5 Quando
me deparei com a letra escura e triste, quase apagada na página
amarelecida do livro, certo estalo de luz principiou ao meu sentido. Eu
não via o quanto Charlote tremeluzia? E aquilo tudo, toda aquela maldade
não advinha da ignorância socrática, e o fato de Charlote nunca se
enternecer pela gargalhada de uma criança era fonte de insegurança mais
profunda que o medo e também mais infeliz. Charlote
era assim. Hoje as crianças não sentam em suas costas quando ela se
debruça ao chão imaginando as misérias do seu
coração-tanto-quanto-desumano, coração que tende à insânia velhaca. Mas
aquela palavra, aquela curta palavra "neutro" escrita, espichada ao
máximo, avizinhando certo acolhimento, dizia mais que nossa vida em
conjunto. A alma de Charlote se abria diante dos meus olhos, enchi-me de
alegria e terror. A neve está
desfeita. Revisito
cada detalhe da dobra, do corpo cheirando ao suor úmido outrora exalado.
Charlote combinava com os trovões, com os dias de chuva incomuns nos quais
os primeiros elementos a chegar são os relâmpagos. Não se pode adivinhar o
que o cheiro da chuva nesses dias faz com as estacas íntimas. Elas fincam
forte, emperram-se, empalamento eterno desse órgão motor máximo que é o
coração. Então a luz não veio? Que maldição. Quero um odor cristalino para
dentro do meu túmulo, quando a letra não queimar mais o papel, quando
seremos devorados pela continuação esmagadora da
mortevida Carta
para Charlote: Durante
todos esses anos desviei minha atenção daqueles matizes e hoje —
desavisada — enquanto a mesma chuva esmaga a terra prazerosa, sinto
estalar no corpo toda lembrança de te tocar nesse vão. Não sou mais a
mesma. Não és mais a própria, mas é preciso que dona morte venha tatear a
nossa porta, é por ti que meu coração goza,
Charlote.
Tenho como maior exemplo da vida, da vida amalgamada que
pulula
alegremente,
aquela noite onde eu, tu e Raná saíamos do cinema. Acabávamos de ver um
filme intrigante (Raná riria dessa expressão) e quando saímos da penumbra
da sala encontramos toda sorte de chuvas no céu. Resolvemos desarrumar
nossos cabelos, molhar nossas roupas, mas aí, bem aí, existia algo de mais
profundo do que era visível aos nossos olhos. Eu e Raná pisávamos com
força as poças de água, poça sobre poça, deixávamos no reflexo todos os
nossos destroços. Reclamávamos da falta de vinho e tu, Charlote, andavas
enevoada pela sensação que o filme impregnara em nós; aquela sensação da
comichão inevitável das pequenas delicadezas, das coisas raras que
cintilam ou de um grande amor que se vai ao longe. Eu te via com o
finalzinho dos olhos, fingia que as poças eram nosso fundamento depois de
ter sido presenteada com as ondas de Virginia, não desgrudava minha
atenção de mulher escondida em tuas nuances. Alguma coisa de toda a minha
vida estaria marcada para sempre no teu modo de existir naquelas poças.
Foste embora, Charlote, no primeiro carro que passou, não dera adeus nem a
Raná, nem a mim, nem te lembrara da casa do sentido vermelho onde
podias te refugiar. A casa... nem sabia... naquele dia voltei como quem
reúne os pedaços e te encontrei parada na porta da taberna do teu pai,
próxima à igreja que nos apavorava, ah, não podia deixar de olhar bem
dentro do teu olho cavando algum ponto claro de sentido, porque esse olhar
espectral e de semente, inundada de erva, só se vê uma única vez. Ao menos
foi assim para mim. E voltei refugiada para a casa, louca por alguma coisa
tão turva... não pude deixar de oscilar para dentro, de alcançar teu âmago
que dançava à minha frente como uma bailarina morta e vaporosa. Lembra que
fiquei sem falar durante meses? Ainda hoje aprendo o abc de tudo aquilo
que me cega. Não proferi palavra, aquele dia ficou retido na minha retina
como o fundamento do amor, como se eu já estivesse viva antes de
viver. 10 PASSAGEM
COM CACTOS O
poeta conheceu aquele quiromante afeminado professor de filosofia,
inusitada a mão magra e escura do professor surpreendendo os segredos do
futuro do poeta, pareceu irrealizável. O silêncio sombrio da desesperança
apontara-lhe tanto o peito que daí a alguns dias passaria a pensar
exaustivamente na morte, obsessão tamanha sugando-lhe a fonte da
juventude, mas não antes de observar — pasmo — o professor ser atropelado
por uma moto desgovernada na saída do Limbo. O corpo esfacelado no chão
inflamava o olho do poeta [repensar a existência quase o convenceria de
que estar vivo é uma vicissitude desnecessária, a ficção idiota de "um
dia", entretanto, ao retomar o fôlego para mais uma virada, dias após o
ocorrido, levaria até o cemitério a beleza meio póstuma de um cacto com
flores amarelas o qual batizara de Pierre — o semivivo. Coincidência ou
não, também eu havia comprado um cacto, sem flores, doei-o ao atropelo do
tempo, a quem estivesse lá onde a carcaça não pudesse alcançar, não era
como o cacto do poeta, mas uma menina, uma cactiza que curtia a manhã de
sol na casa, que via o amor esbaforir sem sofrimento, cactiza da minha extensão humana,
viva, lá na frente, emancipada de qualquer outro tempo. Charlote não
entende, pensa que poderia ser a única. E penso bastante nessa cena de
fotografias retalhada na memória, Pierre no cemitério em meio aos mortos
menos morto do que eles enquanto observo a cactiza esvair sua força verde
até vazar minhas dores. O poeta chora vez ou outra, mas sou eu que vou
pingar duas gotas de água cristalina no cacto dia sim dia
não
tenho experimentado a madrugada como nunca, a manhã na qual a cactiza
reina tem ferido meus olhos e tenho gostado de espaços mais em branco
entre uma farsa e outra. Quando posso provar o espaço? Porque plantar no
mundo coisa tão desnecessária enquanto os pés podem estar no ar. Tomei a
água de Lete, não só os recentemente mortos bebericam seu precioso
líquido, os há muito tempo mortos também, como Charlote, como Pierre, como
o professor de filosofia e sua mão mais que escura e, e,
e, 17 Primeiro
dia, primeira vez. Apaziguamento da memória. O traço vertical do rosto de
Charlote na penumbra do quarto, a sombra disposta na parede. A mão fria na
estrutura quente, eu ardia em febre, depois disso a cãibra e a peste
acometeram o corpo. Andei doente depois do primeiro contato, estrangulada.
