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CONFRONTO


Sinal fechado muitos metros à frente, a fila de carros prensados uns contra os outros ao fim da tarde. Reparo no sujeito a circular entre os automóveis e a pedir esmola a alguém que não enxergo, motorista de um dos carros. Ouve a presumível recusa, movimenta os braços, negocia, desiste.


Aproxima-se de onde estou e quero que se aproxime, acho que tenho moedas; vê que o chamo com o gesto. Logo está à direita do carro, falamos separados por banco e porta. Abro a janela da direita, procuro na carteira, mas só encontro moeda de centavos.

 
Homem de trinta e poucos anos, baixo, cabelos longos, certo aspecto de Cristo no rosto e nas roupas de cores baças. Tenso. Passo-lhe a moeda, ele a contempla surpreso e se exalta:


— Eu como ali, eu e a minha criança, a gente come ali na mulher que fecha às seis horas! — e dá o preço das refeições: se bem me lembro, são quinze cada.
Mexo as mãos para dizer que não tenho mais. Não frio ou indiferente: para mim, de fato não tinha mais.


— Quase seis horas, e isso! — reitera, exibindo dramaticamente a moeda.
Mostro a carteira com notas de vinte e talvez de dez — sequer chego a encontrar cédulas de dez. Nenhuma nota menor, e não quero dar vinte reais ao rapaz:


— Só tenho de vinte! — a carteira aberta.


— Então me dá! — grita aflito.


A distância me protege de uma improvável tentativa de assalto. Não é o que está em causa. Ele olha uma vez mais para os centavos, sente o impulso de atirá-los fora, mas se contém; pergunta com palavra e gesto o que se pode fazer em sua situação, roubar, quem sabe? As exigências do estômago, crime, cadeia.  

     
Filme em câmera rápida, os movimentos nervosos perturbam a capacidade de entender a cena por inteiro. O homem parece desorientado.


— O sinal vai abrir — apelo para o que já não depende de mim.


Exausto da conversa estéril, traído em seu direito de comer (a fome, essa pantera, não espera), amarrota a cara, dá as costas, vai embora.


Carros em marcha.

 

 

  

 

 

 

CATARSE


Escolhíamos lugar para jantar, na despedida antes de uma viagem breve, a ser feita somente por mim no dia seguinte. Casal em paz, bem-humorado.


O sarcasmo do destino nos levou a um falso restaurante francês, local onde se reúnem políticos e seus comparsas.


Pequena sala retangular. Decoração simples, com ar de coisa nova. Ao lado da porta, escada em caracol leva aos banheiros na sobreloja.


Uma das mesas adiante — eu estava de frente para elas — era ocupada por dois sujeitos com pinta de advogados, que vestiam pesados paletós azuis e gravatas desmaiadas. Digo desmaiadas, mas talvez minta: pelo menos um deles ostentava cor berrante na gravatinha. Ao fundo, casal jovem. Reparei que a moça era bonita. 

 
A mesa atrás de nós – eu estava de costas para essa mesa — poderia aparecer na tela de qualquer cinema, imagem empoeirada de faroeste, naquelas cenas em que nenhum dos convivas presta. Filme barato de velho-oeste ou de gângster.
Nenhum dos convivas vale nada: juízo talvez sumário demais. No entanto, é o que se tende a pensar dos que fazem companhia — companhia profissional, evidentemente — a ex-governador deposto por corrupção. Logo me lembrei das cédulas na tevê, agitadas feito leques. Lembram?


Eu, de costas. Nada via, nada sabia. Ali, ao lado, na sala em que se dispunham sete mesas escassas, mafiosos em colóquio. Vá lá que fossem, repito, mafiosos apenas presumíveis, pois só o líder tivera sido pego de fato — ao lado de outros que ali não estavam — com as unhas no bolso do contribuinte. Bandidos tão somente prováveis, pois, postos em torno de notório gatuno.


Passam-se alguns minutos, e eles saem. A namorada, no instante imediatamente posterior à revoada de tais urubus, dá-me a notícia, quase como se não fosse notícia: para ela, era certo que eu os tinha percebido.


— Viu? Era o Ramos.


— Quem?


— Ramos. O ex-governador.


— Aqui?


— Atrás de você.


Deblaterei, então, numa zanga instintiva, à base de puro impulso, contra o Ramos e o Flávio Otávio. Boca no trombone ali na sala miúda, onde todos ouviriam o menor fonema, ainda que o quisesse disfarçar. 


— Flávio Otávio foi acusado de comprar fiscais! — abri o berro.


A voz elevou-se ao teto, onde as lâmpadas começaram discretamente a tremeluzir. Prossegui, bêbado com minhas palavras e com o silêncio à volta:


— Na Universidade, se trabalha! Lá ninguém ganha nada sem trabalho! — o tom apoplético, ou quase.


— Benhê... — murmurou a namorada, pedindo compostura.


Sim, eu gritava. Ao que os dois balofos de terno azul inquietaram-se, e um deles disse alto:


— Judas tem que morrer.


Tinham estado mudos até ali; fácil deduzir que a fala era comigo. Mas a dúvida pairava. Logo derrubada, raquete que bate nas palavras de cima para baixo, com a repetição ainda mais enfática:


— Judas tem que morrer!


O apóstolo injustiçado e paupérrimo que ele defendia era, claro, o gente-boa do Flávio Otávio.


Em vez de baixar, subi o tom. Acho que foi aí, e não antes, que afirmei — temerariamente, sim, se lembrarmos de crimes ainda recentes:


— Na Universidade, se trabalha!


Acredito nisso. Acredito em trabalho honesto, e só em trabalho honesto. Honesto e inteligente, pois não basta patinar no que já se chamou de "virtude miúda a cansativa". Toda virtude deve ser, se possível, ambiciosa, larga, ingênua até.


— Lá ninguém ganha nada sem trabalho!


Os garçons saracoteavam, tensos. No entanto, não houve nova resposta. Fiz a minha catarse de cidadão que se julga superior a furtos e falsificações, e os barris de chope calaram-se.


Medo de mim? Ora, não sou de nada nem quero ser. Falta-me "a base física da coragem". Não tanto na altura ou no peso, mas no treino e na capacidade de ferir alguém, de querer fazê-lo. Não tenho vontade de matar nem barata. Nem insetos, quanto mais vermes.

 
Um deles perguntou ao parceiro, baixo, mas audível:


— Aqui não tem segurança?


Conversaram ainda por alguns minutos com o casal na mesa ao fundo, como se estivessem todos em família.

 

 

 
 
agosto, 2014
 
 

 

Fernando Marques é professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, jornalista, escritor e compositor. Publicou Retratos de mulher (poesia; Varanda), Contos canhotos — Pizzarelli na danceteria e outras histórias (LGE), A comicidade da desilusão: o humor nas tragédias cariocas de Nelson Rodrigues (ensaio; Editora UnB/Ler Editora) e os textos teatrais peça em um ato, adaptação em verso e canções do Woyzeck de Büchner, e Últimos comédia musical em dois atos (livro-CD), ambos pela Perspectiva. Autor da comédia A quatro, encenada em Brasília (2008). Tem reportagens e artigos publicados em jornais e revistas de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo e em revistas eletrônicas.
 
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