É aqui

 

 

É aqui
Onde toco as palavras
Que sei de mim
Alguma certeza
A alma contra a luz
Do dia
Os ossos, a carnadura
A leveza do ouvido
Colado à brisa
A canção que só a mim
Cabe silenciar
E a boca pausada
Se movimenta
E articula a beleza
Secreta, sedenta
O mistério da palavra
Ouvi
A poesia me canta
Por dentro
Como um pensamento
Como uma coisa imorredoura
Sangramento
Sem causa
E sem pausa
Arrastamento
É aqui
Que eu encho os meus olhos
De absurdo
E de espanto
É aqui que eu fecho os meu ouvidos
E canto

 

 

 

 

 

 

Corpo poético

 

 

Cobrir de falso linho

A ilusão

A carne

Desmedido

Sangra o coração

Estranhas gotas

Passionais da fantasia

Carne

Poesia

O que é mesmo verdade?

Há vestígios de mim

Nesta arte

Alegoria

E culpas desenhadas

No meu corpo triste

O rosto

Arde

Um milharal incendiado

Descendo o tronco

Até a pluvial

Bacia

E há ainda os olhos, ígneos

E palavras

Irisadas confidências

Num canto da boca

Falam

Falácias

Cantos comovidos

O que minto

Desavisada

Fazedora de versos

Verborrágica

Inconsentida

Ávida

Inexato e febril

Meu corpo poético

Que atravessas

 

 

 

 

 

 

Trama pequena

 

 

Asa alteada
Signo, palavra
Grânulo de areia
Faísca de água
O fogo da íris
A centelha
O topo
A colina
O corpo da fala

A vida despida
O véu
A falácia
O risco do verso
O efêmero traço

O laço
O enlace
A dança ritmada
O baile do tempo
A carícia da pétala
A essência
A trama pequena
Palavra

 

 

 

 

 

 

Papel de seda

 

 

Embrulhei anjos

Plumas

Palavras em papel de seda

Embrulhei asas

De sonhar desperta

As janelas que dão

Para as ruas desertas

Que nem pisei

Sonhos, sonhos

Sonhei

Anjos, velas, aves

Tomaram-se de mim

Urgentes e breves

Reviraram escombros

Por dentro

A casa, a alma

De onde me ausentei

Escrevi bilhetes

Numa folha em branco

Sussurrei

Gritei nomes

Recitei versos

Calei-me

Embrulhei algas

Corais, pedras de sal

Caídas como promessas

Dos meus olhos rasos

Embrulhei as palavras

Em papel de seda

Cheiravam a jasmim

A nunca mais

 

 

 

 

 

 

Não é só pranto

 

 

Preciso dizer-te não é só pranto

A letra da canção que trago à margem

Dessa palavra amarga que às vezes canto

Tenho alegria que me dá coragem

 

Não trago sonhos vãos presos ao peito

E nem é só de dor o meu lamento

Componho esse soneto de outro jeito

Das cores do arco-íris e, me deleito

 

Senhora, menina, não tenho idade

Quando visto a capa da fantasia

Sou luz da lua varando a noite

 

Sou ave branca que rompe o dia

Cavalgo um alazão, lhe dou açoite

E acordo embriagada de saudade

 

 

 

 

 

 

O vestido

 

 

As rendas roçando

A carne

A arte da seda

A pele sobre a pele

Secreta

Devassa do colo

O solo do ventre

O quente do ninho

A boca de linho

Lambendo as coxas

Os braços em pétalas

O tule abrindo o seio

A curva da cintura

Arquitetura do segredo

O ouvido colado

Ao rumor da voz

O veludo

O  escondido do tecido

O ardil, a trama

De  um feminino capricho

A ardência, a chama

O colorido,a dança

Do estampado desenho

O pedaço da rosa

Desdenhosa

O olhar da esfinge

Pousa

Graciosa

No arco das ancas

Desmedidos sonhos

O limiar do desejo

O infinito beijo

No frescor

Do tecido

O regaço do mundo

O decote profundo

A nave mãe dos astros

O falso frágil

Feminino

A fresta, a fenda

A chave-mestra

O vestido

 

 

 

 

 

 

A minha alma pensa que sou triste

 

 

Pensa que sou triste

A minha alma

Acredita até quando

O meu corpo

Explode em risos

Minha alma pensa

Que sou santa

E mesmo quando

O meu gesto

É lúdico

Dança uterina

Ela pensa

Que sou mansa

Mesmo quando

Sob o rio lento

Das minhas palavras

Reina absoluta

A lava

Incandescência

Ela pensa

Que sou calma

A minha alma pensa

Que sou boa

Não sabe ela

Que, louca

Eu deslizo na ponta

Da navalha

O meu vestido

Bordado de esperança

E tenho delírios

Alucinados voos

A minha alma pensa

Que sou triste

A minha alma

 

 

 

 

 

 

Dona das lendas

 

 

Senhora
Permita-me
Dividir contigo
Teu casaco, tua bebida
Gotas, lentilhas, diamantes
Teu anel de única palavra
Brilhando no escuro
Permita-me
Braços dados
Velhas senhoras meninas
Nós duas seremos
Estranhas a esse mundo
De sombras e de muros
Se divido teu passo
Esse pisotear de pétalas
Teu hálito de surpresas
Inefável
E empresta-me teu vestido
O cetim, a renda
O brocado
Lírica, mítica
A dona das lendas
Eu me vejo 
Trágica, seráfica
Encharcada de risos
Atravessando de valsas
E de tangos
A ira das borrascas
Eu e tu
Senhora 
De mãos dadas
No largo da praça
Embriagadas de letras
E de cantos
Seduzindo a vida

 

 

 

 

 

 

Humanas delicadezas

 

 

Sei mais
De densidades
O peso da palavra
Essa mais amarga
Entre dentes

É rude
A ternura
O amor
Aspereza

Sei que sonho
Bocas unidas
Sorvendo o mesmo
Sopro
Sonho
E o marfim dos dentes
Na carnadura delicada
De um beijo

Desejo
É sangrar
Um caminho
Num corpo inexato
Os cegos passos
A lado do abismo
E o vão indescritível
De um abraço

Sei nada
Sei do sonho
De ser ave
Asas
De pequena envergadura
Vencendo alturas
Espessuras
Distâncias

Sei da noite constante
Escura
Ave maior
Sobre as minhas
Humanas delicadezas

E um sol ardendo
De ternura
E eu
Ardendo nele

 

 

 

 

 

 

Corpo silenciado

 

 

Eu preparo

As madrugadas

O leito onde me deito

E me farto

E me deleito

Oceano de mágoas

O branco

Lívido lençol

Das palavras

Desenhadas a dedo

O segredo sagrando

Aberto

Há um deserto

Composto à ermo

No corpo silenciado

O reflexo dos gestos

Antigos

Cenas recortadas

Cuidadosamente

À navalha

Como um corpo

De águas se desfazendo

Como um rio vai sangrando

Mar aberto ao peito

Como os olhos cansados

De percorrer distâncias

E as mãos se fartam

Das ausências

Pede pra dormir

 

 

[imagem ©tara sgroi & donald robertson]

 
 
 
 
 
Sandra Fonseca (Montes Claros /MG). Poeta, graduada em psicologia pela Fumec, graduanda em letras pela UFMG, vive e trabalha em Belo Horizonte desde 1981. Premiada pela UFSJ inverno cultural 2008. Publica em revistas, antologias e meios digitais. Autora do livro de poemas Dez violinos marinhos e uma guitarra de sal, volume 8, da coleção Museu Nacional da Poesia. Escreve o blogue A Solidão das Mulheres.