©johan lind
 
 
 
 
 
 
 

 

Os dois passos do homem

 

 

O homem tem apenas dois passos:

um passo à frente

e um passo atrás.

O passo que se dá à frente

é um passo doble,

o passo que se dá atrás

é um passo em falso.

Há passos que parecem ser à frente

e levam ao pé do cadafalso,

à ira dos materiais em erosão

que morrem ao se devorar.

 

 

 

 

 

 

O contágio da vida

 

 

Ninguém está livre da vida.

A vida é altamente contagiosa.

Há de se evitar as aglomerações

como estádios de futebol ou shows

onde a vida se multiplica,

onde a vida é multidão.

 

Não há remédio contra a vida.

Em certos momentos de paz,

ela se espalha

como vírus vital

ou tumor de felicidade.

 

Não há repouso — pelo contrário —,

prevenção ou medida sanitária.

Ela mesma parece vitimar-se

do sono, do bem estar abundante

e sobrevive muito forte

em ambientes limpos e higienizados.

 

Nada se pode fazer contra a vida.

Senão adoecer-se dela,

viciar-se nela, acostumar-se

com seus sintomas.

 

Sendo assim, e só tendo a morte

que a contenha,

o paciente deve entregar-se

à moléstia da vida

e contaminar-se

com a infecção do gozo

que penetra primordialmente a alma,

lá onde cirurgião nenhum pode extirpá-la.

 

 

 

 

 

 

Correnteza dos meus pecados

 

 

Os pesadelos se dividem

em pesadelos de água doce

e pesadelos de água salgada.

 

A correnteza tem músculos de água

e a gente tem de fazer

queda de braço com os dias volumosos.

 

Os pesadelos de correnteza doce

são amamentados pelo leito

contido das margens ordinárias.

O liquidificador das perdas

dá de mamar aos redemoinhos.

 

As correntezas que nos levam

às margens amargas

fazem do nosso corpo

barcos verticais.

Por isso andamos asfixiados

pela vida afora à deriva,

na correnteza dos dias,

um outro rio dentro do rio.

 

 

 

 

 

 

 

Diálogo entre Setembro e Outubro

 

 

Perguntei a Setembro

por que ele era um mês triste.

E ele me respondeu que

Fevereiro tampouco é fanfarrão e antiescolástico,

pois se aqui é carnaval,

há seis meses de noite

no norte do mundo,

que é uma árvore

que parte do ano

planta bananeira.

 

E ainda me disse Setembro:

os homens são meses,

alegres ou tristes,

cumprindo o calendários das soturnidades,

faça domingo, faça dia de semana,

feriado do corpo ou útil da alma.

Assim Setembro se retirou,

como soe acontecer com os meses,

e fiquei pasmo

a mirar a folhinha apática

e muda até quando Outubro

surgiu túrgido e obeso

e cuspiu a exasperante

interrogação sobre males e descampados.

 

 

 

 

 

 

Primeiro dia do ano

 

 

O calor tampa a garrafa do corpo.

Uma freada de ônibus

range o tempo

como uma porta empenada.

Hordas de vento úmido

pintam as paredes amolecidas.

Os minutos, presos nas grades

dos prédios, enferrujam

à lentidão do cozimento.

Ainda nos lembraremos

que nada se renova.

Só os prudentes

insistem em passear a esperança,

lobo preso à coleira,

até que ela morda o próprio dono.

 

 

 

 

 

 

A fuga do risco

 

 

Por um caminho eu vinha

carregando nos olhos a dúvida

que faz aparecer e desaparecer

a realidade.

 

Por um obséquio do círculo,

que não deixa nada escapar,

a dúvida em seu trapézio

colocava óculos de grau

em fatos que não eram míopes

nem ao menos de perto se turvam.

 

Quero fugir do risco

que separa, como nas estradas,

os que vão e os que vêm,

um risco de mão dupla

que pode se tornar

um acidente dos sentidos.

 

 

 

 

 

 

Zoologia da vida e da morte

 

 

A vida e a morte

não deveriam ser femininas.

Não há nada mais neutro

e pessoal a uma só vez.

A vida é híbrida

como  mula

e a morte é de dois gêneros,

comum e anfíbia,

um jacaré que habita

a água da escaramuça

e sobrevive na terra da surpresa.

