Chove

 

 

Chove em Stambul

E as pedras não deixam de brotar no solo crocante

 

A chuva que cai em Xangai

Não ofusca o brilho das luzes nas noites de artifício

 

A chuva de Londres é fria

É mais fria que o fio da navalha de qualquer velha barbearia

 

Há muito pouca chuva entre o sol e o sal

No sul do Atacama

 

Mas o céu traz a cor de um prenúncio azul

Como água que nunca derrama

 

São Paulo na chuva, e um rio de Belo Horizonte

Transborda inundando o que é santo e humano

 

Chuva fina por toda travessia

E os pés encharcados dão direção às lágrimas da floresta

 

No sul da França, a lembrança

De uma água espumosa caindo em Champagne

 

Embriagar de mar e de sol e depois esperar

A chuva chegar e lavar o farol

 

Chove muito nos olhos das mães da Praça de Maio

E o choro e a chuva despertam o fantasma do Rio da Prata

 

Em Belém do Pará, a chuva com hora marcada

Não altera a desordem da vida dos que vivem por lá

A chuva em Veneza transborda beleza

E alaga os canais lembrando Recife de outros carnavais

 

O Cerrado queimado agradece a chuva de fevereiro

Que lava a brasa enraizada qual o cristal dos Veadeiros

        

Chuva forte de raios e trovões, coriscos, vermelhões

Entorpecendo o dia, feito bodas de sangue no céu de Andaluzia

 

Um ser caminhando por essas estradas

Pisando nas nuvens, tão cheio de si

Só para sua andança se algo o comove

 

Um ser caminhando por essas estradas

Pisando nas nuvens, tão cheio de si

Só para sua andança no dia que chove

 

 

 

 

 

 

*

 

O que se pendura na parede?

O que se desenha no papel?

O que se pinta com o pincel?

É desejo, é a fome, é a sede?

 

Não é o que sobra

Nem o que transborda

Mas sim, o que falta.

 

É o poeta na malta

O pescoço na corda

A sua última obra

 

É o vazio, talvez a ausência,

Vai ver é um sinal

Final sem ponto

Só reticências (...)

 

 

 

 

 

 

*

 

Há poesia

no a ver

da vida?

A poesia

no haver

da vida.

Onde a vida

havia

havia eu e você

e eu a via.

Vejo você

Onde sempre esteve

e a vida não havia.

Onde há você

há de haver a vida.

Há vida

no a ver

da poesia.

 

 

 

 

 

 

Para Nietzsche

 

 

Sonhei que meu coração repousava

Profundamente dentro de um copo d'água

 

Solto sem meu coração

Estava leve, muito leve (dançava)

Pensei: estou morto — vou falar com deus então

De frente pro espelho, ele me olhava

 

"E aí? O que está esperando?

Dá-me o copo, estou com sede

Está logo ali na sua frente, vede?"

Eu não obedecia... Continuava dançando.

 

Olhei pro reflexo e não me contive

Ah! Finalmente estou livre.

 

 

Eu só acreditaria num deus que soubesse dançar.

(F. Nietzsche)

 

 

 

 

 

 

Em Brasília 8 horas (Autobiografia de agosto)

 

 

Em Brasília 8 horas, com céu claro, névoa seca

E a umidade relativa do ar podendo chegar a 12 por cento

Céu azul e 33 graus no asfalto que se abre com a segunda-feira

Que se anuncia para mim, assim, o início já no fim

E eu, Prometeu, amarrado ao acento do carro

Sigo atrás da ave rapineira

 

Quero morrer agora

Antes que dê oito horas

Quero morrer agora

Antes de chegar ao meu trabalho

Quero morrer agora

Eu quero é dar trabalho

 

Quero morrer afogado

Dentro do meu amor

Numa banheira

Ao som de Cowboys Junkies

 

Se eu pular da ponte

Mato a sede nesse lago

Alivio o meu calor

E deixo o trânsito parado

Para o horror do gestor do carro ao lado

 

(O céu seco asfixia

Como lençol solitário em noite de agonia).

 

Sou um louco e não me interno nesse inferno

De terno cinza

Sou um louco, porque quero deste inferno

O calor do sonho eterno

De quem vive e morre por amor

Brasília quente/fria

Altitude e atitude na cidade

Onde até a umidade é relativa

Vinte por cento no Plano Piloto

Pra cerveja descer com gosto

Doze por cento na poeira estrutural

A caminho da escola sob o sol matinal

Impunidade retroativa a dez por cento na caixinha

Onde o céu castiga a vista ofuscando o desatento  

E o que tem os ipês a ver com isso?

