Foi a escritora Cida Sepúlveda, minha amiga de longa data, quem me apresentou Carlos Trigueiro. "É um cara fantástico!" — disse-me ela. — "Que pena a imprensa lhe dar pouco espaço". Conseguindo na Internet os dados biográficos desse autor, fiquei um tanto desconfiado. "Estudou Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas... trabalhou no Banco do Brasil... fez uma pós-graduação em Disciplinas Bancárias na Universidade de Roma... abordou diversos temas socioeconômicos em seus artigos...". E daí, perguntei a mim mesmo, o que é que esse currículo tradicional de um economista tem de tão extraordinário assim? Comecei a folhear o romance Libido aos pedaços, recém-lançado pela Editora Record, e minha opinião sobre Carlos Trigueiro mudou, quase de imediato, da água para o vinho. À medida que lia sua prosa arguta, inteligente, bem persuasiva na captura dos mais finos matizes da psique humana e, ainda por cima, escrita naquele belo português dos tempos clássicos que hoje em dia parece invulgar, se não exótico, surgia-me vez por outra a impressão de que realmente o santo de casa não faz milagres. Cheguei a comprovar tal hipótese ao conhecer as demais obras de Carlos Trigueiro e, sobretudo, ao travar uma conversa amigável com ele próprio, esse homem sábio, irônico, instruído ou, quem sabe, desiludido pela sua vida em que duas atividades antagônicas, a economia e a literatura, formam um arabesco singular e harmonioso. Acho que está na hora de compartilhar com nossos leitores o essencial dessa longa conversa.  [Oleg Almeida]

 

 

 

 

 

 

 

Oleg Almeida – Logo de início farei a minha pergunta costumeira e mesmo um pouco batida. Quando você resolveu ser escritor, ou melhor, com que idade é que se interessou pela literatura? O que queria saber é se foi algo espontâneo — digamos, um sonho ainda infantil que se realizou — ou uma escolha consciente, amadurecida.

 

Carlos Trigueiro – Perfilho a opinião daqueles que dizem que o indivíduo já nasce músico, ou pintor, ou poeta, ou ator, ou escritor, etc. Porém, se a arte que nasce com o indivíduo e nele evolui e se expande, e se refina, e se concretiza num patamar fora do comum, é outra história: depende de muitos fatores. No meu caso nada extraordinário: tive uma infância livre e rica em variedades de experiências, desde o contato com a natureza exuberante da floresta e dos rios amazônicos às brincadeiras com outros molecotes da mesma idade pelos areais, ondas e dunas das praias cearenses. Tais encontros somados à impressão que me causavam os respectivos costumes regionais (dos caboclos e suas canoas nos igarapés do Amazonas, e dos pescadores, jangadeiros e suas jangadas nos mares e praias do Ceará, além de sentir de perto a vida no agreste e no sertão, origens dos meus ancestrais maternos e paternos) cedo despertaram minha curiosidade para registrar cenários, paisagens, costumes e aventuras. Acho que comecei a escrever espontaneamente ainda menino, "de" e "na" memória (tanto assim que o meu primeiro livro foi Memórias da Liberdade), talvez porque eu não tinha máquina de escrever, ou fotográfica ou filmadora, para registrar aquelas vivências e emoções. Bastava abrir os olhos e o coração para o mundo ao redor e percorrê-lo de peito aberto, sem histórico, medos nem compromissos, tal como no poema Meus oito anos de Casimiro de Abreu: com "pés descalços, braços nus, correndo pelas campinas, a roda das cachoeiras, atrás das asas ligeiras, das borboletas azuis". Enfim, na linguagem dos poetas, tornar-me escritor foi metade sonho da consciência, metade consciência do sonho.

 

 

OA – Segundo a sua biografia, um dos primeiros livros que contribuíram para sua vocação vir à tona foi Tom Sawyer de Mark Twain. É curioso: quando garoto, eu também gostava desse livro... Você poderia citar outras obras que o influenciaram, de alguma forma, no começo de sua carreira literária? Não me refiro aos autores que lia então, mas precisamente às obras que foram importantes para a sua aprendizagem.
 