 

O homem é também anfíbio:

regurgita na placenta das casas

e se oferece à ambulatória morte

em cada palmo de terra que pisa.

A mesma condenação dos rios

que não logram fugir do seu destino.

 

 

 

 

 

 

A pátria onde a fronteira se move

 

 

Emigrei da infância

— terra natal e minha língua materna —

para os campos de adulto.

Meu passaporte pela adolescência

está carimbado de desejos.

Ah, o mar morto em que banhei

minhas ambições.

Nunca mais me repatriei

e por isso vivo estrangeiro,

cujas fronteiras se movem

a depender do idioma

em que se fala futuro.

A 3 x 4 me deportam

para uma foto

que documenta minha pátria:

o contrabando dos anos

na última alfândega

lá onde a revista estampa

minha diáspora.

 

Vou indocumentado pelo anonimato,

atravesso a fronteira das ruas

onde nenhuma guarda meu passado.

 

 

 

 

 

 

A plantação de equívocos do meu pai

 

 

Nas raízes da mais tenra idade,

vi, no quintal, meu pai

cultivar uma plantação de erros.

Era uma beleza de galhos retorcidos,

mais densos e rasteiros

como são os pensamentos

em forma de tubérculos

que vivem com a cabeça e o corpo

enfiados na terra.

 

Aqui, um pé atrás de desconfiança.

Ali, as folhas mortas do desinteresse

e os cipós do ciúme.

 

Eu ainda era muito verde para saber

que a vida também é uma fruta:

uns apodrecem ainda no pé,

outros amadurecem enrolados

na quentura dos jornais

enquanto a maioria

segue o ciclo das frutas:

broto, crescimento e

por fim o cárcere dos dentes.

 

 

 

 

 

 

Picadeiro de ruínas

 

 

Estou abandonado ao próprio eixo

que de mim me gira e me solta frouxo,

tudo escurece ao se perder o alvo,

um homem que esqueceu do seu agosto.

 

Morto me encontro vivo e vivo

me sinto falecido das faculdades

contra o açude da memória

que me transborda de passado.

 

Minha razão — cavalo esquivo —,

trota no picadeiro de dúvidas,

percebo o salto triplo

do erro: o nulo, o vago, o curvo.

O interruptor das pálpebras

desliga a realidade.

 

 

 

 

 

 

Os aniversários queimados na vela do tempo

 

 

Minha infância foi morar no calendário.

E me lembrei dos aniversários em família.

Os zepelins dos balões,

as velas do bolo

navegam na falsa calmaria.

 

O bruxuleio familiar escondia diferenças.

Todos se cumprimentavam

como bonecos de impulsão

— prestes a pular da caixa

onde estavam aprisionados.

 

Havia o risco de os parentes de papel

se amarrotarem no calor das discórdias

que nenhum refrigerante diminui.

Por fim as saudações de plástico

e o bolo cortado da distância.

Não escrevo para preencher o vazio,

mas para esvaziar-me.

 

 

 

 

 

 

Zoológico

 

 

Todo zoo é particular

e não conta com os bichos de sempre.

O esgueirar-se de bicho

anfíbio que pode viver nos escritórios

e respirar o ar insalubre das ruas.

Tem o bicho de sete cabeças:

o bicho condenação ao abandono,

o jaguar do sonho ruim,

as ruinsmanhas do esquecimento,

tem bicho girafa com sua

escada magirus de ansiedade,

o tanque de guerra dos rinocerontes

que pastam indiferentes aos homens,

mas também tem o tamanduá

que lambe as horas

e seu primo ave que engaiola os minutos.

 

 

  

 

[Do livro O difícil exercício das sombras. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014]

 

 

 
dezembro, 2014
 
 

 

Ronaldo Costa Fernandes. Poeta e ficcionista. Seu livro A máquina das mãos (7Letras, 2009) ganhou o Prêmio de Poesia 2010 da Academia Brasileira de Letras. Publicou ainda os livros de poemas Estrangeiro (1997), Terratreme (Prêmio Bolsa Brasília da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, 1998), Andarilho (2000), Eterno Passageiro (2004) e Memória dos Porcos (2012). É doutor em Literatura pela UnB. Na área de ficção, ganhou, entre outros, o prêmio Casa de las Américas, o Guimarães Rosa e o APCA.

 

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