Os
dois passos do homem O
homem tem apenas dois passos: um
passo à frente e
um passo atrás. O
passo que se dá à frente é
um passo doble, o
passo que se dá atrás é
um passo em falso. Há
passos que parecem ser à frente e
levam ao pé do cadafalso, à
ira dos materiais em erosão que
morrem ao se devorar. O
contágio da vida Ninguém
está livre da vida. A
vida é altamente contagiosa. Há
de se evitar as aglomerações como
estádios de futebol ou shows onde
a vida se multiplica, onde
a vida é multidão. Não
há remédio contra a vida. Em
certos momentos de paz, ela
se espalha como
vírus vital ou
tumor de felicidade. Não
há repouso — pelo contrário —, prevenção
ou medida sanitária. Ela
mesma parece vitimar-se do
sono, do bem estar abundante e
sobrevive muito forte em
ambientes limpos e higienizados. Nada
se pode fazer contra a vida. Senão
adoecer-se dela, viciar-se
nela, acostumar-se com
seus sintomas. Sendo
assim, e só tendo a morte que
a contenha, o
paciente deve entregar-se à
moléstia da vida e
contaminar-se com
a infecção do gozo que
penetra primordialmente a alma, lá
onde cirurgião nenhum pode extirpá-la. Correnteza
dos meus pecados Os
pesadelos se dividem em
pesadelos de água doce e
pesadelos de água salgada. A
correnteza tem músculos de água e
a gente tem de fazer queda
de braço com os dias volumosos. Os
pesadelos de correnteza doce são
amamentados pelo leito contido
das margens ordinárias. O
liquidificador das perdas dá
de mamar aos redemoinhos. As
correntezas que nos levam às
margens amargas fazem
do nosso corpo barcos
verticais. Por
isso andamos asfixiados pela
vida afora à deriva, na
correnteza dos dias, um
outro rio dentro do rio. Diálogo
entre Setembro e Outubro Perguntei
a Setembro por
que ele era um mês triste. E
ele me respondeu que Fevereiro
tampouco é fanfarrão e antiescolástico, pois
se aqui é carnaval, há
seis meses de noite no
norte do mundo, que
é uma árvore que
parte do ano planta
bananeira. E
ainda me disse Setembro: os
homens são meses, alegres
ou tristes, cumprindo
o calendários das soturnidades, faça
domingo, faça dia de semana, feriado
do corpo ou útil da alma. Assim
Setembro se retirou, como
soe acontecer com os meses, e
fiquei pasmo a
mirar a folhinha apática e
muda até quando Outubro surgiu
túrgido e obeso e
cuspiu a exasperante interrogação
sobre males e descampados. Primeiro
dia do ano O
calor tampa a garrafa do corpo. Uma
freada de ônibus range
o tempo como
uma porta empenada. Hordas
de vento úmido pintam
as paredes amolecidas. Os
minutos, presos nas grades dos
prédios, enferrujam à
lentidão do cozimento. Ainda
nos lembraremos que
nada se renova. Só
os prudentes insistem
em passear a esperança, lobo
preso à coleira, até
que ela morda o próprio dono. A
fuga do risco Por
um caminho eu vinha carregando
nos olhos a dúvida que
faz aparecer e desaparecer a
realidade. Por
um obséquio do círculo, que
não deixa nada escapar, a
dúvida em seu trapézio colocava
óculos de grau em
fatos que não eram míopes nem
ao menos de perto se turvam. Quero
fugir do risco que
separa, como nas estradas, os
que vão e os que vêm, um
risco de mão dupla que
pode se tornar um
acidente dos sentidos. Zoologia
da vida e da morte A
vida e a morte não
deveriam ser femininas. Não
há nada mais neutro e
pessoal a uma só vez. A
vida é híbrida como mula e
a morte é de dois gêneros, comum
e anfíbia, um
jacaré que habita a
água da escaramuça e
sobrevive na terra da surpresa. O
homem é também anfíbio: regurgita
na placenta das casas e
se oferece à ambulatória morte em
