Necessaire de
Pavonia As filhas do
sepulcro azul de André são pequenas deusas imantadas em minhas unhas
colorizadas, no sono dos apartamentos térreos. Perto das nuvens cotovias,
depois do 12° andar, elevo-me até seus ninhos, sendo-me flecha no algodão
de seus ovários silenciosos. Anjos, moscas
ou gaivotas, essas moças todas que um dia fui. Numeral algum
soletra a quantidade de vezes que citei seus nomes insubordinados. São
pontos de crochê no líquen das árvores seculares. Denderas,
sultanas, famigeradas, meus corpúsculos de andorinhas crepusculares na
casa do abismo. Gotejam na caverna efervescida do final do dia, quando a
passeata do sol precisa descansar estalactites. Quitinas negras e
cutículas violetas pelas manjedouras petrificadas. Morcegos,
cítaras ou lantejoulas, estas moças todas que a ti decantarei, com olhos
de botão nos corpos dos selvagens surrealistas. Sou apenas uma
taxidermista com ferramentas rústicas frente ao figurino do espelho
hi-tech. Primeira
moça É uma sineta
na brasa do cigarro. Seus cornos de lua em escorpião furam o lençol
vermelho. Distraída de cosmos, tomba pela microfibra dos pandemônios, com
sua luva de raposa dérmica. O plexo solar
é uma rosa inflamada, sem estalagem que a repouse como um agapanto roxo
pelos dormentes. Eu a chamei
como se invocasse uma borboleta ao contrário. Ela não cedeu pelas
dodecafonias e sumiu pelas frestas abruptas de meu monólogo, com uma
lacuna soluçante nos olhos de lagarta sutra. Sua
gargalhada histérica ecoa em minhas cicatrizes de agulhas. É minha
tatuagem indiana, meu retalho assimétrico pregado na extremidade do
esterno, aquele que me falta. Segunda
moça É um exército
de palafita na passarela escorregadia de minha bancada trabalhista.
Eu a colo,
osso a osso, até a construção de um castelo de cartas com naipes de cubo
mágico. É toda
geometria de lunetas pelas constelações entre
pirâmides. Seus nervos
de eletroencefalografia estão esticados eternamente nos sigilosos
códigos-morse da guerra fria. Eu a sondei
como se minha visão nublasse a correspondência desesperada entre
militares. Mas não decifrei seu esqueleto delicado. Era cera de
museu sua carne coletiva, derretida pelas articulações. Massa de parafina
amorfa no castiçal dos cruzeiros. Era nódulo
sul desnorteado. A coluna estendida entre a cabeça e a cauda do dragão.
Era e será. Terceira
moça Vespa na
xícara do chá de ligeia. É circular o seu terço de contas doloridas em
minha hora de descanso sobre a laringe das labaredas. É a capelã que apaga
a vela dos fiéis. Em sua
vértebra de vestal viúva, cantam os santos ocos com coração de
pavio. Cuida do
dilúvio pelas catedrais, para que o fogo não atormente os pássaros da
cúpula esquecida. Se não
lacrimejasse sobre as preces voláteis, o incêndio inconsequente seria a
eminência degoladora de sacerdotes eloquentes na tumba dos
vitrais. Tento
alertá-la para que alimente as chamas e deixe de molestá-las com sua
pureza de virgem lamuriosa: — Que se incinerem os institutos demonizados
pelo cancro das missas automáticas! Mas ela
soluça netuniana e me diz: — A clemência de uma lágrima tem a força
propulsora de um holocausto xamânico purificador. Não afaste de ti este
cálice. Quarta
moça É um estribo
na pata ferida do camaleão. O tormento másculo no teatro verde das
amazonas. Galopa pela
crina das aberrações florais. Passiflora, gota lenta de cascavel no guizo
fraco de meus tornozelos. — Deixa-me
ir! Grito para seus tímpanos de víbora acorrentada. Ela se
enfurece pela fibra das forcas entre nogueiras medievais e me enlaça
carbonífera, triturando-me na fissura de pangeia. Sou sua
trilobita, três vezes envenenada, na sala arqueológica
insípida. A moça
quaternária nasceu após a partida abrupta dos
dinossauros. É uma erva
espinhenta nos escombros de londres depois da peste
negra. E enrosca. E
cintila. E preenche a casa dos ermitões com sua fieira de
murano. Quinta
moça Albina como a
nata paradisíaca na irmandade incestuosa da neve, pois somos irmãs em
claridade no amanhecer da calota polar. Minha papoula
macerada no cadinho da dor muscular pelas maratonas. Beladona
grafitada em herbário fustigado de cinza equinocial. Ela esfrega
as patas no escuro vulto dos predadores, desprendendo um pólen anestésico
em meus dedos afundados pelas sementeiras
coloquiais. Mas não é um
broto tenro no nevoeiro. Antes, um ramo de arabescos prateados trincando o
gelo no cume da torre branca
hospitalar. Crianças de
medula selvagem gostam de ouvir suas histórias sobre os sentinelas
akáshicos, de um tempo onde o reino das águas claras era apenas um
principado sem moedas. Sexta
moça É um afluente
do Rio Ebola, não contaminada pelo carbono 14. Lava as epidemias que
ameaçam cavalos-marinhos. Era o que dizia quando passeávamos, atadas pelas
tranças finas de nossas conversas sobre os pergaminhos lacrados nas
garrafas de cabernets. Aprendíamos
com o garoto mandarim a linguagem das meninas prematuras, aquelas que
ditam salmos bélicos aos homens de boa placenta. Juntas,
éramos filhotes de águia, em círculo de nascituros, atentos ao futuro
nômade das incubadeiras. Pois devíamos ser milimetricamente ensaiados para
o controle da temperatura corporal enquanto a mãe das nuvens natimortas
nos envolvesse com seu rigor de evolução. Esta moça me
ensinou a persistência das gotículas. Era a temperança do tarô, distraindo
pavões com seus jarros equilibristas, sempre esvaziando ou transbordando a
guerra santa. — Para
temperar a ganância dos aquedutos, era o que dizia. Eu a
seguia. Sétima
moça Neste corpo,
descanso, capitular. Pois a sétima criatura já foi descrita na página 38
do camafeu escarlate, com as garras desertas da cortesã do infinito
transparente apontadas em esporão passeriforme para o alfabeto ornamentado
das iluminuras (especificamente sobre as letras que não mais se maquiam,
como estas moças, covas todas que um dia serei). ps: Poderia
descrevê-las apenas como projeções da histeria hormonal ou em fuga de
realidades com seus dramas cosméticos, batons e cápsulas, mas estaria
sendo desonesta, com a vida e com a poesia da
existência. agosto,
2014
Andréia Carvalho Gavita.
Autora de A cortesã do infinito transparente (2011) e
Camafeu Escarlate (2012),
publicados pela Lumme Editor. Participa do corpo editorial das
revistas mallarmargens e Zunái — Revista de Poesia &
Debates. Escreve o Hábito Escarlate. Mais Andréia Carvalho
Gavita na Germina |