Ana Cecília
assobiava o corpo balançava os
cachos sorria a
rua Ana Cecília
saboreava madrugadas mordiscava
pescoços sorria a
rua Ana Cecília
estupidificava o cinza zombava de
mesquinhez sonhava de
mares e trovões coloridos pensava em
desejos tantos transcorridos enquanto dava
o sinal para o ônibus do trabalho e ninguém dava
sinal para o ônibus como Ana Cecília Soltava o
peito, gritava vida, trepava fogo tomava meu
corpo como seu, dona de dentro e brincávamos
até latejarmos vulcões ardentes em uníssono e perdermos a
respiração em uníssono para nossas
peles nunca mais desgrudarmos, nunca, nunca mais, até o fim dos
tempos Deliciava-se
Ana Cecília de recuperar o fôlego lentamente pausadamente Fazia parte
do seu sentido Pois, dizia,
fumegantes vulcões ardentes demoram a
recuperar o fôlego E eu, o
idiota, eu, o imbecil, a deixei partir Demorei a
compreender que aquele respirar o esfriamento
e o fôlego o
aquietamento também faziam
parte da comunhão Ana Cecília
assobiava e balançava sorria a
rua Ah, mas faz
muito tempo. respiro de
Ana Cecília * quando
o mundo fosse doce talvez
despíssemos nossas peles, navegaríamos
mais leves do que nossas capas por
sobre nossas almas seríamos
uno estaríamos
vivos você
estaria junto estaríamos
vivos eu
estaria por completo estaríamos
vivos não
passaríamos somente de um lado para o outro de
uma pessoa para outra de
um momento oco para outro estaríamos
juntos eu
seria feliz estaríamos
vivos quando
vivos * Muito tempo
atrás, dois milésimos de segundos atrás, o corpo poderia não ter saltado,
os pés poderiam não ter perdido contato, a respiração ainda estaria
contida. O certo, porém, não haveria soluções, não haveria expectativas
inesperadas, desagradabilidades impressionantes, recompensas ultrajantes.
O salto poderia não ter sido dado, a visão continuaria baixa,
subcutânea. O ser está no
ar agora, dois milésimos de segundos depois, infinitamente à procura do
ar. E o que parece ser um voo, na realidade é o prenúncio da queda, é a
condição da queda. Mas, dois
milésimos de segundos de voo podem bem valer o
salto. dois
milésimos * que do teu
ser terno deixarás
rastros; porém, que do
teu amor soturno, levarei a
memória. rastros
* ainda há
muitas cicatrizes para serem feridas ainda para
serem vividas tantos amores
para serem sufocados sofreguidões
a serem desbragadas lembranças
magoadas cervejas
bebidas torresminhos
pururucas devidamente
apreciados No
entanto por
enquanto quedo-me
aqui quedar-se * Descemos a
Augusta, nem bêbados Eu e
Ele Ríamos de
piadas velhas, cochichávamos
segredos falsos, mijávamos em
esquinas escuras, xingávamos
quem nos proibia de fumar em bares (cá sabemos
bem o tipo). Suspirávamos
e lembrávamos de amigos passados que já não
desciam a Augusta e de Maria
Auxiliadora que nunca teve pena de nós e não
satisfez nossa libido juvenil na época
quando ainda tínhamos libido e bebíamos
Sangue de Boi tinto doce em garrafões de cinco
litros. Eu e Ele
trocamos um abraço, satisfeitos com uma noite que poderia
ser pior Estávamos
vivos Podia ser
pior Observei-o se
afastar pela madrugada, com a perna
meio ruim mancando-o de leve. Teve tempo de
se virar, soltar um Cuide-se e dar uma risada sem