Se a umidade é relativa

O ipê é imperativo que agride a sisudez

do servidor de terno novo

O amarelo explode feito ovo

Lançado pela turba cabeluda no paletó da ordem pública

Quero-quero, carcará, bem-te-vi, tucano, sabiá

Quero compania nessa viagem: Brasília-miragem

A ressaca de agosto resseca as narinas

Deixando na boca o gosto da estiagem

 

Nessa cidade que o vermelho se mistura com o azul

O resultado é um cinza empoeirado, uma cor triste

No lugar do verde que vestes ou do verde que vestistes.

Brasília é um aposto, o oposto, um hiato

Inércia no desacato

É a névoa ofuscando a visão da imprensa

Que pensa o cerrado pelas lentes de além mar

Bossa nova, JK, boçalidade insana

Que inflama a minha garganta e trava o grito

E eu fico aqui neste carro vendo os ipês

Que me mostram a diferença entre o real e o mito

 

 

 

 

 

 

Meus heróis morreram de overdose

 

 

Encontrei Walt Whitman esses dias

No caminho da cachoeira

Caminhava sobre a relva

Recolhendo algumas ervas

Pros cachorros perdigueiros

Deparei com Allen Ginsberg voltando da noitada

No metrô de madrugada

Ele estava com um garoto adolescente

Numa brisa entorpecente

Enquanto a lua lá no fundo

Convidava a mais um uivo

Esbarrei com Maiakovski na saída de um bar

Lá pras bandas da Augusta

Ia chapado ladeado por dois punks e uma puta

Destilando sua vodka e praguejando contra o tédio

Pra essa gente amarela

A transgressão de sua flauta ainda reverbera

Ouvi Nietzsche conversando feito um louco

Com um grupo de meninas

Num restô de fim de noite

A voz rouca e o bigode cheio de sopa

Demonstrava a empolgação do ancião

Em mostrar para as lolitas

Que ali estava um super-homem

Cruzei com Jesus Cristo às três da tarde

Quando ia atrasado a caminho pro trabalho

Ele me pegou de papo... um papo chato

Rancoroso, descabido, arrependido

De não ter largado tudo pra fugir com Madalena

Resta agora a velhice e a rabugice

Praguejando pela vida, que dá pena

 

 

 

 

 

 

Latino-Homérica

 

 

E se a menina Argentina

Hablasse sem sotaque

Ao vender suas miçangas

Para os chicos muy guapos

Todos já muito borrachos?

Vozes, risos, flertes, farpas

Línguas lânguidas

Lambendo as ruas da Lapa

E se o menino da Colômbia

Anarquista, desenhista

Retratista do urbano

Mirasse uma niña

Com os olhos cor de estanho

E a pedisse que seguissem direto pra Letícia?

Rumo ao norte, rio acima

Entre el cielo e o mundano

E o casal do Uruguai

Cuja moça se distrai

Para fugir de uma peleja

No romance que se esvai?

Ela vai estudar arquitetura

Em Brasília do concreto quase humano

Sem jamás perder la ternura

Ele pensa em ir pra Minas

Céu, montanhas e esquinas

Água mole, pedra dura

E o pó do amor já em ruínas

E a bonita de Caracas

Que mal sabe de Bolívar

E está no delta maranhense

A caminho de Oaxaca?

Ela mira el desierto

Seios nus a céu aberto

E os coyotes rendem graças

E aonde vai o cabeludo

Nessa leve voadeira

Rio abaixo, Corumbá

Numa fuga pantaneira?

Vai até Puerto Aguirre

Embarcar pra Santa Cruz

Com cositas da fronteira

Um regalo para as chicas

No caminho até Arica

E la hija de milico panamenho

Que abandona os estudos

Pra acompanhar o cabeludo

Em sua fuga pelo Chile?

Vão parar lá no Madeira

Rumo a Manaus/Santarém

Lá direto pra Belém

E há quem fique a questionar

Sem sair do seu lugar

Por que tantas idas e vindas?

