AFINANDO O
SANGUE lamento mas
meu coração
não quer mais saber de lamentação quanto mais
ele for coração
mais ele irá cantar essa canção sinto muito
mas meu coração
não irá cortar outro coração meu coração
não quer
mais saber de escoriação quanto mais
ferido ele tiver
mais ele irá cantar essa canção amor, eu vou
cantar e cantar e cantar
até calar essa sede de canção do meu coração meu coração
não irá cansar
até encontrar outro coração quanto mais
perdido ele tiver
mais ele irá cantar essa canção meu coração
não será mais um encouraçado
atirando para tudo quanto é lado ele estará
mais para uma fronteira frágil,
uma fortaleza fácil entre a flor e o aço afinando o
sangue eu vou pedir perdão
até que meu coração fale como uma oração amor, eu vou
cantar e cantar e cantar
até calar essa sede de canção do meu coração UNIVERSIDADE
FEDERAL primeiro eles
amarraram o
poema na mesa de
cirurgia e o
drogaram e o
intoxicaram durante
semanas com toda
forma conhecida até o
momento de artigos
ensaios teses e dissertações eles se
dedicaram eles
realmente se esforçaram para anestesiar as simples e
naturais capacidades
expressivas do poema depois seguindo o
procedimento padrão eles tentaram
retirar cada um dos seus órgãos isolaram
verso a verso as veias artérias
aurículas e ventrículos enfim todo o
sistema vascular e circulatório do
poema mas mesmo
assim os órgãos
continuaram pulsando separadamente para surpresa
e desgosto de todos os doutores em literatura
presentes os órgãos
internos do
poema apresentavam de forma
insuportavelmente musical e
intoleravelmente ritmada a mesma
arritmia lírica que o autor
havia denunciado em muitos
momentos simples espontâneos e
aparentemente sem significância de sua
biografia como isso era
possível? eles
simplesmente não compreendiam como aquele
poema sem rigor
científico algum depois de
completamente e
meticulosamente esquartejado poderia ainda
estar vivo o que eles
fizeram então? eles isolaram
a área lacraram as
portas cimentaram as
janelas queimaram
todas as evidências distribuíram
cianureto para todos os envolvidos pois não
poderia haver registro ou testemunho
futuro que
comprovasse uma falha assim um fracasso
como esse poderia muito
bem comprometer seus
currículos lattes para sempre e arruinar
suas carreiras na universidade depois
disso os poucos que
restaram após semanas
e semanas de muitas
mesas de discussão de
literatura chegaram à
seguinte conclusão lida em ata
pelo mediador ao final da
sessão: — visto
que ele não pode mais ser apanhado e que
os seus poemas não quiseram
colaborar conosco, teremos que
pôr em prática o plano
B... algum dos
ilustres doutores que
acompanharam o caso Koproski... por acaso
sabe onde mora a sua
musa? CANÇÃO DE
AMOR E ÓDIO onde você
estava que ainda COMO É
DIFÍCIL FAZER UM REFRÃO se teu
coração está com fome se teu
coração está cansado se teu
coração parece que foge a cada novo
machucado coração, toma
cuidado coração, fica
aqui do meu lado canta pra mim
uma canção alcança pra
mim outro coração se teu
coração esfria com razão se teu
coração ferve teu sangue se teu
coração procura outro coração como uma
canção de Neil Young como é
difícil fazer um refrão quando você
não está aqui, e pra que
serve uma canção, se meu coração
não alcança teu coração? AS FLORES EM
GREVE DE FOME enquanto você
me fala que entre
nós as flores em
greve de fome forçada o sonho ainda
com sede as gatas
ainda com sono a gente na
mesma sintonia da antena da
tevê quebrada enquanto você
me fala que meus
poemas são tão necessários quanto um
relógio parado ainda penso
que mesmo parado o
relógio marca 2 vezes
por dia a hora
certa enquanto você
me fala sobre dias
sem piano da roupa
amassada da casa
desarrumada do sonho de
uma vida inteira das árvores
estourando a calçada da pia
enchendo de pratos ou da chuva
há dias comandando
uma verdadeira invasão através das
goteiras enquanto você
me fala disso
tudo ao invés de
lavar a louça ainda fico
aqui lavando palavras nessa página
em branco encardindo