Contato primitivo, manhoso, rudimentar. Torno a mover-me na pretérita
esfera, no mesmíssimo lugar e encontro Raná dormindo no chão, a manhã
invadindo nosso cansaço, a noite não dormida espreitando o movimento das
mãos envergonhadas pela luz, afrontando o cruzamento no olhar. O som
estalando porque a muito não reiniciávamos a voz de Elis. Quando dei por
mim, lá estava, distendida, compacta, espessa, Charlote dormia
tranqüilamente, vencida, insipidamente abusada. O azul claro no céu perdia
a rua, as pessoas comprando pão, tomando café, os estabelecimentos
abrindo, os passarinhos acordando, os primeiros sons despertados
anunciavam a presença do movimento matutino... Precisei abandonar a cama,
o quarto, sair dali, Charlote, ali, ali, ao meu alcance, poderia tocá-la,
a permissão, a fragilidade do sono exposto. O toque lascivo como a água se
derramando sobre a rocha. Apanhei Fernando, nessa época chamávamos de
forma íntima nossos autores preferidos e, desatinada, entrei no primeiro
boteco, ficções de interlúdio debaixo do braço e todo aquele vapor na
sensação. Pensei no regalo, aprazimento e felicidade. Quão estranha era ao
instalar-me na soleira do dia, em voz alta recitei: "o ar que respiro este licor que
bebo... como hei de concluir as sensações que a meu pesar concebo..."
e as lágrimas desceram livres e sinceras pelo meu rosto. Reconheci o
esquema súbito no qual me insinuara, a instância significativa do amor que
nascia livre, exposto, via e via e abria os braços ao que vestia o
futuro. Pedi
o café. As outras tantas, Charlote, ficaram pequenas, e agora retorno ao centro da arena, bufando, o lenço vermelho coberto de fragmentos de pele. Quanto tormento caído como as folhas secas espalhadas no chão do outono, depois nos tornamos algo, o amontoado de caras e vertigens que formavam a mandala compassiva. Nós, os cinco, porque agora nos considerávamos um número, éramos como o flagelo que pulveriza desabrigados. Formávamos o núcleo de prazeres anormais. Raná, Ariel, o poeta, eu e tu Charlote. Íamos até onde o limite nos apavorava, antes disso não havia obstáculo plausível, ultrapassávamos a cerca viva adormecida, a cúpula se abria inteira, não visava a nossa fome, a nossa sede de absoluto. Nós, os habitantes da casa, explosão iniciadora, inoculadora do submundo dentro da explosão total do mundo. Que gosto batizaria a nossa ação, Charlote. Não o gosto azedo do engulho, antes o alívio de após o vômito. O alívio. De imediato era o nada, mas o nada crescia, bebia proporções inimagináveis, aninhava-se ao peito, no nosso peito e no peito de mais alguns. Os outros. Éramos servidos por essa instância da existência, silenciosos, macios e às vezes assassinos da época que nos negávamos a viver. O vertudo — a torre solene que se erguia através de nós vazava formas ousadas que serviam de alegoria a nossas dores extravagantes. Nenhum de nós estava na época certa, Charlote, a época não nos nascia. Reverberávamo-nos por cima dela, nada parecia tão inútil ou mais deslocado que o mundo, o planeta, o homem — essa abstração inexata da nossa natureza. A humanidade sempre fora assim e a casa era a arca primeva e nós os primevos animais a adentrá-la. Fazíamos como Noé, Charlote, dançávamos e assoviávamos enquanto deus engolidor tosava o mundo com ânsia, e quando a escuridão chegava e algum rosto lívido soçobrava à luz da vela, a mão estendida, vinda do desespero, tocava-me a face, a matéria lapidada, uma duas três vezes até entender que o amor é uma aparição vinda do primeiro nada desabrigado de espera. [Do
livro A casa do sentido
vermelho. São Luís: Pitomba, 2013]
agosto,
2014
Jorgeana Braga. Publicou Janelas que escondem espíritos (poesia) e A casa do sentido vermelho (prosa). Algumas publicações intermediárias, e inéditos: Cemitério de espumas (encenado no teatro), Abololôs: poemas para caixa de fungos e Sangrimê (prosa). Nasceu e vive em São Luís, Maranhão. Mais Jorgeana
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