CT – O livro As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, publicado em 1876 e lido por mim 77 anos depois, em 1953, em Fortaleza / Ceará, quando o ganhei como prêmio escolar, foi a pedra angular dos meus devaneios literários. Muito do livro tinha a ver com o que eu mesmo vivera e vivia, familiarmente, próximo à exuberância dos rios (Amazonas, Negro, Tapajós, principalmente) e florestas (Estados do Amazonas e Pará) nos meus primeiros oito anos de existência. Então, aquele livro foi o espelho mágico onde me reencontrava e revivia. E foi o primeiro livro não didático que li e reli vezes sem conta. Por outro lado, mais que outras obras literárias, naqueles primórdios — porque minha família era muito modesta e não tínhamos livros em casa — também foram influentes no meu despertar literário, a música e principalmente as letras dos hinos militares cantados por meu pai, que era Mestre de Banda militar, bem como os poemas recitados por minha mãe, sobretudo de um poeta amazonense Hemetério Cabrinha, exaltando a vida e natureza amazônicas, e ainda poemas clássicos de Castro Alves, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu. Mais adiante, Filgueiras Lima, poeta cearense, professor e diretor do Colégio Lourenço Filho onde estudei os primeiros três anos ginasiais (o segundo grau daquele tempo) também me influenciou no gosto pela Literatura, pois ia de sala em sala de aula dar avisos escolares e aproveitava para recitar seus poemas — acho que para despertar nos alunos a sensibilidade e o gosto pela poesia.

 

Quanto às obras que influenciaram meu aprendizado literário, desordenado e multifacetado, além do Tom Sawyer posso dizer que foram muitas e muitas, mas até hoje me sinto aprendiz de escritor. No entanto, destaco ainda dentre outras: As mil e uma noites; Confesso que vivi (Pablo Neruda); Baú de Ossos (Pedro Nava); Memórias póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis); Ana Karenina (Tolstoi); Três Contos (Flaubert); Crime e Castigo (Dostoievski); A idade da razão (Sartre); Novelas exemplares (Cervantes); A consciência de Zeno (Ítalo Svevo); Os Miseráveis (Victor Hugo); A Metamorfose (Kafka); Memorial do Convento (José Saramago); O Eu profundo e os outros Eus (Fernando Pessoa); A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy (Laurence Stern); Perto do coração Selvagem (Clarice Lispector); O Escritor e seus fantasmas (Ernesto Sábato); Foi assim (Natalia Ginzburg); Os sofrimentos do jovem Werther (Goethe); Ficções (J. L. Borges); Histórias Extraordinárias (Edgar Allan Poe); e vários contos de Gorki, Tchekhov, Averchenko e Juan Carlos Onetti.

 

 

OA – Nascido em Manaus, você viveu parte da infância em Fortaleza, mudando-se a seguir para o Rio de Janeiro, ou seja, conheceu desde muito cedo o Norte, o Nordeste e o Sudeste do Brasil. É claro que essas experiências ampliaram a sua visão e compreensão da realidade brasileira. Elas o ajudaram, igualmente, a formar-se como escritor? Sua criatividade teve fontes telúricas?

 

CT – De fato, essas mudanças na infância e juventude tiveram grande influência na minha visão da realidade brasileira, e logo compreendi que o Brasil não era um país uniforme, mas, no meu ponto de vista, sim, vários países — aqui e ali com suas conotações geográficas, climáticas, sociais, raciais, e de costumes — unidos fundamentalmente pelo idioma português. Isso teve influência nas minhas emoções, na minha visão do país e, claro, mais tarde, na minha literatura. Porém, não creio que a minha expressão criativa tenha apenas fontes telúricas, já que outras experiências culturais e acadêmicas, bem como muitos anos vivendo em outros países, também contribuíram.

 

 

OA – Quando você estreou na literatura? Como foram esses primeiros passos no caminho literário: fáceis ou nem tanto?

