©rachel bicalho
 
 
 
 
 
 
 
 
 

hiato

 

 

a        brir

clareira

com 

pa

lavra

luzir  a lágrima

der

ra

ma

da

por todas as barrigas vazias do mundo

 

 

 

 

 

 

efêmera

 

 

posso desfrutar esse

Voyage Au Pays de Tendre 

de Gabriel Pierné

e depois esquecer

 

ato a teia do amor

e ateio fogo

por ciúmes

posso odiar

e até matar

 

flutuo entre

o doce e o ácido

sou tecido flácido

rigidez é propriedade de pedra

 

 

 

 

 

 

impessoal

 

 

sobre o criado

um copo d'água

óculos de grau

e uma dentadura

seca

 

sob a terra

os olhos

a boca

jazem

seus donos

sem sonhos

 

 

 

 

 

 

eufemismos

 

 

mulher.

mulher que gosta de gozar.

mulher que gosta de gozar como homem.

mulher que gosta de gozar como homem que gosta de gozar.

mulher que gosta de gozar como homem que goza como mulher.

 

 

 

 

 

 

cutting

 

 

descascar

escavar

 

despetalar

 

e arrancar

penas

bambas

 

 

 

 

 

 

incerto

 

 

o objeto é uma imagem sépia

 

em plano médio

uma menina parda

cabelo corte de cuia

numa pintura feita

para imitar uma fotografia

 

as mãos estão postas

ao lado esquerdo

do rosto tombado

num gesto semelhante

ao que anuncia

o ato de dormir

 

um olho mais aberto

que o outro

sugere estrabismo

 

no corpo mirrado

desproporcional

ao tamanho da cabeça

vê-se anunciada certa fome

 

sobre ele

uma camisa branca de tergal

e uma jardineira

de brim azul-marinho

 

ao fundo um painel

desses usados

nas exposições escolares

exibe florinhas

aparentemente coloridas

 

meio sorriso nos lábios

olhar triste

 

poderia se dizer

que no semblante

há a promessa

de um futuro grandioso

mas seria mentira

 

 

 

 

 

 

irreverência

 

 

não sou Ester

à espera de

que se eleve o cetro

na sala do trono

 

durmo pelas ruas

a máquina dos homens

não me captura

 

sou todas as mulheres

gordas

negras

putas

nuas em fuga

toda manhã

 

 

 

 

 

 

nativa

 

 

a mãe da mãe da minha mãe foi pega no laço

a mãe da minha mãe foi pega no laço

minha mãe foi pega no laço

por precaução perambulo nua

 

 

 

 

 

 

canção para acordar

 

 

a voz para

a voz paralisada

desde os avós

pela civilização

 

acorda

velha índia

desata o laço

da falsa

domesticação

 

 

 

 

 

 

temporã

 

 

com oito anos

dei o primeiro beijo

chamava-se Natal

o menino que beijei 

 

bastou um dia

para ele confiscar

o anel presenteado

e passá-lo carinhosamente

à próxima namorada

 

Natal inaugurou-me

décadas de rejeição

 

 

 

 

 

 

a pele é o palimpsesto do amor

 

 

pela terceira vez amou

(se contasse a paixão pelo

professor de matemática

aos doze seria a quarta)

tatuou do lado esquerdo

do ombro bem abaixo

do esterno, em gótico

o nome do amor

 

amou pela quarta vez

(ou seria quinta?)

tatuou um gato preto

sobre o nome do amor

com gatos o lance é outro

amor eterno é para cães

 

 

 

 

 

 

inflamação

 

 

de dez em dez anos queimo cartas

mas há pontos costurados e visíveis

cicatrizes de amor nunca somem

 

ah, esses amores perdidos

capazes de lavar e pentear-me os cabelos

como quem cuida de um ancião

 

nunca tocam minha pele febril

tantos cuidados, assepsia

e eu à espera de arranhões 

 

 

 

[Poemas do livro Borda. São Paulo: Patuá, 2014]

 
 
dezembro, 2014
 
 

 

 
Norma de Souza Lopes nasceu em 1971, ano em que morreu Jim Morrison e Carlos Lamarca. Mesmo ano em que John Lennon escreveu "Imagine". Nasceu na periferia de Belo Horizonte, onde ninguém — nem mesmo sua mãe gari ou seu pai pedreiro — tomava conhecimento de fatos como os citados acima. Com exceção de uma famélica viagem de dois anos à Paraíba e meia dúzia de passeios ao Rio de Janeiro e Espírito Santo, vive na periferia até hoje. Um milagre atribuído a bons professores levou-a à poesia. Formou-se em Pedagogia, pós-graduou-se duas vezes e trabalha como professora. Publica, desde 2007, no blogue Norma Din [normadaeducacao.blogspot.com.br]; desde 2013, em revistas literárias eletrônicas e, diariamente, no blogue Borda [bordapoesia.blogspot.com.br]. Lançou, em 2014, pela Patuá, seu primeiro livro de poesia: Borda.
 
 
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