Meu Pai

 

 

Se o papai dentro do caixão pudesse falar alguma coisa, ele ia dizer "Muito bem, vocês já fizeram bastante por mim, todo mundo pode ir embora, daqui pra frente é só eu, o resto é por minha conta, de agora em diante eu me viro sozinho".

Também estava doida pra tudo acabar, eu não aguentava mais.

A noite custava a passar. De vez em quando, o meu tio mais novo levantava, parava na beira do caixão, olhava o irmão, punha a mão no queixo, balançava a cabeça e se assentava de novo.

Um homem com um bafo de bebida chegou e falou que o meu pai era igual um filho pra ele. Um outro veio, me abraçou demoradamente, disse que ele foi o irmão que não teve e saiu com os olhos vermelhos.

Amigos vinham e falavam as mesmas coisas: "um grande homem", "ótimo chefe de família", "descanso merecido".

Por que todo velório é sempre a mesma coisa, as mulheres sentadas em volta do caixão, chorando e rezando, os homens do lado de fora, em pé conversando, contando caso?

Me deu vontade de rir quando a minha tia abaixou pra beijar ele e o broche agarrou no véu que cobria. Tem vez que eu acho que eu sou meio esquisita.

A minha vó debruçou no caixão, falou qualquer coisa no ouvido do papai e ficou segurando a sua mão. Eu não queria encostar nele, eles falam que a pessoa quando morre, esfria. Não é por nada, era medo de ficar com medo de noite. Quando era vivo, eu chegava, deitava no colo, beijava, abraçava.

Minha mãe toda hora mexia numa flor ou endireitava o véu. Estava tudo no lugar, mas ela sempre achava um jeito de consertar alguma coisa.

Uma hora fui pro carro pra junto das primas, mas não demorei porque fiquei com dó e voltei pra junto dela.

Aí comecei a pensar numa coisa que sempre penso quando uma pessoa morre. Eu sempre achei que Deus devia dar um aviso, um tempo antes (os bebês não podem nascer com hora marcada?) pra gente despedir, abraçar e conversar pela última vez.  Meu pai nem se despediu de mim. Morreu de repente. Deus tem hora que não vê as coisas.

Eu me distraía com a chama da vela. Passado um pouco, virava pra mamãe, tentava imaginar o seu pensamento. Tinha vez que não tirava o olho dum lugar: o que ia na cabeça dela? Criar a gente sozinha, chegar de noite na hora de dormir e não ter mais ele do lado? Ou até uma coisa mais alegre, como num fim de tarde, muito tempo atrás, quando as paineiras não aguentando de tanta florada, eles namorando de pouco, o papai olhando fundo nos seus olhos, sem falar coisa nenhuma, perguntando pra ele mesmo, se ela  não ia ser o amor de sua vida.

Acabei cochilando no ombro dela.

Teve uma hora que olhei pras pernas compridas do papai e fiquei lembrando uma vez num ponto de ônibus, eu pequena, enfiada debaixo dele protegendo pra não me molhar.

Um sujeito não tirava o olho da mamãe. Mesmo sem pintura era bonita. Depois a madrinha contou que ele quis namorar ela antes do papai. Eu não gostei porque achei que estava rondando muito. As pessoas falam que ele não parou de beber desde que ela casou.

 Uma mulher muito branca chegou, não cumprimentou ninguém, parou perto do caixão, ficou imóvel por algum tempo, virou as costas e desapareceu no escuro do jardim.

Tinha hora que vinha um medo de acontecer coisa ruim.  Eu não queria pensar, mas não tinha jeito. A minha tia que mora sozinha é uma. Ela dá ataque. Sempre que chegava um parente no velório, começava a chorar sem parar. Eles iam lá dentro e buscavam água. Eu nem queria ficar perto. Meus tios deviam ter levado ela pra casa. Pra fazer uma asneira não custava. Destrambelhada, papai era o xodó dela. Solteirona, nunca namorou, uma vez pagou promessa duma doença dele que médico nenhum dava jeito. Vestiu de Nossa Senhora e carregou um terço grande, durante muito tempo, assim contou o meu avô com a cabeça baixa. Eu acho que ela podia fazer uma loucura igual uma mulher na roça, uma vez — eu nem gosto de pensar. O filho bebeu veneno de rato por causa de uma namorada.  Na hora de cobrir com a terra, ela pulou dentro da cova, agarrou no caixão e falou que queria ir junto. Os coveiros tiveram que arrancar ela à força. Tem hora, passa cada coisa pela minha cabeça! Ainda bem que a turma do colégio chegou. Eu não queria que o Julinho me visse assim, toda desarrumada, com a cara mais branca do mundo.

Agora que o papai morreu, não vai ter a excursão pra Ouro Preto. Olha eu de novo — parece que nem tenho sentimento.

Pior era no tempo da minha mãe. As mulheres ficavam de roupa escura durante muito tempo guardando luto, conta ela. Mas tem uma coisa: como eram elegantes! Eu fico olhando os álbuns antigos. Passavam o dia inteiro aprontando pra tirar retrato — era uma festa! E os homens — ah, os homens! — mesmo parecendo bonecos — tudo fumando, muito chique, com piteiras douradas, cada um mais bonito.

O padre deu a bênção e um gole de água benta caiu no meu olho. O sacristão tinha cara de tarado. Toda vez que uma mulher levantava, ele olhava pra bunda dela.

Tão logo o homem da funerária entrou com a tampa do caixão, o choro aumentou. Todo mundo ficou em volta pra ver o papai pela última vez. Cheguei perto de mão dada com o meu irmão e fiquei olhando. O mais estranho é que eu olhava pra ele, via todo mundo chorando e eu que sempre chorei por qualquer coisa, coisa boba até — igual quando a gente foi viajar e um passarinho bateu no vidro do carro e morreu — nesse dia eu não conseguia chorar. Chorei também na peça de teatro do colégio, fazendo o papel de uma camponesa.

Foi então que aconteceu uma coisa que depois eu fiquei pensando muito tempo. Olhei pro papai pela última vez e de repente uma lágrima apareceu no canto do olho dele. Eu acho que ninguém viu, nem mamãe com aquela mania de consertar as coisas que não precisa.

Então eu abri a boca. Eu não sei, mas senti que ele chorava por minha causa. Choramos juntos. Criei coragem e segurei a mão dele: estava quente, quente.

 

 

 

 

[imagens ©ben sandler]

 

 
 
Anchieta Rocha nasceu em Pitangui, MG. Mora em Belo Horizonte. Graduado em Letras pela PUC/BH. Tem publicações em coletâneas e em sites literários. É autor do romance Dias de Vinho e de Chumbo, Editora Jaguatirica.