fôlego, antes de
voltar para não sei onde. eu ele, ainda
vivos * Natural, vez
por outra, tentarem agarrar o tempo (como se
pudera encaixotar o Fluido). Isso já não é
mais possível pois carrego
eu o tempo, dentro de
mim. Sopro-o pelas
narinas e rugas. Ressuscito-o
pelas retinas e rusgas, o tempo me
come e regurgita-me todas as manhãs. Corta-me a
carne, com olhares desconfiados; corta-me a
carne, como velhos amigos que somos, ineludíveis
um do outro, como sempre fomos. Natural, vez
por outra, que ele pare. O tempo para, a sussurrar,
ansioso: "Já não se
foram todos os dias? Já não
devemos arrotar os volumes de areia? Já não
gozamos o puro e simples? E se
andássemos?" assim meio
acanhado, quase amedrontado. "E se
andássemos?" Eu o carrego,
como vêem. E, sim, quem
sabe coubéssemos de andar, desencaixotássemos
o fluido, desenrugássemos
o ser. Haverá a
hora, haverá a hora. e
tempo * me vestir de
escuridão. Tomarei do
vento o peito. Conterei
lágrima. Sulcarei a
madeira com motivos lindos e vãos, com desenhos
alongados e sutis, com letras
alongadas e pontudas, e a deixarei
de lado. Vou me vestir
de escuridão e me refugiarei nas dobras de uma
esquina de areia radioativa submersa. E beberei da
areia. E cada grão
queimará riscos, correrá do
peito queimando riscos, um grão por
um, um grão por
um. Me tornarei
quieto. Muito
quieto. Me vestirei
de escuridão. Me esconder da dor. Quem sabe, a
dor esqueça meu
nome. escuridão * saberá o dia
em que morra? saberá o
instante-zunido em que, fumaça por
fumaça concreta, pesará por
sobre almas para sujar
sua incontinência? desejará o
dia em que morra? em que sangue
por sangue, detrito por detrito, aluviarão os
corpos inconsistentes, as
consciências deformadas, os párias
acostumados? suportará o
dia das perguntas? sufocará o
enredo das desditas? se enforcará
com o tecido das mentiras? desprezará a
marca de ser humano, a
inconformidade de que, apesar de tudo, é ser humano, a necessidade
de, com tudo, menosprezará ser humano? jogará com o
revide?, com a chuva
ácida, com a luz demonha? chorará, sim,
chorará, pelo menos uma vez, uma solitária
vez? acompanhará
seu dever cumprido e dormirá em seu
travesseiro de pedra e metal? saberá da
morte? * Poesia é a
busca permanente da Dança
Primordial, não importa
se versa sobre a borra de
café derramado na pia, ou do brilho
das asas do anjo celestial, da ânsia do
amor perene do dia-a-dia, da porosidade
dos grãos da manteiga de cacau, ou da
melosidade venenosa e enfadonha do seu frias. Poesia pode
ser sobre a camiseta verde, ou sobre o
próprio verde da camiseta, ou sobre o
verde deitado no cinza do palestino morto enquanto
procurava outros cadáveres nos escombros, mais do que
nunca seus parentes. Pode ser do
verde sobre rosa da copa de
árvores a encobrir nascer do sol. Não se pode
dizer, no entanto, que Poesia não mentiria. Na verdade, é
a Mentira Primordial, em busca da
Dança Suprema. Enquanto
estamos vivos, poetamos. Você poeta
enquanto lê, sonha e deseja. Nós poetamos,
sim, eu e você, em uma
cumplicidade sorrateira que nem
imaginava existir. Estamos aqui,
eu e você, queira ou não, cúmplices de
Vida, cúmplices de
Morte. Acredite.