Camiñando pela calle

Puertos, bares, fugas, vidas

La gente de todos os lugares

Despedidas e encuentros

Se o mundo é um grande livro

Cada estrada é um conto

 

 

[Poemas do livro Poemas, visões e outras viagens, 2012]

 

 

 

 ©dimitri basil 

 

 

O animal

 

 

numa noite cheia de lua escura

encontrei o animal que tanto perseguia

ele imponente a minha frente

me ignorava, me chamava,

e corria, e corria, e corria

ao meu lado minha criança aprendia

como se morre junto aos seres da mata

no tropel dos tambores em festa

e era o desejo

tornado

tudo

sonho revirado

e era a força

chegando

com força

na busca desesperada

do todo

na ânsia

de vômito

frêmito

febre

do anjo

que encontra com a morte

na encruzilhada

entre o azar

e a sorte

 

como quem volta

à vida intestina, uterina

retorna às entranhas

em busca de origens

vertigens

de uma menina

e o que havia de feio

dentro do anjo

era agora alimento

bonito, gostoso

fértil sustento

era ela por dentro

 

e eu

com meu animal

a correr em volta do fogo

estão todos em volta do fogo

celebração circular

a dançar, a dançar, a dançar

a terra gritava ao som do tambor

e eu era o som

que em mim entrava

e eu era o som

que comigo dançava

 

seres rastejantes

ruminantes

diletantes

carcaça

casco

couraça

o caçador

e a caça

 

a filha

que volta ao início

para achar seu caminho

o pai

busca o desconhecido

e já não está mais sozinho

 

o escuro me chama

seduz e convida pra fuga

preciso correr com o meu animal

deixar a criança

que agora renasce

seguir com seus pés que são suas asas

o fogo me cerca e o chão está em brasa

correr pela mata é o que me resta

 

é preciso tomar a cicuta

assumir a direção da minha morte

esquecer um pouco da vida

lamber as minhas feridas

 

o tenebroso sou eu

o belo sou eu

estou atento ao sinal

eu, o animal,

com olhos vivos de quem morre e aceita

eu a raposa a correr

para a escura floresta

à espreita

 

 

 

 

 

 

*

 

O que vem primeiro?

O novo ainda incompleto

Ou o velho por inteiro?

 

O ovo

ou

a serpente?

A mão

ou

o traço?

O solo

ou

a semente?

O caminho

ou

o passo?

 

 

O olho

ou

a imagem?

O delírio

ou

a paisagem?

Eu

ou

a história?

O futuro

ou

a memória?

 

Se é a chave ou a porta

Pouco importa o que vem primeiro

Se tudo é passageiro

 

 

 

 

 

 

Três mojitos e um poema (na noite da curva do vento)

 

 

a noite é uma menina de tranças

de olhos cor de jabuticaba

que anda como se pisasse em nada

a noite é sedenta, gulosa

a noite é criança

 

a noite tem cheiro de anis

a noite tem a cara de vento

a noite é você por um triz

a noite me coloca pra fora

me chama e me joga na rua

a noite me deixa ao relento

 

a noite é o rastro de estrelas

é meu olho lambendo suas coxas

a noite é o gesto em excesso

são pernas cruzadas, abertas

senhas e sinais de alerta

é a boca sugando meus sonhos

meus dentes gritando demônios

 

a noite é iansã protetora

são francisco e todos os bichos

a noite é ganesha e é shiva

sou eu no bhagavad gita

 

a noite têm caras e bocas

a noite recusa essa roupa

de boa menina encantada

é o prazer em troca de nada

a noite só sai se for nua

a noite é o desejo na rua

a noite é o sorriso do mar

mesmo que não haja mar

a noite é o abraço da árvore

seus galhos e folhas latentes

a noite me vem de repente

a noite me arranha e me larga

a noite é essa dose amarga

a noite é o céu de absinto

a noite é você que eu sinto

 

 

 

 

 

 

Com Drummond no avião

 

 

aqui estou eu preso no assento do avião

com Drummond entre as mãos

devaneando sobre os caminhos de pedra

e a certeza de que o destino do voo é a queda

 

do aperto da poltrona vinte e dois

consigo ver pessoas (eu também sou Pessoa)

variadas, iludidas, desesperadas, perdidas

ou não

que vão comigo ao chão

ao céu, ao inferno, ao depois

 

enquanto Carlos, companheiro de muitas viagens,

chama a minha atenção

estamos juntos de mãos dadas

à deriva nessa vida

feito anjos sem asas

 

                            (...)

 

e eu sigo dando Bandeira de aeroporto em aeroporto

com lições não aprendidas de partir

 

 

[Poemas do livro Verso avesso, 2014]

 

 

 

 

 

 

Wélcio de Toledo (Brasília/DF, 1970). Formado em História, com mestrado em Educação pela UnB, é professor, poeta e atua em movimentos sociais e culturais do DF, principalmente relacionados à identidade cultural, memória, literatura e artes em geral. Iniciou na militância cultural nos idos de oitenta, na efervescência do movimento punk. Possui poemas na Coletânea Fincapé, do Coletivo de Poetas de Brasília e, em 2012, lançou o livro Poemas, Visões e Outras Viagens. Em 2014, publica Verso Avesso.