©francesca woodman
 
 
 
 
 
 
 

 

5

 

 

Quando me deparei com a letra escura e triste, quase apagada na página amarelecida do livro, certo estalo de luz principiou ao meu sentido. Eu não via o quanto Charlote tremeluzia? E aquilo tudo, toda aquela maldade não advinha da ignorância socrática, e o fato de Charlote nunca se enternecer pela gargalhada de uma criança era fonte de insegurança mais profunda que o medo e também mais infeliz.

Charlote era assim. Hoje as crianças não sentam em suas costas quando ela se debruça ao chão imaginando as misérias do seu coração-tanto-quanto-desumano, coração que tende à insânia velhaca. Mas aquela palavra, aquela curta palavra "neutro" escrita, espichada ao máximo, avizinhando certo acolhimento, dizia mais que nossa vida em conjunto. A alma de Charlote se abria diante dos meus olhos, enchi-me de alegria e terror.  A neve está desfeita.

Revisito cada detalhe da dobra, do corpo cheirando ao suor úmido outrora exalado. Charlote combinava com os trovões, com os dias de chuva incomuns nos quais os primeiros elementos a chegar são os relâmpagos. Não se pode adivinhar o que o cheiro da chuva nesses dias faz com as estacas íntimas. Elas fincam forte, emperram-se, empalamento eterno desse órgão motor máximo que é o coração. Então a luz não veio? Que maldição. Quero um odor cristalino para dentro do meu túmulo, quando a letra não queimar mais o papel, quando seremos devorados pela continuação esmagadora da mortevida

Carta para Charlote:

Durante todos esses anos desviei minha atenção daqueles matizes e hoje — desavisada — enquanto a mesma chuva esmaga a terra prazerosa, sinto estalar no corpo toda lembrança de te tocar nesse vão. Não sou mais a mesma. Não és mais a própria, mas é preciso que dona morte venha tatear a nossa porta, é por ti que meu coração goza, Charlote. Tenho como maior exemplo da vida, da vida amalgamada que pulula alegremente, aquela noite onde eu, tu e Raná saíamos do cinema. Acabávamos de ver um filme intrigante (Raná riria dessa expressão) e quando saímos da penumbra da sala encontramos toda sorte de chuvas no céu. Resolvemos desarrumar nossos cabelos, molhar nossas roupas, mas aí, bem aí, existia algo de mais profundo do que era visível aos nossos olhos. Eu e Raná pisávamos com força as poças de água, poça sobre poça, deixávamos no reflexo todos os nossos destroços. Reclamávamos da falta de vinho e tu, Charlote, andavas enevoada pela sensação que o filme impregnara em nós; aquela sensação da comichão inevitável das pequenas delicadezas, das coisas raras que cintilam ou de um grande amor que se vai ao longe. Eu te via com o finalzinho dos olhos, fingia que as poças eram nosso fundamento depois de ter sido presenteada com as ondas de Virginia, não desgrudava minha atenção de mulher escondida em tuas nuances. Alguma coisa de toda a minha vida estaria marcada para sempre no teu modo de existir naquelas poças. Foste embora, Charlote, no primeiro carro que passou, não dera adeus nem a Raná, nem a  mim, nem te lembrara da casa do sentido vermelho onde podias te refugiar. A casa... nem sabia... naquele dia voltei como quem reúne os pedaços e te encontrei parada na porta da taberna do teu pai, próxima à igreja que nos apavorava, ah, não podia deixar de olhar bem dentro do teu olho cavando algum ponto claro de sentido, porque esse olhar espectral e de semente, inundada de erva, só se vê uma única vez. Ao menos foi assim para mim. E voltei refugiada para a casa, louca por alguma coisa tão turva... não pude deixar de oscilar para dentro, de alcançar teu âmago que dançava à minha frente como uma bailarina morta e vaporosa. Lembra que fiquei sem falar durante meses? Ainda hoje aprendo o abc de tudo aquilo que me cega. Não proferi palavra, aquele dia ficou retido na minha retina como o fundamento do amor, como se eu já estivesse viva antes de viver.

 

 

 

 

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PASSAGEM COM CACTOS

 

 

O poeta conheceu aquele quiromante afeminado professor de filosofia, inusitada a mão magra e escura do professor surpreendendo os segredos do futuro do poeta, pareceu irrealizável. O silêncio sombrio da desesperança apontara-lhe tanto o peito que daí a alguns dias passaria a pensar exaustivamente na morte, obsessão tamanha sugando-lhe a fonte da juventude, mas não antes de observar — pasmo — o professor ser atropelado por uma moto desgovernada na saída do Limbo. O corpo esfacelado no chão inflamava o olho do poeta [repensar a existência quase o convenceria de que estar vivo é uma vicissitude desnecessária, a ficção idiota de "um dia", entretanto, ao retomar o fôlego para mais uma virada, dias após o ocorrido, levaria até o cemitério a beleza meio póstuma de um cacto com flores amarelas o qual batizara de Pierre — o semivivo. Coincidência ou não, também eu havia comprado um cacto, sem flores, doei-o ao atropelo do tempo, a quem estivesse lá onde a carcaça não pudesse alcançar, não era como o cacto do poeta, mas uma menina, uma cactiza que curtia a manhã de sol na casa, que via o amor esbaforir sem sofrimento,  cactiza da minha extensão humana, viva, lá na frente, emancipada de qualquer outro tempo. Charlote não entende, pensa que poderia ser a única. E penso bastante nessa cena de fotografias retalhada na memória, Pierre no cemitério em meio aos mortos menos morto do que eles enquanto observo a cactiza esvair sua força verde até vazar minhas dores. O poeta chora vez ou outra, mas sou eu que vou pingar duas gotas de água cristalina no cacto dia sim dia