Pois se é Poesia. Portanto,
Mentira fundamental, beleza
existencial, Dança
exponencial. Poesia. poesia
primordial * Em primeiro,
a faca goza. Desliza pela
pele, descreve um
arco, desenha um Z
retorcido ou um S
medonho, cutuca um
osso. Os órgãos
jorram. Os fluidos
jorram. O sangue
jorra. Sem
problema: o sangue suja
as mãos, o chão, os uniformes; quase nunca
as consciências. Em segundo, a
bota goza. Pisa e
retorce, humilha e
reforça, esmigalha e
recomeça. Com biqueira
de aço reforçado, então, pode-se
inclusive treinar o futebol. Em terceiro,
talvez o mais importante, a História
goza. Esconde a
memória. Invisibiliza
o ser. Desumaniza a
pele que fazia parte de um ser. Embeleza a
faca. Retoca a
bota. Justifica a
sujeira espalhada no chão, de algo que,
mais do que reunião de órgãos, sangue e pele, há muito
tempo atrás, em tempos mitológicos, quem sabe?, era um
ser. Os atos não
precisam ser necessariamente nesta ordem. a ordem dos
atos * E se sou o
leite que escorre
devagar pelo seu queixo e embranquece
momentoso o bico dos seus seios? E se sou o
café que pela sua língua amortece seu
queixo e anseia
chegar no aconchego do seu umbigo? E se sou o
chocolate, quente chocolate, que pela sua
pele quente chocolate se confunde
com os negros fios lácteos do seu sexo? E se sou eu,
pendente de sua boca, dependente
febril do seu sexo, imiscuindo-me
penitente por entre seus seios, ansiando ser
devorado, bebido, tragado? E se sou eu,
tímido, frio e esmilinguido, esperando
ávido agoniado ser fervido pela quentura
esfuziante e efervescente dos seus
lábios? leite
quente * Quero lhe
dizer não, Preciso
lhe dizer — cuidado,
deixa o carro passar —, não pretendo
lhe atrasar mais, porém, é
muito importante — cuidado,
deixa a moto passar, deixa o sinal
abrir, cuidado,
deixa meu coração transbordar —, o pingo da
chuva gelada não acalenta
seu rosto: Gostaria de
lhe dedicar um poema urbano, uma trilha de
palavras paulistanas que lhe
ajudem a atravessar o dia, a secar o
pingo gelado na testa, a pisar pelas
listras molhadas da faixa de pedestre. Quero que
sinta este poema como o
primeiro gole do café da padaria, como a
primeira onda do cheiro da manteiga do pãozinho
na chapa, como a
primeira lembrança morna de nossos
corpos ávidos de calor noturno. E lembre que
o primeiro sorriso que lhe acordou nesta
madrugada aturdida de frio paulistano, o sorriso de
uma boca torta ainda sonolenta já saudosa
dos agasalhos insuficientes, este sorriso
que lhe aquecerá durante este dia inteiro mais do que
aqueles agasalhos insuficientes, aquele meu
sorriso, ainda que torto, ainda que meio-frio, foi a
primeira letra do primeiro verso deste poema
urbano que lhe dedico. poema urbano
para aquecer chuva * Há essa
pedrinha esquisita, doida, dura, incômoda.
Dentro de mim. Possui uma
nervura que estica, entrelaça, perdura, machuca.
Dentro de mim. E não quer
sair. E não quer
curar. Durante
períodos, consigo abafá-la, retê-la, enganá-la.
(ou engano a mim). É só um
curativo, porém. Um desalinho. Um band-aid
mental puído não pode
deter a repugnância da visão de como
vidas, tantas vidas, tantas precoces, se
transformam em sacos de carvão com tanta
facilidade, o horror da
facilidade!, o horror da
simplicidade de transformar seres em
pastas de sangue!, da
indiferença de moer ossos em montes de areia, de triturar
anseios e sonhos em fumaça de napalm. E digo Não
quero ver. Reconheço Não
quero saber. Confesso Não
quero sentir! Mas… não
sentir…?! Não me é
possível. Seria como me
tornar um assassino por tabela. Seria como
chupar o sangue dos dedos do assassino. Essa pedra
dura se mexe, ferve, incandesce,
marca como
ferro candente, provoca essa
ferida que nunca se cura. Dentro de
mim. pedra incandescente
dezembro,
2014
Claudinei Vieira. Prosador
(contista, resenhista, cronista), poeta (em formação),
autor participante
em algumas antologias (em livros) e em vários sites de literatura e
cultura, organizador
de eventos literários pela cidade de São Paulo (em calmaria, no momento).
Autor de
Desconcerto (contos, editora Demônio
Negro).
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