richards. Fotografias: Marcus Oliveira.

2Syrinx, L 129. A composição de Claude Debussy para flauta solo, escrita em 1913, alude ao mito da ninfa Syrinx, que, perseguida pelo deus grego Pan, que por ela se apaixonara, pediu ajuda às ninfas de um rio, sendo, em resposta, transformada em juncos, a partir dos quais Pan moldou o primeiro conjunto de flautas. A peça de Debussy, indispensável ao repertório dos flautistas, é considerada a mais significativa escrita para flauta solo desde a Sonata em Lá menor, de C. P. E. Bach, escrita cerca de 150 anos antes.

3,4Wisnik, J. M. O Som e o sentido — uma outra história das músicas, capítulo "Composição das Escalas", p. 71-73.

5Wisnik, J.M. O Som e o sentido — uma outra história das músicas, capítulo "Composição das Escalas", p. 94.

 

 

Referências

 

CAMPOS, Augusto de. Música de Invenção. São Paulo: Perspectiva, Coleção Signos, 1998.

MARSICANO, Alberto. A Música Clássica da Índia. São Paulo: Perspectiva, Coleção Signos, 2011.

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido — uma outra história das músicas. São Paulo: Campanhia das Letras, 2.ed., 1ª reimpressão, 2001.

SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

STRAVINSKY, Igor. Poética Musical em 6 Lições. Tradução de Luiz Paulo Horta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

 

 

Para ouvir/adquirir Impressions

 

https://soundcloud.com/sound-designs/sets/luciaviola-impressions<

www.luciaviola.com

http://m-phonix.com

 

 

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março, 2014
 

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta e ensaísta, autora de A Transmutação Metalinguística na Poética de Edgard Braga (Ateliê Editorial, 2013), Luas de Júpiter (Anome Livros, 2007), Alquimia dos Círculos (Escrituras, 2003), Planagem (Massao Ohno, 1998), Poema sine praevia lege (1993, finalista do Prêmio Jabuti). Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP, é formada em Direito (USP, 1983) e em Música (FASM, 1985). Coordenou projetos de arte e literatura entre 1994 e 1997, na Secretaria Municipal de Cultura. Recebeu em  2006 o Premio Internazionale Francesco di Michele de Poesia (Caserta, Itália). Foi Secretária-geral da UBE/SP e diretora da entidade entre 1996/2005). Participa de diversas antologias no Brasil e no exterior. Gravou com o músico Alberto Marsicano o CD Ressonâncias (poesia), lançado em 2010. Site: http://www.beatrizhramaral.com.br.
 
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