não tenho experimentado a madrugada como nunca, a manhã na qual a cactiza reina tem ferido meus olhos e tenho gostado de espaços mais em branco entre uma farsa e outra. Quando posso provar o espaço? Porque plantar no mundo coisa tão desnecessária enquanto os pés podem estar no ar. Tomei a água de Lete, não só os recentemente mortos bebericam seu precioso líquido, os há muito tempo mortos também, como Charlote, como Pierre, como o professor de filosofia e sua mão mais que escura e, e, e,

 

 

 

 

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Primeiro dia, primeira vez. Apaziguamento da memória. O traço vertical do rosto de Charlote na penumbra do quarto, a sombra disposta na parede. A mão fria na estrutura quente, eu ardia em febre, depois disso a cãibra e a peste acometeram o corpo. Andei doente depois do primeiro contato, estrangulada. Contato primitivo, manhoso, rudimentar. Torno a mover-me na pretérita esfera, no mesmíssimo lugar e encontro Raná dormindo no chão, a manhã invadindo nosso cansaço, a noite não dormida espreitando o movimento das mãos envergonhadas pela luz, afrontando o cruzamento no olhar. O som estalando porque a muito não reiniciávamos a voz de Elis. Quando dei por mim, lá estava, distendida, compacta, espessa, Charlote dormia tranqüilamente, vencida, insipidamente abusada. O azul claro no céu perdia a rua, as pessoas comprando pão, tomando café, os estabelecimentos abrindo, os passarinhos acordando, os primeiros sons despertados anunciavam a presença do movimento matutino... Precisei abandonar a cama, o quarto, sair dali, Charlote, ali, ali, ao meu alcance, poderia tocá-la, a permissão, a fragilidade do sono exposto. O toque lascivo como a água se derramando sobre a rocha. Apanhei Fernando, nessa época chamávamos de forma íntima nossos autores preferidos e, desatinada, entrei no primeiro boteco, ficções de interlúdio debaixo do braço e todo aquele vapor na sensação. Pensei no regalo, aprazimento e felicidade. Quão estranha era ao instalar-me na soleira do dia, em voz alta recitei: "o ar que respiro este licor que bebo... como hei de concluir as sensações que a meu pesar concebo..." e as lágrimas desceram livres e sinceras pelo meu rosto. Reconheci o esquema súbito no qual me insinuara, a instância significativa do amor que nascia livre, exposto, via e via e abria os braços ao que vestia o futuro.

Pedi o café.

As outras tantas, Charlote, ficaram pequenas, e agora retorno ao centro da arena, bufando, o lenço vermelho coberto de fragmentos de pele. Quanto tormento caído como as folhas secas espalhadas no chão do outono, depois nos tornamos algo, o amontoado de caras e vertigens que formavam a mandala compassiva. Nós, os cinco, porque agora nos considerávamos um número, éramos como o flagelo que pulveriza desabrigados. Formávamos o núcleo de prazeres anormais. Raná, Ariel, o poeta, eu e tu Charlote. Íamos até onde o limite nos apavorava, antes disso não havia obstáculo plausível, ultrapassávamos a cerca viva adormecida, a cúpula se abria inteira, não visava a nossa fome, a nossa sede de absoluto. Nós, os habitantes da casa, explosão iniciadora, inoculadora do submundo dentro da explosão total do mundo.  Que gosto batizaria a nossa ação, Charlote. Não o gosto azedo do engulho, antes o alívio de após o vômito. O alívio.  De imediato era o nada, mas o nada crescia, bebia proporções inimagináveis, aninhava-se ao peito, no nosso peito e no peito de mais alguns. Os outros. Éramos servidos por essa instância da existência, silenciosos, macios e às vezes assassinos da época que nos negávamos a viver. O vertudo — a torre solene que se erguia através de nós vazava formas ousadas que serviam de alegoria a nossas dores extravagantes. Nenhum de nós estava na época certa, Charlote, a época não nos nascia. Reverberávamo-nos por cima dela, nada parecia tão inútil ou mais deslocado que o mundo, o planeta, o homem — essa abstração inexata da nossa natureza. A humanidade sempre fora assim e a casa era a arca primeva e nós os primevos animais a adentrá-la. Fazíamos como Noé, Charlote, dançávamos e assoviávamos enquanto deus engolidor tosava o mundo com ânsia, e quando a escuridão chegava e algum rosto lívido soçobrava à luz da vela, a mão estendida, vinda do desespero, tocava-me a face, a matéria lapidada, uma duas três vezes até entender que o amor é uma aparição vinda do primeiro nada desabrigado de espera.

 

 

 

[Do livro A casa do sentido vermelho. São Luís: Pitomba, 2013]

 

 

 
agosto, 2014
 
 

 

Jorgeana Braga. Publicou Janelas que escondem espíritos (poesia) e A casa do sentido vermelho (prosa). Algumas publicações intermediárias, e inéditos: Cemitério de espumas (encenado no teatro), Abololôs: poemas para caixa de fungos e Sangrimê (prosa). Nasceu e vive em São Luís, Maranhão.

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