Cada um tem seu limite de fundar uma âncora

uma terra no fundo do mar

pernas pra cima sentindo o mundo

pernas sentindo o mundo

de água

 

o peso do mundo nos ombros

de ossos, carnes, sistema nervoso

boca aterrada, ouvidos mucos

de areia

 

cada um tem em seu limite de aterrar a cabeça na areia

seu limite de não voar

daí advém o surto

etimologicamente falando

 

 

 

 

 

 

Era a gastura em sua pança estorcida

nunca negou sua fome incontrolável

como quando viu os cabelos dela

e voltou para casa ruminando se ela não tinha cabelos demais

 

e se os comesse?

 

os comeu

 

após cortá-los pelo rabo na aula de biologia

 

a professora branca soltando o giz aos poucos

a classe boquiaberta voltando-se para ele

a tentativa rápida de deglutir o maço de mechas enfiado na boca

 

 

o laço de fita desfeito ainda boiava nos ares

quando ele conseguiu

 

 

 

 

 

 

Mito-coragem

em gigantesca mutação

 

de dois em dois

de par em par

se consolida uma sala com televisão

um carro na garagem

e vontades na horizontal

 

quando apaga a luz à noite

é quando lembra o porta-retratos

 

"um dia se recorta a revolução

 e se cola outra coisa em seu lugar"

 

quando fecha os olhos

há uma noite inteira de ires e vires

estalos credores

seus algoritmos

 

é sempre sem ritmo

o compasso do coração

e preocupa bem pouco já

o casulo

o consolo

essa bobagem toda de renascer

 

quando fecha os olhos

e não se lembra de tê-los aberto

uma só vez

 

 

é a coragem sem mito

que guia o sono

cria asas

voa longe

e o corpo vai na cama

em posição fetal

 

 

 

 

 

 

Um barco

uma nau sem leme

o mundo todo aberto e sem paredes

o infinito fazendo arruaça

um medo desgraçado da desgraça

a espera sentada por um príncipe-peixe

o céu sem recortes e sem redes

o real estampado sem escrúpulos

a solidão dos pescadores e dos brutos

e uma âncora do tamanho do mergulho

 

 

 

 

 

 

Intergentes falais

por códigos análogos

semiólogos espiais

pela espinha e sob o dorso

do dragão

a curvatura de um código-fonte

subdesenvolvido para ser manipulado

num grande laboratório de códigos-fonte

 

epistemólogos e matemáticos decifrais

se o movimento

qualquer movimento

é concebido a priori

se for

e de fato parece ser,

juristas compadecei-vos

das inúmeras rédeas sem dono

que constam nos autos

 

e

poetas

afundais

porque já é ávida

e movediça

a lavra da palavra

cuja grafia começou

ontem

 

 

 

 

 

 

Filosofia da seca

metafísica das rochas

um punhado de sal

no éter

oito sóis apagados de Andrômeda

uma mulher vestida de seda

a palavra amor enterrada

na areia, no coito

um camaleão cinza

a ciência do abandono

 

outro dia te vi

absorto

fazendo as contas do teu pessoal

dando baixas no teu pessoal

porque o coração é um músculo breve

 

 

 

 

 

 

 

Estar às cegas sobre as setas do caminho

buscar a certeza de não saber distinguir o distinguível

flutuar, não submergir

deixar voar o que nunca pertenceu à terra

não reter a alma, soltar

para o mar revolto das incertezas e das vontades

não dançar sob o céu à espera de deuses

não dizer uma só palavra que os reconheça

se ater aos papeis e aos seus conteúdos

ao verde das notas e  investimentos

devorar o pão miserável que os banqueiros entornam nos vieses dos navios

atrelar ao bem querer alguma usura

buscar sob a pele macia a carne dura

esfolar, trocar de pele

aventar possibilidade de retorno ao estado ameríndio do self

e plantar plantar plantar esperanças, depois vendê-las empacotadas

pelo preço mais baixo de mercado

nunca seguir o rio em sua trajetória até o mar

mas apagar a possibilidade de trajetórias

em nome da estática mão à palmatória

sem linhas

à espera da grafia da sabedoria

 

 

 

Desapega José

solta a pedra

salta a pedra

sai da pedra

vira ar

 

 

 

 

 

 

Iluminas palavras na madrugada continente

enquanto desbravas culturas agrícolas

iminentes

aos olhos dos senhores

do grupo dos 20

 

 

 

 

 

 

Eu não quero um Mercador de Sereias

para presidente

eu quero um Encantador de Serpentes

 

 

 

 

 

 

O eu vário não é fiel

se perguntado quantos lados tem uma estrela

ele dirá / todos

 

 

 

 

 

 

Uma porta vazia

alguém que já foi

ou quem nunca chegou

 

 

 

[imagens ©misha gordin]

 

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[Do livro 70 Poemas. São Paulo: Patuá, 2014.

Clique aqui para saber mais.]

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março, 2014
 
 
 
 
Ana Peluso (São Paulo/SP, 1966). Publicou 70 Poemas (São Paulo: Patuá 2014), que integra a Coleção Patuscada, premiada com o ProAC – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Faz parte de diversas antologias do grupo Anjos de Prata, Poetrix e TOC140. E de outras: deZamores (São Paulo: Escrituras, 2003), resultado do encontro de alunos de diferentes oficinas literárias virtuais do SESC SP, sob orientação do escritor João Silvério Trevisan; Moscas, em homenagem ao escritor guatemalteco Augusto Monterroso, com publicação da Dulcinéia Catadora, resultado da oficina literária do escritor Marcelino Freire no centro cultural b_arco; É que os Hussardos chegam hoje (São Paulo: Patuá, 2014) e Hiperconexões: Realidades Expandidas [primeira antologia poética sobre o pós-humano], organização do escritor Luiz Bras (São Paulo: Terracota, 2014).