GERMINA - REVISTA DE LITERATURA & ARTE
 
 
 
 
 

 

  

 

Ao contrário do heroísmo pelo qual anseia certos versos épicos,

 

1. armados que estão com o gládio para separar as trevas da claridade, o mal do bem,

2. e firmados no cetro, com cuja aríete, anseiam pelo domínio do caos terreno,

3. indicando o alto, o tempo sem tempo, o cosmos da eternidade,

4. desde um agigantar-se com olhos perscrutadores para onde quer que se estenda o seu domínio,

 

há outros que,

diferentemente,

 

·         nada querem dominar:

 

"Vestida de chuva

e plena de encantos

eu disse apenas:

me pegue e me leve

para um desses seus

poemas".

 

·         nada querem separar:

 

"Eu moraria em seus lábios

feito céu

açúcar e sol".

 

 

·         não buscam o aprisionamento via a circunscrição, mas a penetração de um centro:

 

"Cruzei mares

mas me encontro

no regato dos seus olhos".

 

 

·         não querem ascender aos céus, e sim, pousar delicadamente na terra:

 

 

"Não quero nuvens

meu tempo agora é chão".

 

"Meus pés querem céu

meu corpo, um canto ribeirinho.

Se volto, é porque um astro

me prende ao chão".

 

 

·         não querem sondar o éter, mas escavar com frágeis e caprichosas mãos o que a terra dá e não:

 

 

"A lua está deitada na rua

o solo revolve húmus

ímpetos eflúvios

sussurra nossa poesia".

 

 

Eis os versos que encetam alvos móveis, os de uma certa poeta, uma, mineira, uma Adri, a Aleixo, encapsulados em seu auspicioso: Des. caminhos, da editora cujos livros são patuás

 

[que, para além de espantar o mau olhado, função menor, corriqueira, está aí para nos proteger contra a esterilidade literária].

 

Os versos de Adri são, dessa forma, versos que a incluem entre as poetas de um imaginário noturno, pois, avessos a um enfrentamento heroico e metafísico à inexorabilidade do tempo e à ceifa da morte, buscam, sim, apaziguá-las, domesticá-las, desde um redobramento eufemizante da linguagem poética, conduzindo à desaprendizagem do medo:

 

 

"Na ida todo santo ajuda

mas na volta

houve tanto alumbramento

tanta iluminura.

Coisa de rir de sonhar".

 

 

O mais impressionante nos versos de Adri é certo fenômeno proporcionado por encaixes sucessivos de metáforas e símbolos, culminando num processo que poderíamos chamar de gulliverização, ou seja, na inversão do gigantismo semântico que os seres e coisas possuem, adensada e involuída da maior para a menor das bonecas russas:

 

 

"Venho agora de um jardim

Rosa Acácia Dália

Só os liquens me vicejam".

 

 

"Estou vendo as coisas

de dentro de uma lágrima".

 

 

"sinto os acordes da boiada

que se rege de mim".

 

 

"deixando essa felpa cá no peito a moer".

 

 

"Nesta hora, esse leito sou eu

é você

é o mundo inteiro".

 

 

"chega pingar

entre o indicador e o polegar".

 

 

"A palavra ficou perdida

dentro da boca

adornando céu

dentes

língua".

 

 

"Apaixonou-se pelo mar

mas como esquecer

o rio, o regato

e a enseada?".

 

 

"Apesar da persiana

a luz do pirilampo

ainda me salva".

 

 

"Mas às vezes penso

que só inverti os sentimentos

nas algibeiras".

 

 

"Não te penso grande

Príncipe no cavalo branco

Mas em meus espaços exíguos".

 

 

O processo de gulliverização é revelador de um gracioso mito que repercute com várias feições: o de que a força encontra-se na fraqueza, o de que a melhor fragrância encontra-se nos menores frascos, a matéria-prima dos alquimistas, o Aleph borgeano, em cuja diminuta partícula encontra-se todo o universo.

 

Outro fenômeno que compõe os versos de Des.caminhos é o da queda convertida em descida: do dorido e mortal voo de Ícaro ao mergulho lento na intimidade da terra, na intimidade do corpo. Uma lentidão visceral, térmica, suave, em continentes sempre receptivos:

 

 

a taça que anseia ser inundada pelo verter do vinho

o peixe que mergulha direito na turva água

a vagina que anseia pela penetração pastosa do pênis

:

 

"e os pés cheios de inundação.

Há um rio que me atravessa".

 

 

"A pétala sabe, levemente quando cai

que seu destino é ser porto

do solo que a espera".

 

 

"O antúrio sempre me cumprimenta à porta".

 

"De repente você vem

me irrompe em fúria

me alaga em púrpuras"

 

 

"Tire sua roupa e leia este poema

você tirou os seus sapatos para empinar a pipa

Para que servem as máscaras?

você me conhece nua

você me sabe crua

 

Não deixe que sua fúria dure mais que

o tempo de um gozo

lembro de você arrancando a flor e

picotando o talo

não deixe amarelar as palavras como

se amarelam as flores".

 

 

"Ele inaugura linguagens

no percurso do meu corpo

língua

morfemas

cartografias

e eu sou toda epifanias".

 

 

"Sua língua, minha carne

Tua veia, meu sangue quente

Nossos flancos, um tango".

 

 

"No chão, as estrelas que colhemos

têm outros nomes:

rosas, margaridas e calêndulas".

 

 

"Seu corpo, meu latifúndio.

E a pressa em me perder".

 

 

Mas que ninguém se iluda com a possibilidade de tal feminilidade noturna, sempre receptiva à intimidade, à penetração, venha, quando provocada em seus brios, se transformar na mãe, a mais terrível:

 

 

"Fui me desconhecendo a partir do que falavam

ora pétala

ora erva

Entre bem dita e maldita

abortei todos".

 

 

 

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O livro: Adri Aleixo. Des. caminhos.

São Paulo: Patuá, 2014.

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agosto, 2014