dia após dia essa página com meus
versos enquanto você
me fala do livro do
amor o evangelho
do desejo se abre à
minha frente e
eu ainda com as
mãos nas coxas
pálidas das páginas leio com os
dedos seu rosto seus braços
suas mãos seus olhos
fechados acesos leio com a
língua seus joelhos seu umbigo
sua nuca suas
pernas seus
tornozelos leio toda a
sua pele toda a
epiderme das páginas desse
livro que sou eu e
você enquanto você
me fala que entre
nós as
flores, seus dedos
brisam por minhas
costas e uma
suavidade impera sobre todos
os segredos YOU'RE MY
WOMAN assim que
você chegou, eu vi [Do
livro Retrato do artista quando
primavera. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014] * De 5 em 5
minutos enquanto
chove passa todo
ônibus que não é o meu de 5 em 5
minutos a máquina do
mundo engasga, as suas
engrenagens perdem fôlego e ela tosse
sangue e óleo queimado de 5 em 5
minutos a máquina do
mundo vê mais um poeta
no meio do caminho e sem pensar
duas vezes o atropela de 5 em 5
minutos chove e chove
e chove de 5 em 5
minutos se passam
muito mais do que cinco minutos de 5 em 5
minutos uns morrem de
câncer outros de
solidão de 5 em 5
minutos a solidão foi
tomando um a um os
seus órgãos de 5 em 5
minutos a solidão foi
comendo mastigando
ele por dentro até que um
dia acabou morrendo de solidão
generalizada de 5 em 5
minutos ainda
chove de 5 em 5
minutos os sonhos
crescem como ervas daninhas em teus mais
belos e conformados jardins da
mente de 5 em 5
minutos novas formas
de beleza são
inauguradas e perdidas para sempre na tua
frente de 5 em 5
minutos em pleno
inverno os ipês têm a
sublime audácia de expor suas
pétalas roxas para nós mais
uma vez de 5 em 5
minutos a vida não
pode perder seu tempo com esse poema de 5 em 5
minutos a menina de 4
aninhos tem seus
bracinhos e costas queimados por pontas de
cigarro de 5 em 5
minutos há mais de
três meses a menina de 4
aninhos está sendo
estuprada de todas as
maneiras que se possa
imaginar de 5 em 5
minutos um caminhão
se perde na curva e esquarteja
gérberas quando corta
de fora a fora pela linha de
cintura uma mulher
grávida que esperava
o ônibus de 5 em 5
minutos as árvores
são asfixiadas pelas sombras
tóxicas dos edifícios de 5 em 5
minutos os rios
morrem afogados em triste sujeira e suja
tristeza de 5 em 5
minutos a chuva não
limpa mais nada de 5 em 5
minutos a chuva suja
muito mais do que
simplesmente a roupa no varal ou a
inocência dos desavisados ou a
ingenuidade dos distraídos de 5 em 5
minutos violências
inimagináveis passam a ser imagináveis por
alguém bem perto de
você de 5 em 5
minutos almas de
alfazema morrem de doenças
seguramente erradicadas há mais de um
século em meu país de 5 em 5
minutos a menina de 4
aninhos vê uma
minipétala de sangue crescendo no lugar do
que um dia seria seu seio ao ter seu
primeiro mamilo arrancado de 5 em 5
minutos se passam
muito mais do que cinco minutos de 5 em 5
minutos ninguém mais
se lembra do que
aconteceu com a menina de 4 aninhos ou com a
mulher grávida ou com a
chuva ou com as
árvores de 5 em 5
minutos somos
intoxicados por um amor que nunca
será o bastante de 5 em 5
minutos você pode
optar pela urgente veloz e
ingrata corrida dos ratos ou pela sábia
e paciente renúncia dos gatos de 5 em 5
minutos novas doenças
estão sendo criadas para conter o
avanço de seus filhos e dos filhos
de seus filhos para evitar
que o nosso inadmissível fracasso se prolongue
por muito mais tempo de 5 em 5
minutos nossas ideias
de felicidade se
espatifaram entre a gente de 5 em 5
minutos hoje eu ando
devagar com cacos de
sonhos fincados nos
pés de 5 em 5
minutos volta a
chover novamente de 5 em 5
minutos enquanto
chove eu vivo
aqui esperando o
ônibus junto com a
mulher grávida, a menina de 4
aninhos e a
chuva LIVRO DO
SONHO o sonho está
conquistando células, inaugurando músculos e ossos. o sonho está tomando
corpo, ocupando espaço em mim. o sonho não pede licença, quando menos se
espera está abrindo caminho entre livros, discos e fotografias na estante.