cada palmo de terra que pisa. A
mesma condenação dos rios que
não logram fugir do seu destino. A
pátria onde a fronteira se move Emigrei
da infância —
terra natal e minha língua materna — para
os campos de adulto. Meu
passaporte pela adolescência está
carimbado de desejos. Ah,
o mar morto em que banhei minhas
ambições. Nunca
mais me repatriei e
por isso vivo estrangeiro, cujas
fronteiras se movem a
depender do idioma em
que se fala futuro. A
3 x 4 me deportam para
uma foto que
documenta minha pátria: o
contrabando dos anos na
última alfândega lá
onde a revista estampa minha
diáspora. Vou
indocumentado pelo anonimato, atravesso
a fronteira das ruas onde
nenhuma guarda meu passado. A
plantação de equívocos do meu pai Nas
raízes da mais tenra idade, vi,
no quintal, meu pai cultivar
uma plantação de erros. Era
uma beleza de galhos retorcidos, mais
densos e rasteiros como
são os pensamentos em
forma de tubérculos que
vivem com a cabeça e o corpo enfiados
na terra. Aqui,
um pé atrás de desconfiança. Ali,
as folhas mortas do desinteresse e
os cipós do ciúme. Eu
ainda era muito verde para saber que
a vida também é uma fruta: uns
apodrecem ainda no pé, outros
amadurecem enrolados na
quentura dos jornais enquanto
a maioria segue
o ciclo das frutas: broto,
crescimento e por
fim o cárcere dos dentes. Picadeiro
de ruínas Estou
abandonado ao próprio eixo que
de mim me gira e me solta frouxo, tudo
escurece ao se perder o alvo, um
homem que esqueceu do seu agosto. Morto
me encontro vivo e vivo me
sinto falecido das faculdades contra
o açude da memória que
me transborda de passado. Minha
razão — cavalo esquivo —, trota
no picadeiro de dúvidas, percebo
o salto triplo do
erro: o nulo, o vago, o curvo. O
interruptor das pálpebras desliga
a realidade. Os
aniversários queimados na vela do tempo Minha
infância foi morar no calendário. E
me lembrei dos aniversários em família. Os
zepelins dos balões, as
velas do bolo navegam
na falsa calmaria. O
bruxuleio familiar escondia diferenças. Todos
se cumprimentavam como
bonecos de impulsão —
prestes a pular da caixa onde
estavam aprisionados. Havia
o risco de os parentes de papel se
amarrotarem no calor das discórdias que
nenhum refrigerante diminui. Por
fim as saudações de plástico e
o bolo cortado da distância. Não
escrevo para preencher o vazio, mas
para esvaziar-me. Zoológico
Todo
zoo é particular e
não conta com os bichos de sempre. O
esgueirar-se de bicho anfíbio
que pode viver nos escritórios e
respirar o ar insalubre das ruas. Tem
o bicho de sete cabeças: o
bicho condenação ao abandono, o
jaguar do sonho ruim, as
ruinsmanhas do esquecimento, tem
bicho girafa com sua escada
magirus de ansiedade, o
tanque de guerra dos rinocerontes que
pastam indiferentes aos homens, mas
também tem o tamanduá que
lambe as horas e seu primo ave que engaiola os minutos.
[Do
livro O
difícil exercício das sombras. Rio de Janeiro: 7Letras,
2014] dezembro,
2014
Ronaldo Costa Fernandes. Poeta e ficcionista. Seu livro A máquina das mãos (7Letras, 2009) ganhou o Prêmio de Poesia 2010 da Academia Brasileira de Letras. Publicou ainda os livros de poemas Estrangeiro (1997), Terratreme (Prêmio Bolsa Brasília da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, 1998), Andarilho (2000), Eterno Passageiro (2004) e Memória dos Porcos (2012). É doutor em Literatura pela UnB. Na área de ficção, ganhou, entre outros, o prêmio Casa de las Américas, o Guimarães Rosa e o APCA.
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