 

CT – Eu já escrevia eventualmente textos de cunho sociológico e político no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, mercê de uma formação acadêmica na Fundação Getúlio Vargas, que era muito focada nesses aspectos. Mas a minha estreia na literatura foi com Memórias da Liberdade, teoricamente um tipo de obra que os escritores escrevem, quase sempre, em fim de carreira. Todavia, na época, eu vivia em Madri (Espanha) e estava influenciado pelo livro Confesso que vivi, do Pablo Neruda, que lera e relera. Quando me dei conta, já estava contando também minhas experiências vividas, e ainda não completara quarenta anos de idade. É um livro de reminiscências, principalmente dos meus tempos infantis no Amazonas, Pará, Ceará e começo da adolescência no Rio de Janeiro. Publicar no Brasil foi difícil. A Editora faliu antes de editar o livro. Na época, 1985, eu já trabalhava em Macau (China). Vim ao Brasil em férias, fiz um acordo com o editor e recebi de volta os meus originais em Tabelião e Cartório. Depois, às minhas expensas, editei e publiquei Memórias da Liberdade nas gráficas de um amigo e com o selo da editora falida, porém com a distribuição comercial por minha conta. Doei trezentos exemplares para a Biblioteca Nacional, contratei um distribuidor particular e o livro foi razoavelmente distribuído. De outra parte, o lançamento foi com "pompa e circunstância", em Macau, naquela época ainda território chinês sob administração portuguesa, com apoio de jornais, personalidades culturais lusitanas e chinesas da época. Saíram algumas boas resenhas em português e chinês nos jornais locais. Tenho ainda alguns recortes das matérias publicadas, e que hoje estão digitalizadas no meu site literário www.carlostrigueiro.com.

 

 

OA – Você trabalhou, por décadas, no Banco do Brasil. Como foi essa etapa de sua vida? As atividades profissionais se contrapunham ao seu fazer artístico ou, pelo contrário, completavam-no?

 

CT – Trabalhei 32 anos no Banco do Brasil. Foi uma experiência riquíssima porque eu viajava por terra, mar e ar, implantando serviços bancários pelo país. Conheci muito dos interiores brasileiros, isolados, populações praticamente fora do mapa e também cidades do litoral. Na época, o Banco do Brasil realizava serviços por conta do Banco Central, recém-criado, e que ainda não tinha estrutura. Imagine que viajei várias vezes, em navios-transporte da Marinha de Guerra, levando numerário para as principais agências distribuidoras da moeda corrente nacional, desde Paranaguá (PR) até Manaus (AM), de porto em porto, nas capitais e algumas cidades da bacia amazônica. Essas experiências aliadas à curiosidade natural do escritor foram importantes mananciais literários.

 

 

OA – De 1980 a 1996 você morou no exterior. O que resultou da sua passagem pelos países tão dessemelhantes como a Itália e a China: a evolução de sua obra para o lado cosmopolita ou, quem sabe, a redescoberta do Brasil visto, de longe, com outros olhos?

 

CT – Já havia estudado em Roma (Itália) no biênio 1973/74, como bolsista metade do Banco do Brasil e metade do Governo italiano. Depois, entre 1980 e 1996, vivi e trabalhei em Madri (Espanha), Roma (Itália), Macau (China) e Chicago (EUA). Foram experiências notáveis, inclusive porque o primeiro impacto pessoal que sofri entre culturas tão diversas, apesar de ter algum conhecimento técnico, foi o reconhecimento da minha ignorância artística, musical, histórica e mesmo literária. A oportunidade de pisar em solos históricos da Europa e do Oriente, de visitar museus como o Prado, o Louvre, o Vaticano, a Academia de Artes de Florença, o Instituto de Arte de Chicago, ou caminhar, ao vivo, sobre as ruínas milenares do império romano, reviver a hegemonia ibérica medieval, e sentir a milenar cultura chinesa nas crendices do dia a dia. Assim, no plano literário, acho que, para um espírito observador, seria inevitável adquirir uma visão cosmopolita da aventura humana. Claro que tudo isso me proporcionou comparações com a cultura brasileira e, depois, transpareceu direta ou indiretamente nos meus textos.

 

 

OA – Quem é Carlos Trigueiro antes de tudo: contista de Confissões de um anjo da guarda ou romancista de Libido aos pedaços? Qual é seu gênero preferido?

