©thomas barbey
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Fazenda de cacos (o tempo)

 

 

Andemos perdidos por esses campos de flores

Onde a pele roça as pétalas no caminho estreito

O semeador de cacos fez um bom trabalho aqui

Nós, os desfigurados, corremos livres pelas plantações

Pisamos as pontas lavradas pela chuva

A mulher velha se abaixa para colher um souvenir

Em cada casa há um jarro com uma flor da fazenda

Belo mesmo é quando as gotas represam nas arestas

Onde o sol faz seu trabalho de secagem

E a plantação extensa ofusca os olhos

Miríades de pontas verdes, vermelhas, amarelas e azuis

Mar de coisas que já foram obra e adorno

Mas que na próspera fazenda agora semeadas

Aguardam a colheita diária dos cacos.

 

 

Brasília, março 2014

 

 

 

 

 

 

Em agosto

 

 

Os teus braços quando apertam

O planalto quando chove

Teu piano quando fecha

Céline quando escreve

Milton quando canta

As mulheres quando choram

As abelhas quando ferem

Os casais quando brigam

As revoluções quando se instalam

O povo quando cansa

As cachoeiras quando enchem

O pai quando bate

Teu amor quando acaba

Nada disso tem a violência de um ipê.

 

 

Brasília, agosto 2013

 

 

 

 

 

 

Soldadinhos

 

 

O carrossel dos soldadinhos gira na minha cabeça

São quatro horas da manhã

Os soldadinhos estão ativos

Montam cavalinhos e giram

Uns brandem fuzis

Outros bradam vitória

Contra um inimigo esmagado sobre a cama.

 

 

Brasília, novembro 2013

 

 

 

 

 

 

Funcionária pública

 

 

Ninguém entendeu quando a moça da seção

Começou o concerto para piano número 3, de Prokofiev

No meio da tarde só ela ouvia clarinetes e violinos

Batia os dedos violentamente no teclado

Tremulando a melodia nos lábios

E jogando os cabelos no ar

As cortinas esvoaçavam na janela

Não houve pausa para o café

No dia seguinte os processos publicados no D.O.U.

Estavam todos em russo

E a moça digitava feliz uma carta de amor.

 

 

Brasília, fevereiro 2014

 

 

 

 

 

 

Quadros em exposição

 

 

É sempre noite neste quarto

Onde se cometem crimes de adultério

Mas se da mesma insegura certeza somos feitos

Quem de nós fechará primeiro os punhos?

Se já sabíamos das paredes de caliça

E dos pesados retratos em exibição

Pranteemos não as ruínas

Pois como as tintas derramadas sobre o cômodo secreto

Os laivos também perdem força

Lamentemos apenas a exaustão.

 

 

Brasília, janeiro 2014

 

 

 

 

 

 

Álcoois triunfais

 

 

Estás lasso da dolorosa luz

E desse mundo antigo das grandes lâmpadas elétricas

Que te tornaram parte dos besourinhos fosforescentes

Rodopias, rodopias

 

Estás lasso da usina velha, da tipografia

Do balir do sino

E das multidões fabricadas

Rodopias, rodopias

 

Estás lasso das odes desdentadas

Da mulher de mal com a poesia

— Café com pão —

Das engrenagens,  do maquinismo, dos ruídos

— Café com pão —

Das engenhosas soluções de ferro

— Café com pão —

 

Engoliste como verdade

As pequenas doses diárias de morfina

Rodopias, rodopias

 

Estás lasso do futuro

E dos fogos de artifício

Rodopias, intermitente besourinho.

 

 

Citações dos poemas "Zona"(Guillaume Apollinaire), "Ode Triunfal" (Álvaro de Campos/F. Pessoa) e "Trem de Ferro" (Manuel Bandeira).