o sonho está rasgando seu caminho entre as coisas certas e conformadas que
se decantaram ano após ano em mim. o sonho agora está revirando meus
pertences, desafiando e desfiando a segurança que eu vestia, desarrumando
um a um meus armários de resignação. o sonho já conquistou artérias,
angariou veias e músculos dissidentes em mim. o sonho nesse momento está
persuadindo outros órgãos com suas ideias febris. o sonho não se contenta
com pouco. o sonho aos poucos está tomando corpo. e mais uma vez estou em
desvantagem, tentando inutilmente equilibrar do lado de dentro essa pilha
de ideias perecíveis, certezas solúveis e crenças falíveis entre frágeis
catálogos de musas em desuso. eu tento andar sem deixar nada cair. mas o
sonho se levanta com sangue, músculos e ossos num corpo a corpo sublime e
inglório contra mim. POEMA PARA AS
MÁS LÍNGUAS busque teu
ódio novas mágoas, mais invejas
e mesquinharias pode mirar
toda a tua artilharia em mim ou na
minha poesia pois eis que
visto apenas uma armadura
de epiderme, só o que o
coração me der à prova de
teus beijos de berne se teu
coração tem cãibras de tanto ódio
acumulado ou é apenas
sua estupidez entupindo as
veias e vasos não sei mas
em todo caso contra ti não
levanto a mão, poesia, muito
menos coração dou só a
outra face da página ou o verso de
meu rosto estampado na
lâmina da lágrima pois onde
você apenas vê uma página em
branco, eu sei a
pureza inabalável: minuto a
minuto da multidão calada, os séculos de
silêncio em cada página
sonhando acordada VERÃO DOS
VENCIDOS só queria
acabar infinito no céu aberto
de qualquer livro a me fazer
perceber isso: se vou viver
depois de vivo amor, não sou
convencido às vezes nem
sei se consigo convencer a
mim mesmo de meus
delírios ou delitos os vencedores
que fiquem com suas
súplicas e pedidos a eles prezo
o meu desprezo só sei do meu
amor aos vencidos, aos que têm
cacos de vidro debaixo da
pele, entre os ouvidos. um dia a vida
ainda vai ser isso: noite mais
noite o fogo ri o teu brilho CAMÕES,
VEJA SÓ ONDE FOMOS PARAR enquanto
as vítimas cumprem pena de vida os
estupradores têm aposentadoria garantida policiais
matadores ganham por periculosidade e
assassinos e torturadores morrem tranquilos no
país onde Menguele morreu dormindo os
medíocres é que são bem-sucedidos eles
têm uma vida financeira estável e
uma velhice pra lá de confortável aqui
os farsantes ganham prêmios literários e
cobiçam o dinheiro de leis de incentivo escrever
não é mais uma questão de estilo mas
uma barrouquidão de tantos ais Camões,
veja só onde fomos parar: agora
só os idiotas se tornam artistas passam
a vida esculpindo inconstâncias um
a um cada qual imortaliza seu nunca mais os
mais idiotas pensam em mudar o mundo e
morrem por isso e por isso morrem demais enquanto
os artistas se contentam em sonhar com
seu nome em mármore nos jornais Os
piores poetas morrem em grandes salões ovais, com roupa de gala e ao som
de impecáveis quartetos de cordas. Os piores poetas morrem laureados por
inúmeros prêmios da academia, reconhecidos pela crítica especializada como
dicções únicas da literatura de sua língua ou de seu país. Os piores
poetas, quando morrem, deixam seus bustos e poemas esculpidos em mármore
no hall de entrada das universidades. Os
melhores poetas, quando morrem, deixam apenas seus poemas esculpidos em
sangue. Os
melhores poetas quando morrem, deixam
apenas seus
poemas esculpidos em sangue no
meio da rua, no
meio das nuvens, no
meio das árvores no fim de tarde e
no meio das páginas de tuas coxas, poesia sim,
poesia, os
melhores poetas morrem desvendando
as palavras em
tuas pernas cruzadas sim,
primavera, os
melhores poetas morrem com
teus seios pequenos em suas mãos enquanto
seus dedos dizem em
sigilo em tua pele uma oração sim,
primavera, os
melhores poetas morrem enquanto
você cruza as pernas e
espera pintando
as unhas com
o sangue das gérberas os
melhores poetas quando morrem, deixam
apenas seus
poemas esculpidos em sangue sim,
primavera, porque os
melhores poetas quando dormem, sonham
com seus
poemas esculpidos em fogo no
meio da lua, no
meio das nuvens, no
meio das árvores no fim de tarde e
no meio das páginas de
tuas coxas [Do
livro Retrato do amor quando
verão, outono e inverno. Rio de Janeiro: 7Letras,
2014]
agosto,
2014
Fernando Koproski (Curitiba/PR, 1973). Publicou a trilogia Um poeta deve morrer, composta pelos livros: Nunca seremos tão felizes como agora (7Letras, 2009), Retrato do artista quando primavera (7Letras, 2014) e Retrato do amor quando verão, outono e inverno (7Letras, 2014). Organizou e traduziu as antologias poéticas de Charles Bukowski Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém (7Letras, 2005) e Amor é tudo que nós dissemos que não era (7Letras, 2012), bem como a antologia poética de Leonard Cohen Atrás das linhas inimigas de meu amor (7Letras, 2007). Mais aqui. Mais Fernando
Koproski na Germina |