 

CT – Penso que sou os dois, ou até mais que isso, pois ainda me arrisco na poesia, tendo alguns poeminhas publicados em coletâneas brasileiras e portuguesas. De todo modo, eu fico mais à vontade na brevidade do conto.

 

 

OA – Diversos críticos percebem nos seus textos, onde os entes sobrenaturais atuam ao lado das pessoas comuns, traços característicos do dito realismo fantástico. Você concorda com eles? Ou talvez esteja contra todos aqueles rótulos que se costuma pôr em obras de ficção e seus autores?

 

CT – Gosto do chamado "realismo fantástico". Tem a ver com os meus devaneios, com as minhas experiências de vida em várias culturas e mundos diferentes e, sobretudo, com a constatação da nossa fragilidade humana impressionável, de natureza misteriosa aqui e corruptível ali, inconformada com a nossa infelicidade metafísica, com a consciência da mortalidade da carne — no dizer de Sábato — e de sermos meros figurantes — insignificantes e infinitesimais — soprados e levados pela poeira cósmica.

 

 

OA – Seus livros parecem bem diferentes entre si no que diz respeito ao conteúdo e, não raro, à construção estilística. Há, todavia, um tema principal, uma ideia abrangente que os perpassa, uma espécie de "marca registrada" de Carlos Trigueiro?

 

CT – Meus livros são mesmo diferentes um do outro, ainda que o estilo seja aqui e ali mais ou menos identificável. Na trilogia da feiura, com O Clube dos feios (feiura estética), O Livro dos Ciúmes (feiura sentimental) e O Livro dos Desmandamentos (feiura social e política do Brasil) esse aspecto apareceu claro ao crítico e poeta Ivo Barroso, por exemplo, que identificou nessas obras um fio condutor, ou seja, "o corte visceral das misérias humanas". Por outro lado, o crítico, escritor, ator e cineasta W. J. Solha identifica na minha obra certo espírito "machadiano" quanto ao estilo irônico e repetitivo de palavras na feitura de alguns textos. O poeta e crítico Affonso Romano de Sant'Anna registrou densidade poética nos meus textos, bem como uma carga dramatúrgica nos meus romances. Já a professora Monica Rector — da Universidade da Carolina do Norte / EUA — em um longo ensaio na Revista Taller de Letras, da PUC de Santiago / Chile — diz que meus contos em O Clube dos Feios parecem parábolas, têm conteúdo moral e revelam a universalidade dos sentimentos do homem.

 

 

OA – Em 1995, seu livro O clube dos feios e outras histórias extraordinárias entrou no catálogo da distribuidora nova-iorquina Luso-Brazilian Books, espalhando-se, a partir dali, pelas universidades e bibliotecas dos Estados Unidos. Foi um verdadeiro salto qualitativo ou apenas uma daquelas oportunidades fortuitas que o fado nos oferece de vez em quando?

 

CT – Acho que foi um desguio do destino. De repente, o livro foi parar em várias bibliotecas universitárias norte-americanas, talvez pelo título, talvez pelo conteúdo de "histórias extraordinárias", talvez porque professores brasileiros de Literatura latina em universidades americanas conheciam bem o livro e alguns também o autor. E o conto O Clube dos feios foi tema de palestras em universidades. O conto Associação dos indivíduos de apelido Cheong, por exemplo, foi publicado na revista literária "The America's Review" da Universidade de Houston (Texas), com tradução para o espanhol pelo editor, na época, Mario Flores. Também me impressionou o interesse norte-americano quanto ao O Livro dos Desmandamentos que passou a constar do acervo da Biblioteca do Congresso dos EUA, e, ali, ter uma resenha oficial que diz sobre a obra: "importante ferramenta não oficial para entender a realidade sociocultural e política do Brasil". Mais tarde, a Revista literária Metamorphoses, periódico do Smith College da Universidade de Massachusetts, publicou capítulos agrupados do mesmo livro e com tradução de Clay Resnick.