 

 

Brasília, outubro 2013

 

 

 

 

 

 

Assentamento

 

 

Com o tempo meus pensamentos criaram raízes

Porém ainda meus olhos eram livres

Até que meus olhos criaram raízes

 

Minha boca dizia coisas

Até que as palavras criaram raízes

 

Meus braços balançavam no vento

Minhas mãos remexiam uns cabelos bonitos e negros

Minhas mãos criaram raízes

 

Minhas pernas partiam

Nem bem amanhecia e minhas pernas partiam

Até criarem raízes.

 

 

Brasília, maio 2013

 

 

 

 

 

 

Um amor nouvelle vague

 

 

Trabalhas em um café e és tão bonita

 Essa coisa desafiadora do cigarro nas mãos

O jeito como defendes o aborto

 És tão bonita e entendes tão bem as incongruências sociopolíticas do país

(E és tão bonita)

Sabes que reprovo essa mania de beber coca-cola zero

Acho demasiada subserviência ao capitalismo

Chego a olhar-te com um ódio antiamericano

Mas que importa, és tão bonita

E assim passamos a noite num café 

Quando falas de Lacan e dos teus primeiros significativos

Finjo prestar atenção, enquanto conto as sardas no teu nariz

Ah, bonita

Enquanto demarcas tão bem os limites da tua liberdade

Eu vou cometendo crimes que me levem irrevogavelmente à prisão.

 

 

Brasília, junho 2013

 

 

 

 

 

 

Duas raivas

 

 

Não terá sido esse gracioso tobogã em teus lábios

Pois andávamos os dois pelo mundo

Levando, cada um, sua raiva

E o que verdadeiramente aconteceu foi que fomos tocados

E é tão bonito agora, quando passeamos de mãos dadas

Como se nossas raivas se esforçassem sobre-humanamente

Por acreditar no amor.

 

 

Brasília, janeiro 2014

 

 

 

 

 

 

Prezado Babeuf,

 

 

Ao realizarem a definitiva revolução

Por favor, lhes peço, não acabem com os bancos

 

Destruam a propriedade privada

Socializem as fazendas

Confisquem as fortunas

Estatizem as escolas

Mas, por favor, não acabem com os bancos

 

Derrubem as cercas, os juros

As diferenças de classes

Ergam estátuas em honra dos libertadores da pátria

Mas, por favor, não acabem com os bancos

 

É que só agora há pouco, ao chegar à praia

A balbúrdia das mulheres e crianças me fez lembrar de um tempo remoto

Quando, assim que chegávamos nessa mesma praia

Meu pai desaparecia, dizendo precisar ir ao banco

 

Ao realizarem a definitiva revolução

Peço-lhes esse pequeno favor

Pois só agora compreendi a verdadeira função dos bancos.

 

 

Cabo Frio, março 2013

 

 

 

 

 

 

Cada batida na tecla do piano é uma ausência

 

 

Os vizinhos reclamam do barulho

Mas nunca reclamam do silêncio

Dos imensos vazios entre uma nota e outra

É neles que a pianista está gritando.

 

 

Brasília, dezembro 2013

 

 

 

 

 

 

Agnistério

 

 

Na matriz de Santa Rita, não

Na Sagrada Família, não

Na igreja do Pilar, não

Na Notre Dame, não

Na catedral de Cuzco, não

Na basílica de São Pedro, não

 

Só encontrei Deus no curral.

 

 

Brasília, setembro 2013

 

 

 

 

[Poemas do livro Fazenda de Cacos. São Paulo: Intermeios, 2014]

 
 
dezembro, 2014
 
 

 

 
Marcelo Benini nasceu em 1970, na cidade de Cataguases/MG, e hoje vive em Brasília. Lançou seu primeiro livro em 2010: O Capim Sobre o Coleiro (poesia / edição do autor). Em 2012, publicou O Homem Interdito (crônicas / editora Intermeios – SP). Teve textos publicados na Alemanha pela fundação Lettrétage, na antologia Wir sind bereit, que reuniu 28 autores brasileiros então inéditos em língua alemã. Tem poemas e crônicas em diversos sites de literatura no Brasil e também na América Latina e Espanha. Em 2014, lançou Fazenda de Cacos (poesia / editora Intermeios – SP).
 
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