 

 

OA – Numa das suas entrevistas você diz: "Se pudesse voltar ao passado e primeiro livro, não assinaria Carlos Trigueiro e, sim, algo como Karlowz Tryghwro, pois a preferência brasileira (...) prima por autores com Y, K e W no nome". Seria monstruoso, se não fosse verdade, não é? Como explicaria tal desinteresse pela literatura nacional? Por que o princípio de que "tudo quanto vier de fora é melhor" está tão difundido, se não dominante, no meio dos leitores?

 

CT – Essa pergunta é uma bomba atômica sobre o "cartel" — aqui um eufemismo de "quadrilha" que domina a produção, distribuição e marketing dos produtos do nosso parque editorial. Basta ler a lista dos livros mais vendidos em qualquer veículo da mídia: há raríssimos livros de autores nacionais, principalmente na Ficção, a menos que seja de autor vinculado ao ramo artístico e já tenha projeção nacional nas mídias e TV principalmente. Creio que, além do mencionado, de sermos compradores de direitos autorais literários em vez de vendedores, essa situação contém ainda fatores marcadamente culturais. No século XIX, Machado de Assis, por exemplo, ironicamente e bem ao seu estilo, descrevia a curiosidade (de quem recebia) sobre a procedência dos chapéus masculinos (com selo estrangeiro ou nacional no lado interno da aba dos chapéus) entregues na entrada das mansões que promoviam festas. Nelson Rodrigues, já no século XX, por sua vez, espicaçava o "nosso complexo nacional de vira-latas" em suas crônicas nos jornais. Só a partir da segunda metade do século XX, em atividades como no futebol ou na música popular, houve uma espécie de reconhecimento nacional — pelos brasileiros — de que algo produzido no Brasil pode ser bom.

 

Historicamente, o império português implantou no Brasil uma colonização coletora de produtos naturais (pau-brasil, ouro, pedras preciosas, etc.) e, mesmo depois do ciclo da cana-de-açúcar, impedia qualquer tipo de indústria de bens no Brasil. Vinha tudo da metrópole, produzido lá ou nos países aliados da coroa lusitana, principalmente do Império Britânico. Exemplo banal: no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurado em 1909, mais ou menos nos moldes da "Comédie Française" e que dentre outros produtos estrangeiros ali instalados, ainda hoje estão as louças sanitárias dos banheiros masculinos — produzidas na Inglaterra. De um modo geral, essa espécie de "síndrome do estrangeiro" parece haver deixado no inconsciente coletivo do brasileiro essa deformação cultural — "produto nacional" é inferior ao "produto estrangeiro" — e isso se vê ainda hoje em vários ramos industriais, como na indústria vinícola (apesar de termos ótimos vinhos brancos e espumantes).

 

Por outro lado, nossa classe política eternizou a herança cultural recebida das donatarias portuguesas dos séculos XV e XVI, e permanece até hoje defendendo seus interesses econômicos grupais, familiares, cartoriais, como se o continental Brasil fosse uma aglutinação de feudos, e assim prossegue indiferente à institucionalização da educação como motor de desenvolvimento nacional e de afirmação do país como civilização tropical. Esses aspectos culturais estão bem delineados no ensaio O Jeito Brasileiro: um fenômeno cultural que publiquei nas revistas acadêmicas (DeSignis) da Argentina, com distribuição no mundo acadêmico de língua latina e em ROMANCE NOTES (Univ. da Carolina do Norte) dos Estados Unidos com distribuição em outros países. Nossa classe política permanece comprando com artifícios baratos e eleitoreiros, do tipo "bolsa família", "cotas raciais em universidades," "serviços públicos" e em outras atividades, a consciência pensante da grande massa populacional, tal qual faziam os primeiros colonos portugueses ao comprar com "colares de pedras de vidros coloridos — as miçangas" — as terras imensas, os rios caudalosos e as matas férteis e naturais dos índios brasileiros.

 

Esse desinteresse da classe política brasileira pela educação (sem falar em Saúde Pública, Saneamento, Transporte Público, malhas rodo e ferroviária, etc.) se reflete negativamente no comportamento violento da população. Mais de 56.000 pessoas foram assassinadas em 2012 segundo dados oficiais, ou seja, um número de mortes equivalente ao de uma guerra como a da Chechênia que durou de 1994 a 1996, por exemplo. Nossa classe política, deliberadamente, institui ou promulga leis frouxas e extemporâneas quanto às penalidades destinadas aos criminosos — já que muitas vezes os facínoras podem ser eles mesmos: os políticos.  Mas, na verdade, tudo isso decorre do desleixo deliberado quanto aos investimentos no conhecimento, na educação, nos aspectos civilizatórios.

 

 

OA – Qual é, a seu ver, o futuro das belas letras no mundo? A literatura séria sobreviverá ao dilúvio de escritos vampirescos e afins ou acabará indo a pique?

 

CT – Bem, As Mil e uma Noites, A Ilíada e A Odisseia, Édipo Rei, A República, Dom Quixote, Os Lusíadas, Guerra e Paz, Madame Bovary, Romeu e Julieta, A Comédia Humana, estão aí mesmo, apesar de escritos já se vão muitas gerações. Penso que os "modismos" vampirescos, tal como aconteceu com os do Tarzan, da família Marvel, do Batman não se perpetuarão nos moldes da "grande literatura". O "consumismo" literário capitalista visa o entretenimento passageiro e está fortemente ligado aos interesses da mentalidade lucrativa, enquanto que a grande literatura, de uma forma ou de outra, questiona e desmascara as limitações e os sofrimentos humanos — dentre tantos, o martírio da própria consciência quanto à constatação de sua temporalidade face à eternidade universal, e a angústia de sermos imperfeitos, frágeis, corruptíveis, efêmeros e miseravelmente transitórios, ou seja: mortais.

 

 

OA – Seu recente livro Meu brechó de textos contém algumas obras chamadas de "poemas de segunda mão". Poderia comentar um pouco sobre o papel que a poesia desempenha em sua vida? Não é porventura um poeta em potência?

 

CT – Meu poetar foi sempre caseiro, doméstico. Só muito recentemente tive coragem de desengavetar alguns poemas antigos e publicá-los em coletâneas. Um dos responsáveis por isso foi o poeta Affonso Romano de Sant'Anna que ao ler meus livros de Ficção, em prosa, me escreveu dizendo que os meus textos continham "densidade poética sem pieguismo e que, com certeza, eu deveria ter poemas escondidos e engavetados." (sic).

 

 

OA – O que significa escrever para você: cumprir uma missão, submeter-se a um impulso incontrolável ou simplesmente passar o tempo como lhe aprouver?

 

CT – Nisso, não sou nada original, aliás, sou totalmente adepto do pensamento de Ernesto Sábato: "O escritor é testemunha do seu tempo, de seu drama consciente face às imperfeições dele próprio, da sua solidão e dos desconcertos do mundo ao redor. São mártires de uma época e não escrevem com facilidade, mas com dilaceramento".

 

 

OA – Que conselhos você poderia dar aos escritores iniciantes, a quem aspira, de certo modo, a seguir seus passos? Vale a pena um jovem de hoje se dedicar à escrita literária ou é mais prático e seguro optar, por exemplo, pelo serviço público?

 

CT – Escrevam, reescrevam e recomecem o que reescreveram. O serviço público, no meu caso, me proporcionou oportunidades de sobreviver economicamente, de constatar os desconcertos do mundo através de experiências de vida no País e no Exterior, mas foi um caso fortuito, um ponto fora da curva. Importante é não esquecer que fazer literatura maiúscula pode conter um poder catártico além do testemunhal (como dizia Sábato) e ainda o toque mágico para o renascimento do Eu profundo e dos outros eus — como na obra de Fernando Pessoa e seus heterônimos. Enfim, o fazer literário é o relato de antigos ou permanentes martírios do escritor pela voz e visão sarcásticas dos seus fantasmas.

 

 

 

 

 

POEMAS DE CARLOS TRIGUEIRO

 

 

 

Mimetismo e Consciência

 

 

Aquela borboleta acastanhada

simula ser parte do castanheiro,

tem asas escuras, antenas clavadas,

já foi larva, ninfa e crisálida,

mas não sabe da vida inteira.

Está ali, ponto e basta:

a Natureza vergasta.

 

Eu sei o que é mimetismo

e que a borboleta acastanhada

viveu um período ninfal.

Mas tudo que sei vira nada,

pois, em verdade, não me convenço

de estar aqui, ponto e basta:

a Consciência devasta

 

 

 

 

 

Larissa

 

 

Maçãs do rosto

colhidas no Paraíso,

boca profissional,

lábios amadores,

canto de sereia,

olhos de gazela,

nariz fatal

pescoço de garça,

cabelos a cavalo,

torso pintado a óleo,

seios adolescentes,

cintura a palmo,

ventre livre,

púbis selvagem,

sexo alagadiço,

mãos estreladas,

pés de anjo,

coxas de alabastro

sustentando o monumento.

E, nada obstante,

língua de mulher.

 

 

 

 

 

Salada feminil

 

 

Toda mulher

esconde nos lábios

uma fruta;

a mãe, a noiva,

a prostituta.

 

Por isso que

há beijos com

sabor de maçã,

pera ou cereja,

laranja, morango

ou framboesa.

 

Talvez por isso

que o beijo

da mulher amada,

verdadeiramente amada,

tem muito mais sabor:

é uma salada de frutas.

 

 

 

 

 

Mistério feminil

 

 

O homem,

ao despir a mulher

pela primeira vez,

tem vaga chance

de saber quem ela é.

Nenhuma

depois que a conhece.

 

 

 

 

 

Minha poesia é frenética

 

 

Dizem que

a minha poesia não tem estética,

nem mesmo o que chamam de ética

— é simulada, artificial, cosmética.

 

Dizem que

a minha poesia é hermética,

não tem o viço da criação poética

— finge conotação dialética.

 

Dizem que

a minha poesia é magnética,

junta palavras com atração fonética

— subverte o coração da cibernética.

                   

Dizem que, apesar de tudo,

a minha poesia é profética

— e da condição humana ascética

vaticina a implacável finitude: patética.

 

 

 

agosto, 2014
 
 
 
Carlos Trigueiro. Nasce em Manaus/AM, no dia 28 de fevereiro de 1943, filho de Asteclíades Henriques Trigueiro, músico, mestre de Banda da Polícia Militar amazonense, e de D. Solange Sampaio de Farias Trigueiro. Desde cedo viaja pelo médio e baixo Rio Amazonas, vendo contrastes: de um lado, a exuberância das águas e floresta, de outro a vida carente dos ribeirinhos, constatações que, mais tarde, o influenciariam como nostálgico memorialista. Em 1951, muda-se para o Ceará e reside em Fortaleza até 1956. De meninice livre, ora se aventura pelas dunas e falésias, ora adentra o agreste, e mais longe, pisa o sertão. Testemunha outros contrastes: a miséria dos retirantes e a opulência dos coronéis. Aos dez anos, ganha, como prêmio escolar, o livro As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, obra que o iniciará no gosto pela Literatura. Em 09/12/1956, deixa o Ceará e vai para o Rio de Janeiro. Ainda menor, trabalha num sanatório para custear seus estudos. Em 1964, ingressa no Banco do Brasil. Em 1968, gradua-se em Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas. No biênio 1973/74 cursa pós-graduação em Disciplinas Bancárias na Universidade de Roma (Itália) e, em 1978, começa a colaborar esporadicamente em jornais sobre temas socioeconômicos. Entre 1980 e 1996, vive em Madri (Espanha), Macau (China), Roma (Itália), e Chicago (EUA). Em 1996 aposenta-se no Banco do Brasil. Começa a escrever exclusivamente ficção. Recebe o Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores, para O Livro dos Ciúmes (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para O Livro dos Desmandamentos (Editora Bertrand Brasil). Mais: www.carlostrigueiro.com.
 
 
 
 
 
Oleg Almeida (Bielorrússia, 1971). Poeta e tradutor, sócio da União Brasileira de Escritores (UBE/São Paulo). Autor dos livros de poesia Memórias dum hiperbóreo (2008) e Quarta-feira de Cinzas e outros poemas (2011) e de numerosas traduções do russo (Dostoiévski, Púchkin, M. Kuzmin) e do francês (Baudelaire, P. Louÿs). Mais em www.olegalmeida.com.
 
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